Este texto contém spoilers
“Quanto melhor o espião, maior a mentira”. Mais do que um mantra orelhudo para adornar materiais promocionais e surgir em trailers, esta frase repetida ao longo de “Argylle” cola-se de formas inesperadas à combinação de filme e livro que abriu 2024 sob um manto de expectativa e confusão. Esta é a história do agente secreto que dá nome a estas obras e da sua criadora, Elly Conway, que também é a protagonista do filme e que pode ou não ser uma pessoa real. Confuso? Então prepare-se para tomar notas, vai ficar ainda pior.
O início do ano foi marcado pelo lançamento do livro “Argylle”, editado a 10 de janeiro pela Topseller, chancela da Penguin Random House, e pela estreia mundial a 2 de fevereiro de “Argylle”, filme realizado por Matthew Vaughn e com a participação de atores como Bryce Dallas Howard, Henry Cavill, Sam Rockwell, Dua Lipa, Bryan Cranston e John Cena. Mas nem o filme é uma adaptação do livro, nem o livro segue a história do filme. São duas entidades separadas sem o serem. Para explicar esta situação aparentemente bizarra, é preciso retomar a 2021.
Foi pelo Deadline que se soube nesse ano que Vaughn — cineasta responsável pela série Kingsman, entre outros filmes — ia lançar-se num novo franchise de, pelo menos, três filmes inspirados num livro ainda por publicar, “Argylle”. Essa obra, um romance de espionagem, foi simultaneamente anunciada como a estreia de uma autora novata, Elly Conway.
Não obstante a inexperiência, o brilhantismo do seu trabalho despertou a cobiça tanto das editoras — foi comunicado que o livro ia ser publicado pela Penguin —, como dos estúdios que queriam adaptá-lo ao grande ecrã. A Apple Studios acabou por comprar os direitos do filme — a cargo da Marv, a empresa de produção de Vaughn — por um valor avultado: 200 milhões de dólares.
“Quando li o primeiro rascunho do manuscrito, senti que se tratava do franchise de espionagem mais incrível e original desde os livros de Ian Fleming dos anos 50. Isto vai reinventar o género de espionagem"
Se estas despesas aumentaram as expectativas, Vaughn insuflou-as ainda mais: “Quando li o primeiro rascunho do manuscrito, senti que se tratava do franchise de espionagem mais incrível e original desde os livros de Ian Fleming dos anos 50. Isto vai reinventar o género de espionagem", disse, bombasticamente.
Apesar da estranheza causada por tamanha aposta numa desconhecida, a divulgação até aqui tinha sido relativamente simples de acompanhar — até sair o trailer do filme, em setembro de 2023. Este deu a saber que quem ia protagonizar a história seria uma personagem chamada Elly Conway — sim, com o mesmo nome da autora dos livros. Interpretada por Bryce Dallas Howard, trata-se de uma escritora responsável por criar um super espião chamado “Argylle” e que se vê atirada para o mundo alucinante da espionagem quando as suas narrativas chocam com as do “mundo real”, começando a ser perseguida por uma organização sombria.
Ao mesmo tempo, quando foi revelada a sinopse do livro, esta dava conta de uma história totalmente distinta que descreve as origens desse mesmo Aubrey Argylle como um jovem a viver na Tailândia que acaba por ser recrutado para a CIA depois de salvar agentes norte-americanos de traficantes de droga locais. O livro acompanha-o na sua difícil adaptação na agência e nos esforços em impedir um magnata russo de criar um superestado extremista e de virar o mundo do avesso. Em jeito de homenagem aos clássicos da espionagem, ambas as partes lutam por tentar encontrar uma fonte misteriosa de poder, os conteúdos da "Sala de Âmbar", uma divisão de luxo ímpar saqueada pelos nazis do Palácio de Catarina, perto de São Petersburgo, durante a II Guerra Mundial e cujos tesouros desapareceram depois do conflito.
