Bibbidi-Bobbidi-Boo. Ou como fazer perdurar na memória o que era bom ser mentira

Alexandra Antunes
Alexandra Antunes

“Nunca observou uma obra de arte e perguntou a si mesmo quem estaria louco, se você ou o pintor? Penso que é impossível dizer o que é a arte, porque, muitas vezes, o que é bom para um não é bom para outro. Só conseguimos pintar as coisas como as vemos, e é raro pessoas diferentes verem as coisas da mesma maneira”.

Quem o disse, numa entrevista em 1938, publicada no The New York Times, foi Walt Disney, que faria hoje 108 anos. E fui buscar esta passagem por um motivo: tal como esta ideia de loucura a olhar para a arte, também por vezes achamos loucura o que a História nos conta. Assim, História com “H grande”, para ser vista do alto do presente até lá atrás.

Cruzei-me hoje com uma notícia que diz que a memória do Holocausto não é esquecida nas escolas e quero apagar a restante atualidade pelo quanto isto me fez pensar.

Os miúdos ouvem falar de um dos maiores massacres da Humanidade em disciplinas como História ou Cidadania (pausa para comentar que “no meu tempo” não havia Cidadania, mas calculo que seja uma nova abordagem à disciplina de Formação Cívica — e fico contente se agora já for útil, coisa que nem sempre se verificava).

Ou seja, o massacre de cerca de seis milhões de judeus durante a II Guerra Mundial (1939/1945) faz parte do currículo nacional — e já há uns anos. A partir do 9.º ano e até ao fim do ensino obrigatório, os jovens ouvem que morreu muita gente. Observam as imagens que aparecem num canto pequeno do livro, engolem um ou outro filme romanceado sobre o assunto. Mas conseguem perceber a crueldade do que ali aconteceu? E percebemos nós, já adultos, o que este capítulo da História implicou? É caso para dizer que, em certos assuntos, dava jeito um toque de magia, um Bibbidi-Bobbidi-Boo de fada madrinha à moda da Disney para a Humanidade ficar mais bonita.

Mas não. Na verdade, esse toque de magia é preciso, sim, para que perdure na memória o que queríamos que fosse mentira. O programa de extermínio étnico do Estado nazi, liderado por Adolf Hitler, provocou a morte de dois terços dos cerca de nove milhões de judeus que residiam na Europa antes do Holocausto. Naquele período foram mortos mais de um milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus. Não nos esqueçamos mesmo disto. Porque, enquanto nos lembrarmos, há esperança de que não se volte a repetir.

E com isto retomo, como prometido no início da semana, o meu presépio de notícias. Segundo a história contada no Evangelho de Mateus, quando os Reis Magos, vindos do Oriente, chegam ao palácio do Rei Herodes, este vê uma ameaça no bebé que eles procuram. E sabemos o que faz, não é? Manda matar todos os meninos de Belém e de todo o seu território, da idade de dois anos para baixo. No Holocausto não foram apenas crianças, mas o princípio é o mesmo: quem perpetua o massacre tem um objetivo a atingir. Aqui, Herodes e Hitler são os pintores loucos de Walt Disney e a obra não é de arte; não pode ser porque a arte há-de ter sempre, pelo menos, laivos de belo. E, ao invés do que disse o “pai do Mickey”, arrisco-me a afirmar que somos muitos, e diferentes, a vermos estes episódios como a vergonha do Ser Humano.

Hoje, ao contrário do que tenho feito até aqui, não lhe quero deixar nenhuma sugestão. Espero, apenas, ter-lhe dado o suficiente para refletir sobre a crueldade que também conseguimos ter em nós e que, infelizmente, ainda se encontra por aí.

Que a memória realmente não apague aquilo que podia e devia ser mentira. Com 2020 à porta, faça o esforço e pense que o futuro pode ser diferente: Bibbidi-Bobbidi-Boo, eu sou a Alexandra Antunes e quero um dia dizer que a Humanidade foi assim. Com o verbo devidamente conjugado no passado.

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