Um

NASCIDO NUM MUNDO DE VIOLÊNCIA

O que é mais verdadeiro do que a verdade? Resposta: a história.
ditado judaico (de Isabel Allende TED Talk)

Uma história que se desvenda

Todos temos as nossas histórias para contar, e esta é a minha. É a minha verdade. Como as bonecas russas, esta é uma história contida em muitas outras. Como dizia o meu bom amigo Ian, «a distância mais curta entre dois pontos não é necessariamente uma linha reta». Este livro de memórias com histórias que se aninham dentro de outras é sobre a viagem da minha alma. É o caminho muitas vezes solitário percorrido por um missionário incauto, improvável e profundamente imperfeito.

Um dos princípios centrais do método de cura de traumas que desenvolvi ao longo dos últimos cinquenta anos é o de que não pedimos às pessoas que enfrentem os seus traumas diretamente. Em vez disso, encorajamo-las delicadamente a que se dirijam à periferia dessas sensações, emoções e imagens difíceis, e ajudamo-las a aceder primeiro a certas experiências corporais positivas essenciais. O que se segue é o exemplo de uma destas visitas a algumas memórias positivas específicas como preparação para a aceitação de um episódio terrível de agressão sexual. Como tal, vamos começar com uma descrição de duas das minhas alegres e centrais experiências de infância. Ambas foram tremendamente emocionantes, mas também representavam a segurança e o calor de um amor generoso.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Uma surpresa de aniversário

Embora tenha tido uma infância repleta de violência e de ameaças à vida, houve algumas ocasiões nas quais me senti querido e protegido. Lembro-me destas duas experiências que me deixaram com uma sensação de plenitude e abertura de coração, e com uma boa dose de autoconfiança. Acredito que estas impressões sensoriais e emocionais me ajudaram a sobreviver àquilo que certamente me poderia ter destruído.

Na manhã do meu quarto aniversário, acordei com uma grande surpresa. A meio da noite, os meus pais tinham entrado silenciosamente no meu quarto enquanto eu dormia profundamente. Então, debaixo da minha cama e estendendo-se pelo resto do quarto, tinham montado às escondidas os carris de um comboio elétrico Lionel.

O leitor consegue imaginar a minha alegria quando acordei com o barulho do comboio às voltas naqueles carris? Saltei imediatamente da cama e corri até ao transformador, onde podia controlar a velocidade do comboio. Toquei a buzina com alegria. Acredito que esta surpresa me deixou com uma sensação de maravilhamento e de ser amado. Refletindo sobre esta memória, recordo-me de uma ocasião, ainda antes desta, na qual senti uma alegria tremenda e exuberante ao ser abraçado, fazendo-me sentir muito especial.

Quando eu tinha cerca de dois anos, o meu pai era o conselheiro-chefe de um campo de férias de verão na Nova Inglaterra. Evocada por uma fotografia a preto-e-branco, tenho uma «memória corporal» dele na piscina. Lembro-me de correr e saltar para a piscina. Ele certificou-se de que eu não me afogava enquanto a água me cobria o corpo, que se afundava. Ainda sou capaz de sentir as mãos dele a fechar-se suavemente em volta das minhas ancas, a levantar-me acima da água, para depois me pousar na relva à beira da piscina. Eu começava então a andar às arrecuas e punha-me a correr, repetidas vezes, a toda a velocidade pelo relvado, e saltava para a piscina e para os braços acolhedores do meu pai. Ao fim de muitos destes saltos, a água rapidamente se tornou minha amiga. Depois, o meu pai passou a segurar-me os braços estendidos, e deixava-me deitado de bruços e a espernear enquanto eu fazia os meus primeiros movimentos natatórios. No seguimento desta introdução, apaixonei-me pela natação. Mais tarde, já adulto, dava sempre por mim em busca de lugares, num lago ou no mar, de um qualquer sítio onde pudesse voltar a sentir-me sustido pela água.

Ter presentes estas «memórias corporais» de uma sensação de ser cuidado ajudou-me a passar por muitos momentos de grande angústia, sem me sentir completamente esmagado e aniquilado. Anos mais tarde, na minha viagem de cura, estas memórias ajudaram-me na resolução do trauma que se segue.

Num momento de terror violento

Quando eu era um miúdo já adolescente, a minha família era objeto de prolongadas e potencialmente fatais intimidações por parte da máfia de Nova Iorque. O meu pai foi chamado a depor como testemunha contra Johnny «Dio» Dioguardi, um mafioso implacável da família criminosa Lucchese.* Numa tentativa de proteger a minha mãe e também a mim e aos meus irmãos mais novos de uma morte quase certa, o meu pai recusou depor contra Johnny Dio, embora tal lhe fosse exigido pelo jovem e ambicioso Robert F. Kennedy, então conselheiro-chefe da comissão do Senado de Nova Iorque que tinha como propósito investigar possíveis crimes de extorsão. Observar a imagem abaixo, uma fotografia de Johnny Dio, claramente vale mais do que mil palavras.

Johnny «Dio» Dioguardi, o chefe da máfia que causou muita dor não só à minha família, mas a muitas outras durante a sua vida de crimes e homicídios. É a personificação do tipo de trauma intenso para o qual o tigre interior tem de ser despertado, para que possa lutar e superá-lo.