Logo aqui, ficou bem explícito que, como foi referido acima, estas eram duas histórias separadas, mas nem por isso independentes. Numa entrevista a um podcast em outubro de 2023, o realizador Matthew Vaughn revelou que o filme ao seu encargo era, na verdade, baseado no quarto livro da saga de Conway e que o romance que ia sair neste ano era o 1.º volume desta saga. Ou seja, que o livro em breve disponível no mercado servia de inspiração para uma narrativa cinematográfica que imaginava a sua autora a arcar com as consequências imprevisíveis de publicá-lo.
A razão para tal abordagem, afirmou, esteve na vontade de desafiar clichês das histórias de espionagem e de brincar com as fórmulas, criando-se uma metanarrativa em que filme e livro se complementam de forma inesperada — a autora que se vê transposta para o ecrã, a protagonizar as suas próprias aventuras, a fugir devido a um livro que nós, o grande público, íamos ter a oportunidade de ter nas mãos.
Quem é, afinal, Elly Conway?
Esta clarificação, contudo, gerou mais perguntas ainda. Como é que o filme podia partir de um suposto quarto livro de uma saga se os primeiros três ainda nem tinham saído? E como seria possível uma autora desconhecida já ter vários livros da mesma saga na calha quando ainda nem se tinha estreado no meio editorial — conhecido por ser de difícil entrada. Será que Vaughn apenas leu resumos planeados das sequelas do primeiro volume e escolheu o quarto para fazer o seu filme? Mas, acima de tudo, a principal questão que estes esclarecimentos levantaram foi: quem era, afinal, Elly Conway?
A interseção entre cinema e literatura não só é bem conhecida, como é bidirecional. A norma atualmente é haver filmes com histórias adaptadas de livros (de ficção e não só), mas a migração do audiovisual para a escrita também acontece — a chamada “romantização” (ou “novelization”, em inglês) das longas-metragens. É uma prática que caiu em desuso com a chegada dos leitores de cassetes VHS e tecnologias subsequentes, mas que chegou a ter muito sucesso, publicando-se inúmeros livros que recontavam as histórias da 7ª Arte e exploravam os seus universos narrativos em maior detalhe.
Hoje em dia, a maior parte destas obras só se consegue encontrar em alfarrabistas, onde podem surgir cópias de “A Guerra das Estrelas” ou de “Regresso ao Futuro” editadas em versão de bolso pela Europa América, por exemplo. No entanto, é um formato que ainda vai dando ares da sua graça, tanto como manobra promocional, como servindo de laboratório experimental — veja-se o caso de Quentin Tarantino, que decidiu reescrever a narrativa de “Era Uma Vez em Hollywood” lançou o seu romance de estreia com o mesmo nome.
O conjunto livro-filme de “Argylle”, como ficou demonstrado, não se trata nem de uma coisa nem de outra. Admitia-se então outra possibilidade: seria este outro tipo de manobra promocional, um livro “escrito” por uma personagem ficcional? Esta ideia também não é nova. Foi o que aconteceu com os policiais de Jessica Fletcher, a escritora heroína da série “Crime, Disse Ela” protagonizada por Angela Lansbury. O mesmo se passou com a saga de Richard Castle, o autor/detetive de “Castle”, personagem de Nathan Fillion. E o que dizer de “Look Out For The Little Guy”, a autobiografia supostamente escrita por Scott Lang, mais conhecido como Homem-Formiga, o herói da Marvel? O que acontece nestes casos é que estas obras são criadas por escritores-fantasma e, portanto, sem créditos de publicação — há um acordo tácito entre público e editora que obviamente uma personagem ficcional não poderia ter escrito isto, recaindo essa responsabilidade para um autor de carne e osso.
