Ato ou efeito de maridar ou de se maridar. O mesmo que casamento. União ou combinação em harmonia. Isto é o que diz o dicionário. Já no “The Fork”, site especializado em gastronomia e restaurantes, temos a maridagem definida como o processo de “casar” um alimento com uma bebida. Um bom vinho esteve sempre ao lado de um bom prato e no Minho o vinho é por excelência o verde que está inscrito na história da região e vive nos hábitos das comunidades.

“Obviamente, estes hábitos têm vindo a acompanhar as mudanças alimentares, porque a própria forma como se interpretam as refeições e a vivência diária das pessoas também tem vindo a mudar”, começa por dizer Sofia Rodrigues, Pró-Presidente do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC), docente da Escola Superior Agrária do IPVC e produtora de vinhos verdes.

Nos primeiros registos que chegaram até nós, e em particular da época dos Descobrimentos em diante, o vinho manteve-se presente, nomeadamente associado à força trabalho. Os jornaleiros, pessoas que trabalhavam no campo, eram muitas vezes pagos com produtos agrícolas e também em vinho. “O vinho representava uma força importante de trabalho, porque é um produto muito energético. Claro que os hábitos foram mudando e deixou de ser considerado como tal, até por razões relacionadas com o que é uma alimentação saudável, e também porque a força do trabalho passou a ser muito mais mecanizada. Agora trabalha-se muito menos manualmente e não é precisa tanta energia”.

Além de ser o acompanhamento da refeição, o vinho é na região um ingrediente comum na preparação dos pratos da gastronomia tradicional. É o caso, por exemplo, do fumeiro, dos enchidos, em que o vinho era e é essencial. Um dos produtos que ainda hoje é referência regional são as ceboleiras de Ponte de Lima, um enchido fresco feito de sangue de porco com cebola e em que o vinho é fundamental para a conservação. Aqui, o vinho funciona também como um conservante, nessas salmouras.

E quem diz nos enchidos, diz na preparação de pratos como a lampreia - o arroz de lampreia ou a lampreia à bordalesa. “É parte integrante da preparação do prato, usado logo na lavagem e no corte, quando se está a preparar a lampreia, e depois também para a vinha d'alhos. Estes exemplos são muito característicos para se ver a importância do vinho como elemento na preparação prévia do prato”.

Menos óbvio seria pensar na utilização na doçaria – mas também é um facto. “Aqui no Alto Minho usam-se muito as rabanadas de vinho tinto e as rabanadas de vinho branco, em que há uma calda de açúcar com vinho que é preparada para depois regar as rabanadas. Em vez de serem rabanadas de leite e ovo, por exemplo, são rabanadas com uma calda de vinho e açúcar”. Sofia Rodrigues garante que são “maravilhosas”, mesmo que o aspecto possa deixar quem não conhece na dúvida – “ficam quase negras, de um roxo mesmo muito escuro porque é usado um vinho de castas tradicionais aqui da região, ditas tintureiras. Tintureiras porque conferem muita cor, têm muitos corantes, muitos compostos antioxidantes”.

Minho | vinho verde
créditos: DR

O vinho da região é um produto de exportação há cerca de 500 anos. “O século XVI foi importantíssimo em termos de exportações de vinhos da região, em particular do vale do Minho e do vale do Lima. A maior parte da produção vinha até Viana e era exportada a partir do porto da cidade. Estamos a falar em  Vinhos de Monção, dos Arcos de Valdevez, Ponte da Barca, Ponte de Lima, que vinham em barcas até Viana para serem depois exportados para o norte da Europa e para o Brasil”.

Os vinhos que eram exportados para o norte da Europa nos séculos XVI e XVII tinham muito reconhecimento na altura. “Os têxteis que vinham de Inglaterra eram trocados pelos nossos vinhos. Os ingleses vieram para o Douro e para o Minho e chegaram a ter instaladas casas de comerciantes ingleses, aqui em Viana do Castelo, que eram tão importantes como as do Porto. Depois por questões internas, incluindo a não permissão, pela Rainha D. Maria, de manter a Sociedade de Pública de Agricultura e Comércio da província do Minho  e dar “força” à Real Companhia das Vinhas do Alto Douro, que fizeram com que houvesse um “monopólio” dos vinhos do Douro e Porto e muitos conflitos por causa da constituição deste tipo de sociedades de agricultura e comércio, e a pressão acabou por pender mais para o lado do Porto do que para o lado de Viana”.

Os séculos XVIII e XIX foram assim de abrandamento na produção e de menor reconhecimento nos mercados externos. Um período em que também surgiram outras culturas que se tornaram mais importantes para os produtores e muita da área da vinha acabou por ser ocupada com outras culturas agrícolas, em particular, o milho. “O milho acabou por ocupar grande espaço daquilo que eram terrenos da vinha, a vinha acabou por ser encostada às bordas das propriedades, eram por isso mesmo consideradas vinhas de bordadura. Muitas vezes, até, as árvores que faziam o ensombramento eram utilizadas como um sistema de condução da vinha, a dita a vinha de enforcado, porque eram muito altas e as pessoas tinham de subir a escadotes com vários metros de altura para conseguir fazer os tratamentos e as vindimas”, relata a professora.

