O musical 'A Madrugada Que Eu Esperava', uma história de amor que estreia no dia de São Valentim, 14 de fevereiro, partiu do desejo de Carolina Deslandes e Bárbara Tinoco de fazerem um musical. Um desejo comum a que também se juntou Hugo Gonçalves, autor de vários livros e guionista de séries como o sucesso 'Rabo de Peixe', da Netflix.

Nesta peça, as cantoras e compositoras, já conhecidas de outros palcos, dão corpo a duas personagens: Olívia, a protagonista deste enredo romântico, e Clara, a sua irmã. A atriz que interpreta Olívia muda de dia para dia, sendo o papel da protagonista uma vez desempenhado umas vezes Carolina Deslandes e outras por Bárbara Tinoco.

Já a história, essa começa em 1971, três anos antes do 25 de Abril, atravessa a revolução e termina no ano seguinte, 1975. No final, existe uma reflexão dos protagonistas, num salto para a atualidade. No palco, acontece a clássica e universal história de amor, onde os protagonistas são obrigados a enfrentar o conflito entre o que sentem e aquilo em que acreditam, depois de se conhecerem num grupo de teatro amador que está a produzir uma versão musical de "Romeu e Julieta", de Shakespeare.

Olívia é uma personagem cheia de ideais políticos fortes, que se refletem na sua oposição ativa à ditadura. Já Francisco é um rapaz introvertido que sonha ser ator de comédia e vai aos ensaios às escondidas, porque o pai, inspetor da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), não aprova as suas aspirações artísticas. Um final feliz no meio de um tempo conturbado da história de Portugal talvez seja o que se pode esperar deste musical, mas quiçá os autores tenham outros planos.

Além de Bárbara e Carolina, vão estar em palco Diogo Branco, Brienne Keller, Dinarte Branco, JP Costa, João Maria Pinto, Jorge Mourato, José Lobo, Mariana Lencastre e Maria Henrique (encarregue também da direção de atores), a que se junta também uma banda ao vivo de cinco elementos. O principiante em grandes palcos, Ricardo da Rocha, é quem assina a encenação.

Em entrevista ao SAPO24 no ensaio para imprensa onde marcámos presença, Hugo Gonçalves, o autor do texto da peça, conta como tudo começou."A Bárbara tinha lido um dos meus livros e ligou-me a saber se eu estava interessado em fazer um musical. Ela não tinha nenhuma ideia, só sabia que queria um musical. Eu estava a acabar um dos meus livros, 'Revolução', e tendo em conta o que conhecia da Bárbara e da Carolina, da forma como são interessadas e representam para a juventude um modelo de mulher, achei interessante juntar o que já tinha, que era um conhecimento grande sobre a época, e escrever esta peça nos 50 anos do 25 de Abril".

As datas e as vontades conjugaram-se de uma forma que se pode dizer quase perfeita. "Estava a escrever o meu livro há dois anos e, quando tive a reunião com a Bárbara, estava a terminá-lo e elas tinham uma ideia de fazer um musical. Sugeri o 25 de Abril, não só porque era algo que dominava por causa do livro, mas também porque vinham aí as celebrações dos 50 anos da revolução. E sendo elas pessoas com opiniões, ativas e que servem de referência para muita gente, em especial para jovens, é uma forma de celebrar estes 50 anos e fazê-los chegar a mais gente que talvez não chegasse se elas não fossem as intervenientes", acrescenta.

Esta foi também uma forma, na perspetiva do autor da peça, de tirar o 25 de Abril dos livros da História, visto como "uma memória histórica, com fotografias a preto e branco". Quis trazer para a peça uma outra faceta, a de um "período de grandes paixões, com episódios clássicos, outros cómicos, mas que dramaticamente é muito interessante e onde aconteceu muita coisa". E conta uma frase que recorda de Herman José quando disse que num dia de revolução se viviam 10 anos da vida. "Nós queríamos também trazer isso. Ou seja, não apenas a questão política e histórica, mas também a intensidade dos sentimentos, a paixão com que os personagens vivem: ela, a política, e ele, a comédia e a família".

Hugo Gonçalves, autor de A Madrugada que eu esperava
Hugo Gonçalves, autor de A Madrugada que eu esperava créditos: Rodrigo Mendes

E depois há o amor, um tema que as duas protagonistas conhecem bem."O amor é um tema que tanto a Bárbara como a Carolina tratam bastante nas canções delas, mas nós queríamos contar uma história que fosse mais realista e não tão açucarada".

