1991. Os Nirvana lançam “Nevermind”, em setembro desse ano, e apenas quatro meses depois conseguem o impensável: destronam Michael Jackson, o incontestado Rei da Pop, do primeiro lugar das tabelas de vendas. A indústria musical é apanhada de surpresa. Até então, o mundo da pop comercial era terreno fértil para o R&B baladeiro (com o disco de estreia de Mariah Carey, editado em 1990, a atingir o cobiçado “número um” em 1991 e a permanecer no topo durante onze semanas), para o hip-hop pateta (com Vanilla Ice a provar que os brancos não sabiam, ainda, fazer rap) ou para a barulhenta extravagância, alimentada a álcool e a mulheres, de metaleiros cabeludos com pose de macho (Van Halen, Skid Row, até mesmo os Guns N' Roses). Uma banda de três estarolas deprimidos, dotados de uma adolescência perene e de um bom gosto musical, enraizado no punk, não era propriamente encarada como chave para o sucesso.

Ninguém tinha previsto que 'Smells Like Teen Spirit', “Nevermind” e os Nirvana conseguissem vender como venderam, ou que passassem a ser vistos – desde logo e até hoje – como porta-estandartes da chamada “Geração X”, a geração que cresceu nos anos 70 e 80, e cujos pais «criaram um mundo onde não podiam viver», conforme o descreveu Kim Gordon em “Our Band Could Be Your Life”. Nem mesmo quem, dentro das grandes editoras, havia apostado precisamente neles e noutros artistas, como os Sonic Youth, os Soundgarden ou os Mother Love Bone. Mais que para vender discos, as majors contratavam estas bandas por uma questão estética, para poderem vender a ilusão de estar sintonizados com a juventude. É como no liceu: toda a gente se quer dar com a malta fixe.

Para ouvir enquanto lê

Ninguém o previu, mas aconteceu. “Nevermind” vendeu mais de 30 milhões de cópias por todo o mundo e, para além de levar milhares de pessoas a colar posters de Kurt Cobain nos seus quartos, rendeu muito dinheiro a uma indústria que, desde então, nunca mais foi a mesma – e que correu não só Seattle como todo o território dos Estados Unidos em busca da next big thing. O que daí se retira de positivo foi ter trazido o chamado “rock alternativo” para a ribalta. Só que também houve um lado muito, muito sombrio: a pilhagem de cenas musicais localizadas, mais ou menos estabelecidas, e a consequente destruição não só de algumas bandas como também de certos indivíduos que não estavam de todo preparados para lidar com tamanha pressão. Tal como nas corridas ao ouro em finais do século XIX, foram muito poucos os que de facto prosperaram. Os Nirvana, que eram underdogs dentro do mainstream, conseguiram-no. Mas o que aconteceu aos que o eram fora dele?

Autenticidade e bom senso

Não é como se as grandes editoras tivessem descoberto, em 1991, que o que de muito bom se faz fora dos radares do público em geral pode vir a ser comercialmente viável. Nos anos 60, o boom do rock psicadélico também levou muitos “caça-talentos” à procura de regiões musicais menos áridas e mais ácidas. O mesmo sucedeu com o disco, no final dos anos 70, e com a new wave, no início dos anos 80. A diferença, salientou Steve Knopper num artigo para a NPR, é que em 1991 e 1992 «as grandes editoras tinham mais dinheiro que nunca», fruto da popularidade dos CDs, da MTV e de estrelas como Michael Jackson. No ano em que “Nevermind” alcançou o primeiro lugar, escreveu Knopper, os lucros obtidos com a venda de discos «ultrapassaram os 9 mil milhões de dólares» - o que conferia às majors uma certa folga financeira, indispensável para apostar em novos talentos.

