Dendiara é uma personagem fictícia que dá nome ao livro “O passeio de Dendiara” da diplomata brasileira Ana Beltrane, que condensou na menina inventada as histórias verídicas que conheceu quando foi cônsul-geral do Brasil em Caiena, na Guiana Francesa.

Em entrevista à agência Lusa a partir do Uruguai onde agora trabalha, quando “O passeio de Dendiara” está prestes a ser lançado em Portugal, (na Feira do Livro de Lisboa que começa dia 26) Ana Beltrane explica que as personagens do livro são fictícias mas baseadas em personagens e factos reais.

“Dendiara foi inventada com base em crianças reais, em situação de risco, que eu conheci pessoalmente enquanto fui Cônsul do Brasil na Guiana Francesa. Conheci meninas prostituídas muito cedo, meninas grávidas, meninas com doenças como o Sida”, também meninos “mirrados” e quase deformados, “trabalhando em condições muito duras e perigosas para a saúde”, disse à Lusa.

Dos vários casos de abuso infantil construiu a personagem Dendiara, para não identificar diretamente nenhuma das crianças reais, que podem ser hoje jovens adultos “talvez tentando superar as situações traumáticas que viveram”.

“E não quero que tais jovens revivam, a partir do meu relato, um passado doloroso, que eventualmente lhes seja difícil processar. Assim, a personagem Dendiara, como a história que relato no livro, não existiu. Crianças abusadas, em situação de risco, sim, existem”, explica.

O livro conta os esforços da diplomata para perceber como é que uma menina brasileira, de cerca de 10 anos, surge sozinha na fronteira com a Guiana Francesa, grávida e muito doente. No hospital de Caiena, capital da Guiana francesa, todos os dias a leva para brincar na ala pediátrica e vai descobrindo nesses “passeios” que a menina trabalhava no meio da selva, numa mineração de ouro, onde a “madrinha” a prostituía.

Ana Beltrane, partindo desses passeios, denuncia o drama da mineração de ouro na Amazónia, mesmo em zonas protegidas. À Lusa explica que o garimpeiro ilegal, ainda que não seja um homem mau, nunca respeitou parques ou florestas nacionais ou reservas indígenas.

“O garimpeiro não é um homem mau ou perverso. É apenas um homem obcecado que, acima e além de toda lógica e de toda a ética, aferra-se à crença de que encontrará, em algum momento, o almejado filão (de ouro)”.

Trabalha todos os dias para isso e “qualquer coisa que se interponha entre o garimpeiro e sua crença inabalável, não tem maior importância e deve ser superado. Inclusive leis e limites”, diz a diplomata, acrescentando que não é novidade que mal se fale de ouro os garimpeiros entrem pela floresta, se instalem nas margens de rios e comecem a destruir florestas e rios.

“Não saberia dizer se há ou não garimpeiros ilegais em atividade, hoje, nas florestas do Amapá ou no Parque do Tumucumaque, porque eu não trabalho mais naquela região fronteiriça desde 2013, data em que deixei Caiena. Lembro, porém, que o ouro tem um imenso, irresistível poder de atração sobre os garimpeiros: se há notícia de ouro em algum lugar, lá vão eles”, acrescenta, afirmando-se por isso convicta, pelas notícias que recebe, que o garimpo (mineração) ilegal acontece por toda a Amazónia, onde quer que um pouco de ouro seja encontrado por alguém.

E com ele chega outro flagelo, que a autora descreve no livro e lembra à Lusa. A contaminação por mercúrio da floresta amazónica. O mercúrio é, lembra, o método de separação do ouro mais barato e fácil. Mas causa uma contaminação persistente na natureza e representa perigo de vida.

Porque é um metal que não se dissolve permanece na natureza, entra nos rios, passa para crustáceos e plantas e deles para os peixes e depois para as pessoas. “Segue intoxicando todo o mundo”, afeta a água, os animais nas florestas.

“Eu não saberia quanto dos rios brasileiros, especialmente na Amazónia, estão contaminados pelo mercúrio. Os rios amazónicos são imensos, gigantescos, mas o mercúrio está lá e, se o garimpo clandestino continuar, haverá cada vez mais poluição pelo metal”, avisa Ana Beltrane.

Mas há mais. Ana Beltrane fala das áreas florestais destruídas pela mineração ilegal, condenadas a muitos anos de aridez ou mesmo desertificação definitiva.

“É muito grande o dano provocado pelo estabelecimento do garimpo, que promove o corte indiscriminado das árvores, o arrancamento brutal das raízes e o uso de jatos de água e de máquinas pesadas para revolver a terra do chão ou o cascalho do leito dos rios”.

A floresta pode até reconstruir-se, mas é um processo longo e lento, ou fica mesmo desarborizada, como se fosse uma “cicatriz terrosa, opaca, sem vida, no verde vigoroso da mata. Isto não é uma imagem literária, é o que a gente vê do helicóptero. Eu vi”.

Ana Beltrane conta à Lusa que a primeira vez que esteve num lugar assim ficou de tal forma impressionada que nunca mais conseguiu usar nada de ouro. “Nem brinco, nem pulseira, nem colar, nada!”. “No meio daquele cenário de apocalipse (…) eu vi que não precisava de ouro para viver”.

É esta Amazónia, a da fronteira entre o Brasil e a Guiana francesa, do estado do Amapá, do rio Oiapoque ou do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, que fala Ana Beltrane. Das onças em extinção. Dos índios e das suas tradições e da noção que têm que a mineração suja os rios e envenena os peixes. Das crenças e deuses da Amazónia. Do percurso do ouro à margem das leis, e da prostituição e exploração sexual.

Ou do Putanic (assim chamado em homenagem ao Titanic), um navio bordel que navegava pelos rios do Amapá e da Guiana Francesa, chegando  a cada campo de mineração ilegal, levando sexo e cerveja em troca de ouro. Ana Beltrane diz à Lusa que esse sim, existiu, com esse mesmo nome.

O resto também, mas foi ficcionado, para proteger “as grandes vítimas silenciosas, as crianças”. Ana Beltrane diz que precisava de contar esta história. Pelas crianças, mas também pelo “pedaço riquíssimo do planeta” que foi dado a cuidar ao Brasil.

Com 192 páginas, “O passeio de Dendiara”, editado em Portugal pela Tema Editorial, deverá passar a filme, com um pré-acordo entre a autora e a produtora brasileira Persona Filmes.