Tudo começou com a identificação de um quadro do século XVI, existente na Grã Bretanha, como relatamos aqui no SAPO24 em Março do ano passado. Essa descoberta deu origem a um livro académico, “Global City, on the Streets of Renaissance Lisbon”. Editado pelas duas especialistas que identificaram a cidade da pintura, Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe, a obra profusamente ilustrada explica o que está na imagem e o que imagem deixa perceber: uma cidade tornada entreposto mundial, onde chegavam ou por onde passavam produtos exóticos ou luxuosos do Oriente e do Ocidente.
Pintura de um autor não identificado e pouco notável, provavelmente da escola flamenga, mostra o lado sul da Rua Nova dos Mercadores – o lado virado de costas para o Tejo, que raramente aparece nas ilustrações da época, sempre feitas a partir do rio. A data provável é entre 1560-70 (segundo o artigo publicado no “The British Art Journal em 2015) – os investigadores conseguem ler pormenores que o leigo não divisa, como a altura do ano (Inverno) e até a hora do dia. Numa época em que os pintores trabalhavam por encomenda, são raras as imagens sem retratar os príncipes ou notáveis que lhes pagavam. Esse condicionalismo e a extensa destruição do terramoto de 1775 tornam as vistas da vida lisboeta anónima bastante raras. Aliás, as poucas que se conhecem foram descobertas no estrangeiro.
Em 1503 deu-se a famosa mudança de D. Manuel do Paço no castelo de S. Jorge para o Paço da Ribeira, abandonando o imperativo de defesa medieval pela necessidade de controlar o comércio florescente. Já no reinado do seu filho, D. João III, Lisboa sofreu um terramoto tão devastador como o de 1775. Foi em 1531, e os relatos falam de extensa destruição e o número impressionante de 30 mil mortos. É a Rua dos Mercadores reconstruída depois dessa catástrofe esquecida que este quadro mostra.
O livro foi publicado no final de 2015 e no curto espaço entre essa data e hoje, o director do MNAA, António Filipe Pimentel (o crowdfunding da “Adoração dos Magos” de Domingos Sequeira, lembram-se?) considerou transformar o quadro numa exposição superlativa do quotidiano renascentista lisboeta.
Conseguido o empréstimo da obra, juntou-lhe outra do mesmo período e do mesmo género, “O chafariz d’el Rei”, e mais 249 objectos pertencentes a 77 instituições e coleccionadores, desde mapas e instrumentos de navegação a animais embalsamados, mobiliário e objectos úteis e sumptuários. Desde um enorme rinoceronte até minúsculos brincos, estamos perante uma amostra ampla e variada dos gostos e manias de antanho.
Tudo relacionado directa ou indirectamente com os quadros, e tudo explicado nas suas origens e relações entre coisas. Há objectos devidamente enquadrados, como um mapa pormenorizado da cidade feito por um espião de Filipe II, já a preparar-se para ser o nosso Filipe I. E há objectos de que nunca se descobrirá o nexo, como três caixas de hóstias de marfim, feitas na primeira metade do século XVI na Serra Leoa, com motivos copiados dum Livro de Horas de Kerver, de 1509. Numa época em que poucos exemplares se faziam e os franceses não participavam nas navegações portuguesas, como é que uma obra originária de França serviu de modelo a um artesão da costa africana, não se consegue saber. Uma das coisas que a exposição deixa claro é que a complexidade dos circuitos da época é muito maior do que julgávamos.
Alguns objectos, como duas lindas colheres de marfim e de prata, aparecem em quadros da época, mostrando como eram usados. Outros, como os contadores indo-portugueses, as tapeçarias tecidas em seda e as intricadas jóias a que hoje chamaríamos “de fusão”, ultrapassam a necessidade do uso; são peças maravilhosas de arte e perfeição técnica.
É impossível não ver a exposição sem abrir os olhos de espanto e sentir um certo orgulho, talvez injustificado mas certamente genuíno, pela cidade mundial que foi a Lisboa do Renascimento.
Mas na Lisboa do século XXI não faltaram defeitos nesta viagem ao passado. Porque os quadros não seriam verdadeiros. Porque os objectos seriam expostos apenas por interesse comercial ou necessidade de legitimação dos emprestadores. Desde artigos na imprensa que levantaram dúvidas não fundamentadas até emails anónimos pondo em causa a autenticidade das peças – igualmente sem provas – houve um conjunto de ações que visaram questionar a exposição. A polémica abriu uma discussão que, numa certa perspectiva, permitiu inclusive aprofundar os conhecimentos da História e da Arte da época. Ao SAPO24, Fernando António Baptista Pereira, professor de História de Arte explicou pormenores do quadro "Chafariz d’el-Rei", uma das peças cuja autenticidade foi questionada no artigo publicado no Expresso por outro historiador, o professor Diogo Ramada Curto.
Nada se provou até aqui. Mas a situação pode ser vista pragmaticamente; para o visitante leigo e maravilhado, a autenticidade comprovada de um animal empalhado ou dum prato chinês (porque quanto às pinturas não há dúvidas) não faz a mínima diferença. A beleza é a mesma, a viagem pelo passado igual, o prazer estético idêntico.
É uma exposição única, que não se repetirá nunca mais em parte nenhuma –outra versão, com objectos de outros mecenas, irá ocorrer no Porto. Esta, devia ser obrigatória para o currículo escolar. Pensando bem, para o dos adultos também.
Ouça também aqui uma visita guiada por Anísio Franco e Ramiro Gonçalves, do Museu Nacional de Arte Antiga, aos bastidores da exposição "A CIDADE GLOBAL" em exibição entre 24 Fevereiro 2017 a 9 de Abril de 2017.
Comentários