Após uma década em que tudo foi glamour, despreocupação, cocaína, sexo e Wall Street, em que Jackson se estabeleceu como Rei e Madonna lhe seguiu os passos como Rainha, os anos 90 trouxeram de volta o rock n' roll feito com guitarras sujas e mensagens abstratas. Que é como quem diz, a autenticidade, de acordo com quem coloca nessa palavra um significado quase religioso. Mas isto não significa que o regresso do rock às tabelas de vendas tenha sido decidido com um mero estalar de dedos; há muito que estava na calha, quanto mais não fosse pelo simples facto de que todas as modas são cíclicas. «Nos vários meios underground, notavam-se os primeiros passos de um ressurgir» do rock, escreve Simon Reynolds em “Rip It Up and Start Again”, referindo-se à segunda metade da década de 80. «Conceitos desprestigiados e descartados (autenticidade, rebelião, comunidade, transgressão, resistência), sons ridicularizados e fora de moda (a guitarra elétrica distorcida, o rosnar cru vindo da garganta) andavam por aí, à espera de regressar».

Enquanto o resto do mundo alimentava o seu desejo de algo mágico via sintetizadores e baladas eletrónicas, locais havia em que esse desejo era preenchido pelo ribombar das guitarras, cidades nas quais o underground crescia tão à margem que quase se diriam enclaves dentro de um gigantesco estado pop – como Seattle. E mesmo as grandes editoras estavam já atentas ao que se fazia dentro desses meios. Os Nirvana podem ter derrubado as barreiras principais mas, anos antes, grupos como os Mission of Burma (que Gerard Cosloy, da Homestead, diz «terem ajudado a criar um ambiente 'comercial' onde esse género de artistas poderia ser valorizado») e os Hüsker Dü (que foram a primeira banda-chave do indie a assinar por uma major, no caso a Warner Bros.) tinham dado o mote.

Segundo Michael Azerrad, o contrato assinado pelos Hüsker Dü «tornou-se num modelo seguido por muitas bandas independentes à espera de assinar por uma grande editora», já que assegurava que o grupo mantinha um controlo criativo total sobre a sua obra, sem o input de executivos de fato e gravata que não percebiam – nem nunca poderiam perceber – de onde é que aquela música vinha. Os Sonic Youth, a banda independente por excelência, beberam dessa mesma fonte ao assinar pela Geffen, com um bónus: o seu contrato continha uma cláusula que lhes permitia nomear outros artistas para a mesma editora. A jogada deu frutos. Os Sonic Youth levaram a Geffen a assinar com os Nirvana, e um ano depois “Nevermind” derrubaria tudo à sua volta.

Dinheiro, maldito dinheiro

Numa cena cujos ideais punk eram vistos como inabaláveis, não faltou quem se sentisse traído pelos Sonic Youth e pelos Nirvana. Mas estas eram mudanças inevitáveis. Em “Our Band Could Be Your Life”, Azerrad aponta que a cena independente da segunda metade da década de 80 «já não consistia em uma rede alternativa, de melómanos dedicados». Era, agora, «mais uma indústria à procura de aumentar a sua quota de mercado», razão pela qual alguns artistas se viraram para as majors: estas, pelo menos, sabiam o que faziam. Tinham a experiência necessária para levar o(s) produto(s) a outros patamares.

Quando “Nevermind” chegou ao primeiro lugar das tabelas de vendas, dessa forma validando o que se fazia em meios underground, tudo mudou. «Foi de loucos», lembrou Guy Picciotto, dos Fugazi. «Por um lado, dávamos concertos para mais pessoas mas, por outro, parecia que tínhamos passado a tocar ukuleles, tal foi o impacto daquilo que eles fizeram». Pré-“Nevermind”, os Fugazi eram “apenas” uma banda muito acarinhada por quem seguia o que ainda se fazia dentro do punk rock, numa altura em que a violência hardcore já se tinha esfumado. Em 1993, “In on the Kill Taker”, o seu terceiro álbum de estúdio, chegava às tabelas da Billboard e era reconhecido por publicações como a “Time” e a “Rolling Stone”, que meros meses antes nunca teriam dedicado duas palavras sequer ao grupo.