Os terrenos principais foram ocupados pelo milho, que se tornou mais rentável, também o gado, principalmente o gado de leite, e assim se chega ao século XX. Em 1908 é estabelecida a Região Demarcada dos Vinhos Verdes mas só em meados do século XX é que houve um verdadeiro renascimento dos vinhos verdes.“Começaram a voltar ao espaço principal, deixaram de estar nas bordaduras e passaram outra vez a ser uma cultura também rentável para os produtores”.

A entrada de Portugal na União Europeia e a Política Agrícola Comum, que condicionou várias culturas agrícolas, acabou por ser uma boa notícia para o vinho da região. Isto porque a capacidade de competir ao nível do leite foi entretanto reduzida com as quotas leiteiras e os agricultores começaram a avaliar alternativas. “Lembro-me perfeitamente nos anos 70: a minha mãe era agricultora, criava gado e era produtora de leite e ainda agora diz ‘consegui pôr-vos a estudar com o que ganhei no leite’.

O gado leiteiro começou a tornar-se menos rentável, o milho deixou de ser importante porque já não havia que alimentar tanto animais e começam a aparecer financiamentos europeus para arranque de vinhas velhas e plantação de novas vinhas.

“É o regresso à vinha, é a nova mudança na paisagem... Agora percorremos o Alto Minho e notamos perfeitamente a presença de uma paisagem vitícola. Outra vantagem que teve esta renovação é que não se planta da mesma forma, está-se a plantar com áreas de maior extensão, a área média de vinha está a aumentar, para aumentar a rentabilidade e poder ir mecanizando algumas das práticas agrícolas para maior produtividade”.

O renascer da vinha  tem agora uma nova vertente, que é o turismo ligado à agricultura. “As empresas estão também a procurar rentabilizar toda esta paisagem vitícola, as adegas e toda a história à volta da produção do vinho e tentar transformar isso num produto turístico, e daí o enoturismo estar a surgir com a dinamização das rotas do vinho e da vinha”.

Pedro Marques dos Santos / MadreMedia créditos: Pedro Marques dos Santos / MadreMedia

Então e o maridagem que dá título ao nosso artigo?

Sofia sorri. “Aqui usamos muito a expressão, porque está relacionada com os críticos de vinhos e com quem faz as provas comentadas, e aquilo que é o trabalho dos cozinheiros e dos escanções na harmonização do vinho com a gastronomia. Procura-se criar uma ligação forte entre aquilo que é consumir uma refeição e escolher um vinho que torne essa experiência ainda mais rica. Que valorize o vinho, mas que ao mesmo tempo torne a experiência da degustação, de comer um prato que nos conforte que nos faça ir a reminiscências da história da região ou que nos faça recordar uma estadia na casa da tia ou da avó. Então, é essa conjugação, é ir buscar o melhor do prato com o vinho e por isso é como um casamento e potenciar essa união. Daí vem o "maridagem" no sentido em que é como a experiência de uma relação amorosa”.

E nessa relação, o marido é o vinho? “Não, a maridagem não tem um ou outro, é a conjugação dos dois. Não há uma parte masculina que é o vinho nem uma parte feminina é o prato, é a maridagem na conjugação dos dois, em que um puxe pelo outro”.

E já que falamos de maridagem, aproveitamos para saber que combinações felizes mas menos prováveis é que se podem encontrar por aqui.

“Às vezes há ideias pré-concebidas, por exemplo, um peixe deve acompanhar sempre com vinho branco ou uma carne de montanha deve acompanhar com tinto ou que uma lampreia deve sempre ser acompanhada com vinho tinto verde, um vinhão. Não tem de ser assim, deve haver abertura para experimentar outras maridagens, até porque a região está a inovar-se dentro daquilo que é o seu potencial endógeno”.

Um desses exemplos de inovação, conta a docente, são os espumantes que estão a ser produzidos na região de há 15 ou 20 anos, nomeadamente na sub-região de Monção e Melgaço. “Há um potencial enorme de maridagem de um espumante de vinho verde, seja um tinto ou branco, com estes pratos típicos e que não se faziam. Não era norma, por exemplo, acompanhar uma lampreia com um espumante e pode fazer todo o sentido”.

E é por tudo isto que o vinho verde tem um papel central na Carta Gastronómica do Minho. “Nunca se poderia fazer uma carta sem o vinho estar presente porque é parte integrante dos hábitos alimentares das pessoas. Por outro lado, devemos pensar que a região tem de se adaptar aos novos gostos dos consumidores porque quando se faz uma Carta Gastronómica não pode ser só para nós, nós da região, tem de ser para o mundo conhecer e perceber o que é a região no seu património etnográfico e cultural, no seu património gastronómico e na expressão do seu terroir. O vinho é transportado pela Carta Gastronómica através dos pratos e os pratos têm que respeitar os vinhos. É uma maridagem”. Um equilíbrio que tem de ser sempre tratado com muito amor.