Sobre a peça que escreveu diz que "é uma história clássica desde sempre, que é boy meets girl, a que os dramaturgos voltam constantemente. Depois pode ter papéis diferentes, contextos diferentes. Mas eu acho que encaixa muito bem na questão do espírito do tempo porque, apesar de ser uma história de amor, é uma história de afirmação da identidade de cada um deles. Um deles quer ser comediante, que é uma coisa subversiva, especialmente numa ditadura. Ela é uma idealista, quer mudar o mundo e esta história de amor proibida, até porque o pai dele é da PIDE. É uma boa forma de contar uma história humana e universal, porque toda a gente já viveu uma história de amor com percalços, mas, ao mesmo tempo, podemos mostrar como é que era viver antes do 25 de Abril e naquele período revolucionário".

"O direito da liberdade implica o dever da memória”

"Existe uma frase na peça que diz: 'O direito da liberdade implica o dever da memória' e isto serve também para as nossas vidas e não apenas para a vida do país. Quando nós esquecemos o passado arriscamo-nos a repetir esses erros no nosso presente e, não querendo fazer ativismo, porque a arte não é ativismo, mas se pudermos lembrar de alguma forma como era viver antes da revolução, além do entretenimento que também queremos dar às pessoas, estamos a fazer um bom trabalho", diz Hugo Gonçalves.

Sobre escrever um musical, partilha que viu muitos para poder escrever este, o seu primeiro. "Felizmente, a Bárbara e a Carolina estavam em sintonia comigo e também gostavam de musicais em que a dramaturgia não é toda feita a cantar, como acontece no 'Les Misérables'. Gosto mais de coisas como o 'La La Land' ou o 'Chicago', em que a dramaturgia, quer em palco, quer no cinema, é muito forte. Felizmente, eu escrevi a peça primeiro e sugeri alguns lugares no texto para músicas, mas foi um trabalho colaborativo em que depois a Bárbara e a Carolina sugeriram outras músicas e colocá-las em outros lugares", destaca.

"Este espetáculo significa que 50 anos depois ainda é importante gritar: 'Fascismo nunca mais!'"

Bárbara Tinoco e Carolina Deslandes são unânimes: este foi um "processo muito grande de aprendizagem". E, depois de mais de um mês de ensaios, assumem-se apenas como "cantoras e aspirantes a atrizes ou cantoras e a tentar muito", como contam em coro.

Diz Carolina: "entrar no espetáculo acontece porque somos loucas e queríamos dar corpo a este projeto a que estamos absolutamente dedicadas, e quisemos dar voz à personagem confiando na equipa que temos à nossa volta. Foi um processo muito grande de aprendizagem para nós, que é chegar a um ponto em que estás confortável na carreira, descobres a tua voz, a tua identidade, fazes salas grandes e tours e vamos para um lugar novo com todas as possibilidades de sermos criticadas e não correr como tem corrido a música, mas isso é um exemplo da coragem que temos tido em quase tudo na nossa vida".

"Esse é também o exemplo vivo que queremos dar", continua. "Nós podemos ser efetivamente tudo o que quisermos se nos dedicarmos a isso e se tivermos a oportunidade e a vontade de fazê-lo. Temos estado as duas sempre juntas a trabalhar na nossa música e agora nisto, porque nós é que definimos um bocadinho o limite, e queremos fazer mais e podemos fazer mais. É esse o motor dos sonhos, que nos põe a trabalhar e nos faz dar passos ousados e fazer maluquices. Eu não fazia isto se ela não estivesse comigo e isso também foi fundamental", destaca.

Sobre a companheira de percurso, não poupa elogios. "A Bárbara é muito mais metódica, muito mais organizada e produtiva, confio-lhe a minha vida. Se ela me disser que para o ano fazemos um espetáculo em que saltamos em cima de crocodilos e eles podem morder ou não, acho que é por aí que vou", ressalva.

Bárbara Tinoco não diminui o tamanho do desafio, pelo contrário."Foi um exercício de humildade da nossa parte, porque estamos a expor-nos a ser ridículas. Além do exercício de toda a equipa, porque tivemos de fazer duas personagens e tivemos de passar o texto muitas vezes e nunca ninguém nos mandou para lado nenhum".