Fugazi | Facebook

Fiéis aos seus princípios, os Fugazi nunca assinaram por uma major. Ainda que estas tenham feito todos os esforços possíveis, para esse efeito. Durante uma curta temporada no Roseland Ballroom, em Nova Iorque, o grupo chegou a receber, nos bastidores, a visita de Ahmet Ertegun, o homem forte da Atlantic e à altura um dos homens mais poderosos da indústria musical. A proposta? «Tudo o que quisessem», e ainda mais 10 milhões de dólares. Os Fugazi recusaram. Outros não pensaram duas vezes. «Vi muitos amigos e conhecidos a transformar as suas bandas, de algo que faziam por paixão para um pequeno negócio», lamentou Steve Albini, dos Big Black / Rapeman / Shellac, hoje talvez mais conhecido como produtor, à fanzine “Punk Planet”. «Nesse processo, passaram a odiar as suas bandas, da mesma forma que eu odiava o meu emprego: porque era algo que tinham que fazer, era uma obrigação».

Aquilo que é então descrito como uma invasão do mainstream pelo underground era, dessa forma, o inverso: a indústria musical apontava agora para tudo aquilo que se pudesse assemelhar a, ou vir a ter o mesmo impacto que, “Nevermind”, pilhando e colonizando mentalidades. A comunidade ressentiu-se. Era precisamente o facto de pouco vender que a tornava unida; não havia incentivo à competição, e sim à cooperação. Quando o grande capital entrou em cena, os alicerces da cena indie quase que se desmoronaram. As rádios universitárias, que tão importantes haviam sido na disseminação de músicas em que as rádios comerciais não tocavam, tornaram-se cada vez mais formatadas. Pequenas editoras, que haviam criado redes de contatos nacionais, viam todo o seu trabalho ser cooptado pelas majors. E tornava-se cada vez mais difícil arranjar artistas para os seus catálogos, já que não dispunham dos mesmos fundos.

Nirvana, uma economia paralela

No epicentro estavam os Nirvana, «que se tinham tornado numa economia», conforme os descreveu Janet Billig Rich, sua antiga manager, à NPR. «Podias inventar uma banda, e inventar uma frase que o Kurt Cobain tivesse dito sobre ela», que o interesse das grandes editoras era praticamente garantido. Não há conhecimento de alguém que tivesse de facto aceite tal desafio, mas há artistas que beneficiaram, e muito, da sua associação a Cobain. É o caso dos Melvins, uma das bandas preferidas do falecido músico, e também uma das suas maiores influências. «Ele gostava deles. Como tal, toda a gente queria contratá-los».

Olhando para o percurso dos Melvins, nascidos do hardcore, sonoridade que viriam a fundir com o peso do heavy metal, seria difícil para alguém (a não ser que se goste mesmo do grupo) imaginar que eles algum dia seriam capazes de vender milhões de discos e lucrar milhões de dólares. Mas a Atlantic imaginou-o, única e exclusivamente por causa de Cobain. Em 1993, “Houdini”, o quinto álbum dos Melvins, ganhou o selo da Atlantic e atingiu um respeitável 29º lugar na tabela da Billboard para artistas “emergentes”, apesar de a banda contar, à altura, com dez anos de existência. Nos créditos, o líder dos Nirvana foi listado como co-produtor, apesar de o seu envolvimento no disco ser no mínimo questionável. «Gravámos algumas sessões com ele, mas chegou ao ponto de ele estar tão fora de controlo que, basicamente, tivemos que o despedir», contou o guitarrista e vocalista Buzz Osbourne à revista Kerrang!, em 2008.

The Melvins | Facebook

Apesar de ter lucrado com o negócio, ainda que não tanto que «pudesse comprar um Rolls Royce», Buzz não guarda grandes memórias do período em que os Melvins foram aposta de uma major. Muito menos da popularidade dos Nirvana, e de todos os problemas pelos quais o trio passou até final. «Eles deixaram-se estar ao lado de pessoas horríveis. Culpo-os por tudo o que se passou. Deixaram-se estar envolvidos com managers horríveis, com promotores horríveis, com tudo horrível. Não tinham que o fazer, mas fizeram-no», afirma, em “Everybody Loves Our Town». A experiência dos Melvins na Atlantic durou apenas três discos. Em 1996, com “Stag”, o grupo despediu-se de Ahmet Ertegun.