“Elly Conway nasceu e cresceu no estado de Nova Iorque. Escreveu o seu primeiro romance sobre o agente Argylle enquanto trabalhava como empregada de mesa num restaurante aberto durante a noite”
Esse não foi o caso de Elly Conway. A escritora foi apresentada como sendo uma pessoa real, apesar da parca informação sobre si. “Elly Conway nasceu e cresceu no estado de Nova Iorque. Escreveu o seu primeiro romance sobre o agente Argylle enquanto trabalhava como empregada de mesa num restaurante aberto durante a noite”, lê-se na sua página de autora. Além destes, os únicos detalhes biográficos disponibilizados surgem numa insólita “nota da autora para a nova edição” (Nova edição? Que outras houve?). Aqui, Conway revela como a personagem Aubrey Argylle surgiu-lhe num “sonho febril” enquanto se encontrava a recuperar de um “acidente terrível” que alterou a sua vida por completo. Na sobrecapa do livro, a sua fotografia mostra apenas a silhueta de uma figura feminina, não havendo quaisquer imagens suas a circular na internet.
A juntar-se a esta vagueza, foram criadas páginas de Instagram e X — em novembro de 2022 e julho de 2023, respetivamente — que estiveram desprovidas de conteúdo até ao outono do ano passado, quando Conway começou a fazer promoção e a partilhar fotografias de livrarias, cafés e mercados de rua. “Como é que se atiça uma introvertida? Publicas o primeiro romance dela, fazes com que Matthew Vaughn compre os direitos para o cinema e depois dizes-lhe que tem de começar a usar as redes sociais para ter ‘visibilidade’”, lê-se na sua primeira publicação de monta.
A ausência de pegada digital ou de quaisquer entrevistas, a falta de trabalho prévio e os quase inexistentes dados sobre a sua vida despertaram a questão: seria Elly Conway sequer uma pessoa real? Os media norte-americanos puseram-se à procura de respostas, sem sucesso, já que as tentativas de saber mais sobre Conway esbarraram numa parede de opacidade e evasão. Logo em 2022, o “The Hollywood Reporter” tentou, em vão, contactar a editora e o agente da escritora. Sophia Nguyen, jornalista do “The Washington Post”, foi mais longe, indo bater à porta da Apple e da Universal Pictures, ficando sem resposta também.
A persistência de Nguyen, porém, colheu frutos noutras paragens. Em primeiro lugar, uma figura do meio editorial fez-lhe chegar uma cópia do livro com passagens sublinhadas onde se notavam expressões britânicas, algo incomum visto que Elly Conway se apresentava como uma americana de Nova Iorque. Depois, conseguiu entrar em contacto com Robert Massey, vice-diretor executivo da Royal Astronomical Society e um dos consultores científicos do livro. Este revelou-lhe ter trocado correspondência com uma escritora que se apresentou como estando “a escrever um romance de espionagem encomendado pela Penguin Random House”. O problema é que não assinou como Elly, mas como Tammy Cohen, uma profícua escritora de thrillers e romances históricos. Nguyen tentou falar com Cohen e com a sua agente, recebendo apenas silêncio como resposta.
“Para mim, este é o cenário mais plausível: A personagem romancista do filme de Vaughn chama-se Elly Conway. Provavelmente, a Marv Studios decidiu encarregar alguém de escrever o romance de Elly na íntegra como um trabalho por encomenda, que seria publicado como um material de promoção giro”, conclui Nguyen. A reforçar esta hipótese esteve o facto do contrato da Apple contemplar apenas os direitos do filme e não do livro — ou seja, admitindo-se que tal livro nem existia à altura do contrato — , de que o copyright do livro é detido pela Marv e de que Conway nem sequer aparece nos créditos da página de IMDb do filme — o que não faz sentido, se este se trata de uma obra inspirada no seu universo literário. No entanto, a ausência de provas concretas à época significou que a investigação do Washington Post nunca passaria da conjuntura — até então, Elly Conway não passava de alguém extremamente reservado.
Este mistério, contudo, ganhou contornos ainda mais insólitos quando começou a surgir o rumor na internet de que a autora mistério seria, nada mais, nada menos, que a cantora mais famosa do mundo.
It's me, hi, I'm the author, it's me?
Se não reconheceu a frase acima, é uma adaptação de uma letra de Taylor Swift, a cantora pop que, de momento, é a artista mais famosa e consagrada do mundo. Além de ter sido capa da revista TIME para “pessoa do ano” em 2023, Swift é responsável por inúmeros êxitos cantados numa digressão mundial milionária que vai passar por Portugal este ano e que resultou num filme extremamente bem sucedido na bilheteira.
