CAPÍTULO 1
É com as pequenas coisas que começa: uma segunda escova de dentes no suporte ao lado do lavatório, algumas peças de roupa na gaveta mais pequena, carregadores de telemóvel de ambos os lados da cama. As coisas pequenas vão então aumentando de tamanho: giletes, elixir bucal e pílulas começam a competir por espaço no armário dos medicamentos, e a pergunta «Dás cá um salto?» passa a «Que cozinhamos para o jantar?»
E, por mais que o temesse, era inevitável darmos este passo.
É a primeira vez que conheço as pessoas que se encontram reunidas à volta da mesa, pessoas que o Ryan conhece desde pequeno, porém, a nenhuma delas passou despercebido eu já fazer parte da vida dele. São os pequenos apontamentos femininos numa casa masculina nos quais qualquer outra mulher repara mal transpõe a porta: as almofadas a condizer no sofá ou a suave fragrância a jasmim que emana do difusor em cima da estante dos livros.
Uma voz vem a flutuar por cima da mesa à luz das velas, desvia-se do centro de mesa que me garantiram ser «delicado, mas seguro» e suspende-se no ar à minha frente.
— Evie. É um nome fora do vulgar.
Indecisa sobre se devo responder à pergunta que não é realmente uma pergunta, viro-me para a Beth.
— É um diminutivo de Evelyn. Deram-me o nome da minha avó.
As mulheres trocam olhares à socapa, numa comunicação silenciosa de um lado ao outro da mesa. Cada resposta minha é avaliada e catalogada para discussão posterior.
— Oh, que amoroso! — guincha a Allison. — A mim também me deram o nome da minha avó. De onde é que disseste que eras?
Não disse, e elas sabem. Como aves de rapina, vão bicar até mais não, a noite toda se for preciso, até satisfazerem a sua curiosidade.
— De uma pequena cidade no Alabama — respondo.
Antes que possam perguntar de que cidade especificamente, o Ryan muda de assunto.
— Allison, vi a tua avó na mercearia a semana passada. Como é que ela tem andado?
Isto garante-me uma pausa para tomar folego, enquanto a Allison debita como a avó se tem arranjado desde a morte do marido. Mas não demora muito até que eu volte a ser o centro das atenções.
Não preciso de conhecer estas pessoas para saber tudo sobre elas. Conhecem-se desde o infantário e mantiveram o círculo pequeno até à cerimónia de finalistas do secundário. Escapuliram-se da cidade em grupos de dois e três, distribuindo-se por uma mão-cheia de universidades, todas a uma distancia daqui passível de percorrer de carro. No campus, integraram fraternidades e sororidades com outros grupos de dois e três provenientes de contextos similares, apenas para gravitarem de volta para esta cidadezinha no Luisiana, voltando a fechar o círculo. Trocaram as letras gregas das sororidades pela filiação na Junior League local, por jantares e partidas de golfe aos sábados à tarde, contanto que nada disso interfira com as transmissões dos jogos de futebol americano da Conferência do Sudeste.
Não as censuro por serem assim, pelo contrário, invejo-as. Invejo o à-vontade que sentem nestas situações, por saberem exatamente o que esperar e o que delas se espera. Invejo a descontração que advém de viverem numa cidade onde toda a gente já as viu no seu pior e, ainda assim, as aceita.
— Como é que se conheceram? — quer saber a Sara, recentrando com isto a atenção em mim.
É uma pergunta relativamente inocente, mas que ao mesmo tempo me enerva.
O sorriso no rosto do Ryan diz-me que ele sabe como esta pergunta me faz sentir e que está disposto a avançar novamente para responder por mim, mas eu adianto-me.
Com um dos guardanapos de pano brancos que comprei especificamente para a ocasião, limpo delicadamente a boca e digo:
— Ele ajudou-me a mudar um pneu furado.
O Ryan tê-los-ia enchido de pormenores, mais do que merecem, razão pela qual o detive. Deixo de fora a informação de que foi na paragem para camiões nas imediações da cidade em cujo pequeno bar-restaurante eu trabalhava, servindo as bebidas. E omito também que, por oposição à parafernália de siglas que fazem parte do seu vocabulário, desde MBA a MRS, o único acrónimo que conheço é GED, os exames que dão equivalência ao 12.º ano.
Este é o tipo de informação que estas pessoas — as suas amigas — usariam contra mim, embora não o fizessem por mal. Porventura nem se aperceberiam.
Comentei com o Ryan que me preocupavam os julgamentos que fariam a meu respeito assim que soubessem que venho de um contexto tão diferente do delas. Ele asseverou que se está nas tintas para o que elas pensam, mas isso não é verdade. O facto de ter cedido à pressão para organizar um jantar e depois ter passado a semana a ajudar-me a preparar o menu perfeito diz-me mais do que as palavras que me sussurra no escuro, que gosta de mim por eu ser diferente, tão diferente das miúdas com quem cresceu.
A Allison vira-se para o Ryan e diz:
— Ora, ora, se não dá jeito ter um rapaz habilidoso como tu por perto.
Observo o Ryan. Resumi o nosso primeiro encontro a uma frase e, até agora, ele deixou-me escapar impune.
Ele olha para mim e esboça um pequeno sorriso, como quem diz que, por enquanto, o palco é meu e não se importa de alinhar.