Os Meat Puppets, outra das bandas preferidas de Kurt Cobain, também não têm grandes recordações do mainstream. Formados em 1980 e apontados por Simon Reynolds como «a banda mais idiossincrática da SST», editora de Greg Ginn dos Black Flag, os Meat Puppets eram, no fundo, hippies, filhos de pais de classe média-alta, cuja principal fonte de diversão na adolescência consistia em rumar ao deserto para consumir drogas. Entre os seus artistas preferidos estavam grandes nomes do rock progressivo, como os Gong, os Mahavishnu Orchestra e os Gentle Giant, até que o punk lhes caiu no goto via Television e The Damned. Os seus primeiros álbuns espelhavam todas essas influências: punk, sim, mas também música psicadélica e até country.

No início dos anos 90, os Meat Puppets deram o salto da cena indie em que se encontravam rumo a um potencial estrelato, editando “Forbidden Places” pela London Records (que tinha assinado, muitos anos antes, com os ZZ Top, uma das suas bandas preferidas) e chegando ao topo em 1993, quando uma aparição ao lado dos Nirvana no hoje icónico espetáculo “MTV Unplugged” os tornou bastante apetecíveis para as majors. Que Cobain tenha juntado, ao alinhamento desse concerto, três temas presentes em “Meat Puppets II” ajudou, naturalmente, à festa. Na ressaca do espetáculo, os Meat Puppets foram chamados aos escritórios da PolyGram, onde seriam a nova aposta da editora para o rock. 'Backwater', o primeiro single retirado a “Too High to Die” (1994), chegou – com todo o trabalho de promoção realizado pela PolyGram – ao segundo lugar das tabelas rock, e os Meat Puppets viram-se e ouviram-se em revistas como a Rolling Stone e canais como a MTV.

No entanto, com esse sucesso veio o abismo. Sobretudo o das drogas, que passaram a ser consumidas em maior número, já que havia mais dinheiro para as adquirir. «É mais fácil adiar o tratamento para o vício quando tens meios financeiros de o manter», admitiu Cris Kirkwood, baixista do grupo, à NPR. «A tragédia aconteceu muito depressa. Cheguei ao ponto de não me encontrar funcional». A fama, e o vício, acabaram com os Meat Puppets durante anos, até que o grupo se reuniu em 2006 – e ainda hoje continua na estrada.

Nature vs. Nurture

Se os Melvins e os Meat Puppets até podiam ter uma ligeira vantagem – conheciam Kurt Cobain pessoalmente –, Daniel Johnston é um caso raro: tornou-se popular apenas e só porque Cobain envergou uma t-shirt com a capa de um dos seus álbuns, “Hi, How Are You”, originalmente lançado em 1983. O músico, que lutou toda a sua vida contra a doença bipolar, era pouco mais que uma nota de rodapé dentro da cena independente, apesar de bastante prolífico (onze cassetes gravadas, entre 1981 e 1988). Era, essencialmente, um daqueles nomes apenas conhecidos por quem tem paciência para ser uma espécie de arqueólogo musical, escavando aqui e ali em busca de tesouros.

Porém, quando Cobain apareceu com a supracitada t-shirt (que lhe havia sido oferecida pelo jornalista Everett True), as grandes editoras apressaram-se a tentar contratar Daniel Johnston. Nem mesmo o facto de este se encontrar internado num hospital psiquiátrico, após ter passado por um episódio psicótico que quase lhe custou a vida, e a do pai, as demoveu. A Elektra foi uma das que se chegou à frente, mas acabou rejeitada: era a “casa” dos Metallica, que Johnston considerava “satânicos”, receando que o quarteto thrash o magoasse. Acabou por ser a Atlantic a ganhar a guerra. “Fun”, lançado em 1994 e produzido por Paul Leary, dos Butthole Surfers, foi a única incursão de Daniel Johnston pelo mainstream; vendeu apenas 5800 cópias e, dois anos depois, o músico foi despedido.