Sobre o simbolismo da peça nos 50 anos da democracia, aponta também que "este espetáculo significa que 50 anos depois ainda é importante gritar: 'Fascismo nunca mais!'.

A frase que resume melhor este espetáculo é, diz Tinoco corroborando o autor da peça,  “o direito da liberdade vem com o dever da memória”. "Estas pessoas existiram, não com estes nomes, Olívia e Clara, mas o espetáculo fala de todas as pessoas que existiram naquela altura, dos nossos avós e de todas as pessoas que nós conhecemos que viveram coisas parecidas com esta. Este é o nosso dever da memória: a lembrança do que é não ter liberdade, a lembrança do que é ser mulher, ainda muito atual no que diz respeito à mulher, sobre a questão de ter filhos ou não ter filhos, sobre estar apresentável . Tudo isto são temas atuais e deviam estar ultrapassados e não estão".

"É um espetáculo atual e antigo e vem lembrar os mais jovens da importância de votar e os mais velhos de outras coisas, esses de forma diferente porque viveram aquela época. Para os jovens como eu, que tenho 25 anos, vem-me lembrar que levamos as coisas como garantidas e a política é um sítio em que nada está garantido e é preciso celebrar todos os anos a liberdade", afirma Bárbara Tinoco.

A experiência tem sido tão envolvente que não conseguem identificar do que gostam mais. Escrever? Compor? Representar? "Tudo", disse Carolina, sem qualquer hesitação. "A graça do processo é a soma das coisas. Escrever e fazer canções é algo com que estamos familiarizadas, mas nunca sendo outras pessoas, ou seja, sendo uma personagem, um soldado, ou pais de alguém… Mas é muito engraçado pessoas com características diferentes cantarem a mesma canção e haver muito espaço nos poemas para isso. Temos a ideia de que existem espaços nos poemas para nos revermos e acharmos que são sobre a nossa vida, mas, por vezes, para um poema que para mim faz sentido num lado da minha vida há outra pessoa que pega nesse poema e leva para outra situação que faz sentido na vida dela, e essa parte da canção fascina-me. Ou seja, compor foi muito divertido, aprender o texto foi muito divertido, começar a marcar em palco, escolher o guarda-roupa. O todo foi bom, não dá para excluir partes, o todo é fascinante e aterrorizador", diz.

"Sinto que vou para a escola todos os dias, tenho uma mochila, uma lancheira, almoço para mim e para os colegas e é uma oportunidade para aprender", acrescenta.

Para Bárbara Tinoco a experiência foi semelhante: "Foi a primeira vez que fizemos imensas coisas e todas as primeiras vezes são assustadoras, mas nunca nos esquecemos delas. Mas todos éramos assim. O Hugo nunca tinha escrito para teatro, nós nunca tínhamos composto uma banda sonora nem individualmente. O Dinarte e Mourato não são cantores, o Ricardo nunca tinha encenado um espetáculo tão grande, por isso não estávamos sozinhas".

"Este espetáculo é a visão de várias visões, de vários sonhos e não poderia ser feito de outra forma"

Tem a palavra Ricardo da Rocha, o encenador estreante que destaca como este processo foi "gratificante e de grande partilha". "Este espetáculo traz para palco uma certa inocência e frescura na abordagem ao musical. que eu penso que é análoga ao 25 de Abril, quando as pessoas estavam a tentar construir uma sociedade de raiz e uma democracia".

"Esta é a primeira vez de muita gente num espetáculo desta dimensão, inclusive a minha num desta envergadura. É a primeira vez do Hugo a escrever para teatro, a primeira vez delas a fazer teatro, a compor e a representar. Tudo isto, apesar de ter criado um sentimento de grande pânico no primeiro ensaio, trouxe semelhanças ao que se vivia no 25 de Abril, onde as pessoas não sabiam como o futuro era, mas tinham muita vontade de construir qualquer coisa", acrescenta.

Ricardo Rocha - Encenador

Sobre os ensaios com um grupo maioritariamente inexperiente no que a musicais diz respeito, conta que "o que eu tentei trazer para a sala de ensaios foi um processo bastante horizontal onde partilhássemos todos as nossas inquietações e dúvidas, e a ajuda de atores experientes, a direção de atores da Maria Henriques e a Rita Spider na cenografia ajudaram a produzir este resultado final". "Este espetáculo é a visão de várias visões, de vários sonhos, e nesse sentido não poderia ser feito de outra forma", diz ainda.