O marido da Allison, o Cole, alvitra:
— Não me surpreenderia se ele próprio te tivesse furado o pneu só para te poder ajudar a trocá-lo.
Risota à volta da mesa e talvez uma cotovelada da mulher nas costelas, a julgar pela mão que o Cole leva ao flanco. O Ryan abana a cabeça, ainda sem tirar os olhos de mim.
Eu sorrio e solto uma gargalhada, não demasiado sonora nem demasiado demorada, para lhes mostrar que também eu acho piada à ideia de o Ryan recorrer a meios tão extremos só para me engatar.
Piada à ideia de que alguém pudesse observar outra pessoa durante tanto tempo até perceber que ele abastece sempre na mesma estação de serviço para camiões às quintas à noite, depois de passar o dia no escritório do Texas Oriental. Que esse alguém soubesse que ele prefere as bombas no lado oeste do edifício e que o seu olhar se detém sempre mais do que devia em qualquer rabo de saia que se lhe atravesse à frente, especialmente se for minissaia. E que esse mesmo alguém se servisse de pequenos detalhes, como o boné de beisebol da LSU no banco de trás do carro, ou a gravata da fraternidade universitária que espreita da camisa branca, ou ainda o autocolante do clube de campo colado no canto inferior esquerdo do para-brisas, para garantir que teriam assunto para falar quando se conhecessem. Que esse alguém, imagine-se, enfiasse um prego numa válvula de maneira que se ouvisse o assobio do ar a vazar.
Quero dizer: tem piada acreditar que uma pessoa se daria a tanto trabalho só para conhecer outra.
— Arrasei — digo eu, mergulhando o último prato do jantar na pia cheia de água com detergente. O Ryan aproxima-se por detrás de mim, os braços roçando nas minhas ancas até me envolverem a cintura. Apoia o queixo no meu ombro e pressiona os lábios naquele sítio no pescoço que me deixa arrepiada.
— Adoraram-te — sussurra.
Não me adoraram nada. Quando muito, satisfiz-lhes a primeira onda de curiosidade. E imagino que, ainda antes de o primeiro carro ter arrancado, cada uma das mulheres no lugar do pendura já se tinha posto a enviar mensagens às outras, esmiuçando cada momento da noite, e a usar a barra de pesquisa em todas as redes sociais na tentativa de apurar quem é que eu sou exatamente e de que pequena cidade no Alabama é que venho.
— O Ray acabou de me enviar uma mensagem. A Sara pede o teu número para te convidar a almoçar na semana que vem.
Foi mais rápido do que previ. Parece-me que a segunda onda de curiosidade se precipita na minha direção, impulsionada pelo facto de as pesquisas terem fornecido apenas o mínimo de informação, deixando-as sedentas por mais.
— Dei-lhe o número. Espero que não te importes — diz ele.
Viro-me para ele e percorro-lhe o peito com os dedos até as minhas mãos lhe emoldurarem o rosto.
— Claro que não. São os teus amigos. E espero que venham também a ser os meus.
Portanto, agora haverá um almoço durante o qual as perguntas serão mais diretas, uma vez que o Ryan não estará presente para pôr cobro à enxurrada.
Ponho-me em bicos de pés e puxo-o para mim até os nossos lábios ficarem a milímetros de se tocarem. Adoramos esta parte, a antecipação, quando as nossas respirações se misturam e os meus olhos castanhos se fixam nos seus olhos azuis. Estamos perto, mas não demasiado perto. As suas mãos deslizam debaixo da bainha da minha saia, sinto-o afundar os dedos na pele macia da minha cintura, enquanto as minhas mãos deslizam para a sua nuca, os dedos enrolando-lhe os cabelos morenos. O cabelo do Ryan está mais comprido do que da primeira vez que nos vimos, quando comecei a tê-lo debaixo de olho. Disse-lhe que gostava dele assim, que gostava de ter algo a que me agarrar. Depois disso, nunca mais o cortou. Os amigos ficaram surpreendidos quando o viram, pois, pelo que percebi da minha própria pesquisa nas redes sociais, ele nunca tinha usado o cabelo a roçar o colarinho. Como consequência, procuraram as respostas em mim. Porque é que 0 Ryan mudar? Foi por causa desta miúda?
Ele desce as mãos e agarra-me nas coxas por baixo da minissaia, içando-me, e eu envolvo o seu tronco com as minhas pernas.
— Dormes cá? —sussurra, apesar de estarmos sozinhos em casa. Faz-me esta pergunta todas as noites.
— Sim — sussurro em resposta. Sempre a mesma resposta.
A boca do Ryan paira sobre a minha, deixando ainda uma nesga de espaço entre nós. Está tão perto que o vejo desfocado. Apesar de me estar a dar a volta à cabeça, espero que seja ele a pôr um fim à distancia que nos separa.
— Não quero ter de continuar a perguntar. Quero que cá estejas todas as noites, porque esta também é a tua casa. Aceitas? Fazer desta a tua casa?
Afundo os meus dedos no seu cabelo e cinjo-o com mais força entre as pernas.
— Estava a ver que nunca mais perguntavas.
Sinto-lhe o sorriso nos meus lábios e ele beija-me enquanto me leva da cozinha até ao quarto.
O nosso quarto.
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