O nome da Atlantic tem surgido bastante ao longo destas linhas, e isso se deve a Danny Goldberg, vice-presidente do departamento de A&R que, ao longo da década de 80, tinha trabalhado como manager de artistas como as Hole, os Sonic Youth, os Beastie Boys e, até, os Nirvana. «A Atlantic precisava de se focar nessa era do rock n' roll», afirmou à NPR. «Havia pessoas com uma ligação mais forte ao rock alternativo, ao punk ou ao grunge do que eu, mas não há dúvidas que uma ligação aos Nirvana era, para os artistas que tentámos – e conseguimos – contratar, um enorme sinal de credibilidade».

Nirvana | DR

Essa credibilidade estendia-se a todos os que trabalharam ou trabalhavam com os Nirvana, como o produtor Butch Vig, responsável por “Nevermind”. Uma noção que era também uma faca de dois gumes. «Assim que o disco saiu, propuseram-me trabalhar em dúzias de projetos, e muitos deles não eram apropriados», conta Vig em “Everybody Loves Our Town”. «Mandavam-me uma cantora de blues e perguntavam: “Podes pô-la a soar como os Nirvana? Podes dar-lhe uma 'sonoridade grunge'?” Como se eu a tivesse inventado». Para além dos próprios Nirvana, também a sua sonoridade funcionava como moeda dentro da indústria musical.

Os Mudhoney, um das bandas mais emblemáticas de Seattle, testemunharam de perto o rumo negativo que a cena independente estava a tomar antes de assinarem pela Reprise, em 1992. «Encontrámo-nos com o John Silva [manager de artistas como os Nirvana, Foo Fighters ou Nine Inch Nails] para discutir a possibilidade de assinar pela Geffen, via Sonic Youth. Estávamos num restaurante, e ele virado de frente para a televisão, que estava a dar a MTV. De repente, começam a dar o vídeo da 'Smells Like Teen Spirit', e ele começa a rir de uma forma maníaca. Notava-se o símbolo do dólar nos olhos dele», como num desenho animado, relembra Mark Arm.

Não só a sonoridade, como até mesmo a proveniência. No início dos anos 90, muitos foram os que se mudaram para Seattle em busca da fama e do dinheiro, como tantos outros desde sempre o fizeram com Los Angeles e Hollywood. Ter “Seattle” na certidão de nascimento abria muitas portas às bandas independentes. Foi o caso dos Flop, que editaram “Whenever You're Ready” pela Epic, uma subsidiária da Sony, em 1993. Que a sua música estivesse mais próxima dos Beach Boys que do grunge não queria dizer nada. «Se fôssemos de Birmingham, a Sony nem quereria saber», desabafa o vocalista Rusty Willoughby em “Everybody Loves Our Town”. «Pensavam que éramos grunge, e sermos de Seattle fez com que o negócio se fechasse». No mesmo livro, Ray Farrell, um dos executivos da Geffen, recorda pormenores ainda mais absurdos. «Não dava para apanhar um voo de Los Angeles para Seattle porque estavam sempre cheios de tipos de grandes editoras, à procura da próxima grande cena a seguir aos Nirvana. Se todos esses aviões se tivessem despenhado, a indústria musical teria desaparecido».

Apanhar os cacos

«1991 é o ano em que o punk chega finalmente à consciência de massas da sociedade global», afirma Thurston Moore no documentário “1991: The Year Punk Broke”. É também o ano em que o punk decidiu brincar com o diabo, muitas vezes sem perceber as consequências dessa dança. Bandas como os Flop, os Cell ou os Jawbox, que assinaram por grandes editoras durante esta “corrida ao ouro”, viram as suas carreiras despenhar-se assim que as majors perceberam que ali não estavam os novos Nirvana. Outros, como os Royal Trux, foram mais espertos. Formados por Jennifer Herrema e Neil Hagerty, casal desavergonhadamente heroinómano, os Royal Trux assinaram pela Virgin em 1991 por valores extraordinários: um milhão de dólares. Extraordinários, porque a banda era formada apenas por duas pessoas, e porque a sua música – um rock ruidoso, caótico, sempre mais perto de se auto-destruir do que de se erguer – estava o mais longe que se possa imaginar do que é tido como “comercial”.