"Se não tivesse acontecido o 25 de Abril nós não podíamos fazer este espetáculo e isso é uma coisa que está sempre na nossa cabeça"

No que diz respeito à diferença entre estas peças e outras já feitas sobre o 25 de Abril,  Bárbara Tinoco destaca o facto de existir "música nova, ou seja, não fomos buscar nada". "É um espetáculo que fala de coisas muito pesadas de uma maneira leve, que é a minha forma de arte preferida: coisas tão complexas que conseguem ser contadas com simplicidade". "É um espetáculo para todas as idades: a minha mãe vai retirar uma coisa, a minha irmã de 15 anos vai retirar outra e uma criança que venha ver vai retirar outra, mas todos podem ver o espetáculo. Isto para mim é a magia da arte", diz a cantora.

Carolina sublinha também o que considera ser uma máxima importante neste espetáculo: "Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, nós não podíamos fazê-lo, e isso é uma coisa que está sempre na nossa cabeça". "Cada comemoração do 25 de Abril é fundamental, principalmente com as pessoas que viveram aquele tempo e fizeram canções de intervenção e lutaram contra o sistema. Mas nós fazemos parte daqueles que não fizeram parte, mas votam e querem alertar as gerações abaixo que é um dever preocuparmo-nos com quem nos governa e com as condições que nós temos para viver a nossa vida", diz.

"Vivemos num mundo que está todo apontado para o consumismo, para a velocidade, e é isso que faz com que a memória seja uma coisa chata e aborrecida. Por vezes, se a memória for dita a cantar e com uma história criada de raiz, tu tens a atenção das pessoas, mas se calhar se fossem ensinadas numa aula as pessoas não iam prestar tanta atenção. É o que acontece com as músicas e com os filmes e com a arte no geral, que é nós somos pessoas diferentes depois de ler, ouvir ou ver um filme, e é isso que nós gostávamos que acontecesse com as pessoas que viessem aqui", sublinha.

Questionadas ainda sobre o público jovem e os fãs de ambas, que querem trazer para ouvir falar da revolução, Tinoco revela que essa é uma das motivações para mudarem de personagens. "Há uns fãs que querem vir ver a Carolina. Há uns fãs que querem vir ver a Bárbara. Existem fãs para ver as duas e portanto queremos trazer toda a gente".

E a troca foi difícil? Carolina define como "uma loucura", porém facilitada pelo facto de as duas personagens serem irmãs, algo que "as prende à nossa vida". "Nós passamos muito tempo juntas, lemos os mesmos livros, ouvimos as mesmas canções, fazemos viagens juntas e a nossa vida é como se fossemos irmãs. Isto é só sermos lados opostos da mesma força, uma é água e outra é fogo. Há dias em que ela está furiosa e outros sou eu. É fazer disto realidade".

Sobre a personagem principal que partilham, Olívia, dizem ser muito mais difícil de interpretar do que Clara, também interpretada por ambas, apesar de que, "num contexto político tão sério, ser sempre o lado leve da força também é muito difícil". Porém, esperam aproveitar os dias em que não são Olívia para descansar.

Naquilo que une Bárbara e Carolina às personagens que interpretam, Deslandes afirma que "a Clara é a pessoa que eu gostava de ser, a Olívia é a pessoa que eu sou. Quando comecei a ler o texto achei-a sempre muito contestatária, muito interventiva, e o meu namorado disse logo: 'Oh amor, ela és tu! E as coisas que te fazem confusão nela são as coisas que te fazem confusão a ti em relação a ti', e é verdade. As coisas com que nós nos identificamos fazem com que nós a perdoemos em certas coisas e com que nós nos julguemos", termina.

O musical é produzido pela Força de Produção e pela Primeira Linha, e vai estar em cena no Teatro Maria Matos, em Lisboa, entre os dias 14 de fevereiro a 28 de abril. Os preços variam entre os 20 e os 25 euros, e os bilhetes podem ser adquiridos aqui.

Em maio, nos dias 30 e 31, ruma à cidade do Porto, onde estará no Coliseu Porto Ageas, com bilhetes entre os 15 e 35 euros, também já disponíveis aqui.

O ensaio solidário do espetáculo decorreu ontem, 13 de fevereiro, com a totalidade das receitas a reverterem a favor da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress de Guerra.