Para ajudar a garantir o silêncio do meu pai, fui brutalmente violado com a tenra idade de cerca de doze anos por um gangue pertencente à máfia do Bronx, provavelmente os Fordham Daggers.**

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Este incidente violento teve lugar sob densos arbustos de um jardim do bairro, um lugar que até então tinha sido para mim um parque infantil e um refúgio. A violação foi um segredo que mantive escondido de todos, principalmente de mim mesmo. Estava enterrado nos recônditos da minha mente, mas o meu corpo «lembrava-se». Todos os dias, quando ia a pé para a escola, o meu corpo ficava tenso e a minha respiração tornava-se difícil, como se todo o meu ser passasse a um estado de hipervigilância, a preparar-se para um novo ataque. Mas ainda mais destrutivo do que isto era o medo constante de sofrer com a desintegração da própria estrutura da minha família e, com ela, o colapso de qualquer sensação duradoura de segurança.

Nunca fui capaz de falar com os meus pais sobre esta agressão, pois, se o fizesse, estaria a confirmar a violência que sofri. Como tal, entranhou-se-me profundamente na psique como um senti- mento generalizado de vergonha e de «maldade». Para afastar estes sentimentos terríveis, evitava a todo o custo pisar qualquer racha no passeio enquanto percorria cuidadosamente o trajeto entre a escola e a minha casa. Fazia-o como se de alguma forma pudesse repelir a ameaça com aquele ritual clássico. Além disso, rezava constantemente com a esperança de que Deus me protegesse de outro ataque. E para isto, pousava a mão no topo da cabeça, como era exigido pelos judeus ortodoxos. Fazia-o apesar de nenhum dos meus pais ser judeu praticante. Para dizer a verdade, quando o meu pai me via fazer aquele gesto, imitava-me e fazia pouco de mim. Era uma humilhação que eu temia. Quando me ponho a pensar nesta desmoralização, penso que talvez fosse a sua tentativa de me desencorajar, e acredito que (pelo menos na sua mente) ele estava a tentar «proteger-me» de o fazer em público, situação na qual eu poderia ser alvo de desprezo ou desdém. Infelizmente, não resultou. Apenas piorou as coisas. Sentia-me ridicularizado e humilhado por ele, ao mesmo tempo que era deixado completamente sozinho com o medo e a ansiedade.

Precisei de quarenta anos para conseguir aceder e libertar a «memória corporal» daquela violação brutal. Pude então restaurar gradualmente um sentimento duradouro de autocompaixão e «bondade». O que se segue é a forma como desenterrei e curei esta memória.

Um curandeiro ferido

Avançemos agora muitas décadas. À medida que fui desenvolvendo a Experiência Somática (SE), o meu método de cura de traumas, comecei misteriosamente a experienciar sensações perturbadoras persistentes e imagens fugazes. Parecia que a minha garganta e estômago se contraíam fortemente, entupidos com uma «gosma» branca e viscosa. Ciente de que estes sintomas alarmantes continuavam a atormentar-me, dei-me conta de que já era mais do que chegada a altura de tomar uma dose do meu próprio remédio. Como diz o ditado, ensinamos sempre aquilo que mais precisamos de aprender. Quíron, o arquétipo do curador ferido, estava a chamar por mim.***

Livro: "A Vida Depois do Trauma"

Autor: Peter A. Levine

Editora: Alma dos Livros

Data de Lançamento: 13 de março de 2025

Preço: € 15,95

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Ao lidar com esta minha angústia, pedi humildemente a um dos professores que havia formado que me ajudasse a desvendar as possíveis origens destes sintomas preocupantes. As lembranças que se seguem começaram a surgir à medida que me lançava numa exploração interior. Ao centrar-me inicialmente nas sensações corporais e depois nas imagens perturbadoras, alguns movimentos internos profundamente enterrados começaram a emergir.

* Johnny «Dio» Dioguardi (que foi mencionado nos filmes sobre a máfia Tudo Bons Rapazes e O Irlandês) foi uma cruel figura do crime organizado italo-americano e um extorsionista. É conhecido por estar envolvido no hediondo ataque com ácido que cegou e desfigurou o colunista Victor Riesel. Riesel estava a redigir uma denúncia sobre a máfia de Nova Iorque e sobre os falsos sindicatos que ajudaram Jimmy Hoffa a tornar-se presidente dos Teamsters. 

** Num website sobre o Bronx, alguém escreveu que, quando eu vivia no bairro, antes de 1953, havia um gangue chamado Fordham Daggers. Eu era demasiado novo para saber muito sobre eles, a não ser que todos lhes tinham medo. 

*** Na mitologia grega, Quíron era filho do titã Cronos e da ninfa da água Filira, que Cronos violou. Quíron foi ferido duas vezes: uma ao nascer e outra no fim da sua vida. A primeira ferida pode ser entendida como uma lesão emocional profunda por ser o resultado de uma violação e posteriormente da rejeição por ambos os pais. Apolo assumiria o papel de seu pai adotivo. Sendo um centauro, Quíron era literalmente um monstro, mas também um órfão e, por fim, um pária. Sendo metade homem, metade animal, Quíron personifica o conflito latente em todos nós, entre os nossos instintos animais e a razão ou divindade; entre a selvajaria dionisíaca dos centauros e a ordem apolínea do pai adotivo. No entanto, ele pende firmemente para o lado apolíneo e, em muitos aspetos, ofusca o deus da luz, dominando e até promovendo as artes e as ciências (techne e episteme), numa tentativa de compensar a sua rejeição precoce e de provar, tanto a si mesmo como aos outros, que também é digno de amor e aceitação.