Durante o período em que foram alvo das grandes editoras, Herrema e Hagerty – que até se viram forçados a contratar músicos para dar um concerto em Los Angeles, que seria frequentado por vários executivos – viveram de forma luxuosa: voos em primeira classe, hotéis caros, salas de ensaio próprias e já pagas. A sua experiência no mainstream durou muito pouco, mas durou o suficiente para que os Royal Trux tivessem uma vida minimamente confortável. Herrema usou, por exemplo, o dinheiro que ganhou para comprar uma casa. «Não desperdiçámos nada no que ao dinheiro disse respeito», explicou à NPR.

Com “Nevermind”, começa-se a falar são só de punk ou de grunge mas também de “rock alternativo”, etiqueta que foi colada a vários projetos então a surgir. Como os Smashing Pumpkins, que apesar de conotados com o grunge sempre preferiram mais a melancolia dos Cure que a masculinidade dos Black Flag. Tendo chegado a editar um single, 'Tristessa', pela Sub Pop, os Smashing Pumpkins assinaram pela Caroline em 1991 e editaram nesse mesmo ano “Gish”, o seu álbum de estreia, produzido por Butch Vig. Mesmo sem se conhecerem, ou sem se respeitarem sequer («toda a gente gozava com o Billy Corgan», afirma o realizador Dave Markey em “Everybody Loves Our Town”), a popularidade dos Nirvana abriu-lhes as portas do mainstream. E a sua própria editora sabia disso. Em 2018, Corgan revelou no Instagram que o videoclip para 'I Am One' ficou na gaveta durante anos «porque a editora só o exigiu para aproveitar a explosão grunge».

Billy Corgan, The Smashing Pumpkins / Rita Sousa Vieira - MadreMedia

Apesar da discórdia interna, com Corgan a demonstrar a sua pior faceta, a de controlador (foi ele quem gravou toda a parte instrumental de “Gish”, exceção feita à bateria), os Pumpkins voltaram ao estúdio para “Siamese Dream”, editado em 1993 e hoje considerado como um dos melhores álbuns dos anos 90. O disco vendeu quatro milhões de cópias só nos Estados Unidos, e levou-os ao top 10 da tabela da Billboard – algo que muito provavelmente não teriam conseguido se “Nevermind” não tivesse apontado o caminho do indie às majors. O mesmo sucedeu com os Flaming Lips, que assinaram pela Warner Bros. em 1991, editando “Hit to Death in the Future Head” nesse mesmo ano.

Os discos tinham mercado e, por arrasto, também os concertos. A primeira edição do festival Lollapalooza, fundado por Perry Farrell, dos Jane's Addiction, levou muita gente a descobrir pela primeira vez o “rock alternativo”. «Parecia que algo estava a acontecer. Isso foi o início de tudo», contou Dave Grohl à revista Time Out, em 2011. «No outono, a rádio, a MTV e a música tinham mudado. Se não fosse pelo Perry e pelo Lollapalooza, não estaríamos a ter esta conversa».

Pensado como uma espécie de festival itinerante, a primeira edição do Lollapalooza contava com artistas como os Butthole Surfers, Siouxsie & The Banshees, Violent Femmes e até o rapper Ice-T, para além dos próprios Jane's Addiction. O sucesso alcançado pelo festival ainda hoje é comentado. A revista Spin, como Grohl, afirmou que o Lollapalooza «mudou a trajetória dos anos 90», tornando-se «num modelo para os festivais americanos modernos».

A cooptação do mainstream da subcultura underground estava em marcha. O “rock alternativo” chegava ao topo – mas, no processo, deixava também de ser “alternativo”. «Todas as grandes editoras têm, hoje em dia, uma mão cheia de bandas com guitarras, de calças rasgadas, que escondem melodias debaixo de ruído», escreveu o The New York Times em 1993. Steve Albini, um dos poucos nomes célebres da cena independente norte-americana que nunca se vendeu, e um dos mais viperinos, foi mais longe: «O Lollapalooza não passa de uma estratégia de marketing, para bandas que fingem ser alternativas mas são só mais uma faceta do esquema de exploração cultural em massa». O mesmo dizem os Jesus & Mary Chain, que tocaram no Lollapalooza em 1993 e que em “Barbed Wire Kisses”, a sua biografia, se referem à experiência como «um erro». «Tentámos livrarmo-nos disso, mas percebemos que iríamos perder dinheiro».

1991: o ano em que o punk morreu

«À medida que as majors pilhavam cada vez mais bandas independentes», nota Michael Azerrad, «a confiança e a ligação pessoal entre as editoras independentes e as suas bandas esfumou-se». As editoras independentes deixaram de apostar tanto nos seus grupos, temendo que as grandes editoras roubassem e lucrassem com todo o trabalho árduo que haviam realizado. Houve, claro, quem contratasse artistas independentes pensando que, certo dia, iriam conseguir vendê-los às majors – mas esse género de apostas, como se a música fosse ações em bolsa, raramente deu frutos.

Ainda assim, o pós-”Nevermind”, em meios indie, também contou com as suas histórias de sucesso. Como a Matador, que se tornou numa das maiores editoras independentes dos anos 90, “casa” para artistas de culto como os Pavement, os Yo La Tengo, Liz Phair ou os Guided By Voices. Ou a Epitaph, que na ressaca do grunge trouxe de volta ao mainstream a sonoridade punk clássica, pelas mãos dos Offspring ou dos NOFX. E também a Drag City, onde hoje pontificam nomes como Bill Callahan ou Joanna Newsom. «As editoras comprometidas com noções como a integridade, o gosto e a comunidade continuaram a florescer», aponta Azerrad. A Dischord, dos Fugazi, ou a Touch & Go, dos Jesus Lizard e Shellac, são disso exemplo. O problema é que também isso contribuiu para o declínio do rock independente na segunda metade dos anos 90; havia demasiadas pequenas editoras a competir por um espaço. Como tal, o que se poderia apelidar de “comunidade” acabou por diluir-se. «O espírito do it yourself, que tinha dado origem ao movimento indie rock, ameaçava ser o seu fim», continua Azerrad. «Agora, toda a gente “fazia-você-mesmo” - e muito do que faziam era medíocre».

E o grunge? Passou de moda, como tantas outras modas alimentadas por uma indústria rapace. «No “Honky” [disco de 1997], que gravámos para a Amphetamine Reptile, há uma canção intitulada 'Laughing With Lucifer at Satan's Sideshow', que descreve a nossa experiência com as majors», explica Mark Deutrom, baixista dos Melvins entre 1993 e 1998, em “Everybody Loves Our Town”. «As vozes que se ouvem são do manager da banda, o David Lefkowitz, e de uma mulher, não me lembro quem, a citar frases que nos foram realmente ditas por indivíduos com um estatuto enorme dentro da Atlantic. Preciosidades como “devem considerar-se sortudos porque qualquer outra editora já vos teria despedido”. Acho que a 'Laughing With Lucifer...' é o verdadeiro epitáfio do grunge. As grandes editoras popularizaram-no, exploraram-no, e depois mataram-no quando deixou de render – como qualquer grande empresa o faria». O grunge, como o indie rock, estavam aparentemente mortos – mas não enterrados, como o início do milénio, quando grupos como os Strokes e os Arcade Fire surgiram em cena, o veio a provar. Mas isso é, naturalmente, outra história.


Ao longo de 2021, o SAPO24 publica uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.