Apesar de parecer francamente inacreditável que Taylor Swift tivesse despendido tempo para escrever uma história de espionagem entre compor música nova, regravar o seu catálogo, embarcar numa digressão recordista e assistir aos jogos de futebol americano do seu namorado, o frenesi mediático que a acompanha apenas rivaliza com as teorias que os fãs da cantora congeminam semanalmente. Para o leitor menos versado em Swiftologia, tal pode parecer descabido, mas a verdade é que cada ação da artista costuma incluir pistas — verdadeiras ou não — para o que vai fazer a seguir — e é frequente algumas destas teses acabarem por comprovar-se.
No caso de “Argylle”, os fãs da cantora detetaram no trailer do filme várias pistas que sugeriam Swift como a autora do livro que lhe serviu de inspiração. Uma das mais citadas foi o facto da personagem de Elly Conway usar uma mochila para transportar o seu gato muito similar à que a cantora usou no seu documentário “Miss Americana”, em 2020. Outra foi o facto do próprio gato que figura no filme ser da raça Scottish Fold, a mesma de dois dos três gatos de Swift. Ou o facto da cantora vender uma camisola em “argyle”, um padrão aos losangos usado em vestuário, semelhante ao tartan escocês. O rol completo de teorias foi compilado neste artigo da Vulture.
As teses avançadas em publicações no X e vídeos no TikTok foram o suficiente para lançar uma boa parte dos fãs de Swift em corrupio — e o facto da conta oficial de promoção ao filme fazer alusões a músicas da cantora só alimentou ainda mais as suspeitas de que, desafiando todas as expectativas, teria sido mesmo a artista a escrever o livro no seu tempo livre.
Parte deste mistério foi desvendada por Matthew Vaughn já depois do lançamento do livro, mas duas semanas antes da estreia do filme. Em entrevista à Rolling Stone, o realizador não só negou que Taylor Swift fosse a autora, como afirmou que Elly Conway era uma pessoa real — dois coelhos duma cajadada. "Existe um livro verdadeiro... e é um livro muito bom. E há uma Elly Conway que escreveu o livro, mas não é a Taylor Swift. Digo isto porque imagino que a Taylor Swift tenha um monte de pessoas a tentar aproveitar-se dela e não quero fazer parte desse clube. Eu li as conspirações e fiquei tipo, ‘uau, eles não deixam nenhum detalhe por considerar!’ Mas não é a Taylor Swift. Definitivamente, não foi ela que escreveu o livro", disse.
De resto, Vaughn afirmou nessa mesma conversa que o único aspeto em que Swift teve influência direta no filme foi no facto do gato da protagonista ser da raça Scottish Fold. Porquê? Porque o animal que figura na longa-metragem trata-se de Chip, o seu gato e da sua mulher, a supermodelo Claudia Schiffer. E Chip é um Scottish Fold porque as filhas do casal convenceram Schiffer a adquirir um gato daquela raça porque viram Swift com um igual no documentário acima mencionado, “Miss Americana”. "Por incrível que pareça, essa é a nossa única ligação com a Taylor Swift”, declarou.
“Imploro à Elly Conway que saia das sombras porque esta coisa da Taylor Swift assustou-me. E isso vai acontecer"
Uma semana depois, o realizador reiterou publicamente à Variety que a autora era uma pessoa real. “Imploro à Elly Conway que saia das sombras porque esta coisa da Taylor Swift assustou-me. E isso vai acontecer", declarou. Alguém da assessoria de comunicação passou uma mensagem semelhante à mesma revista: “Elly Conway é uma pessoa real que escreveu um brilhante thriller de espionagem há alguns anos; Matthew Vaughn teve conhecimento do manuscrito antes da publicação através do seu agente e decidiu colocar o romance de Elly no centro do seu novo filme com o seu toque característico. O livro e o filme estão agora a ser lançados quase em simultâneo".
Pronto. Mistério resolvido — ou não?
Uma desilusão previsível
“O realizador vive disposto a recorrer a truques e a reviravoltas nauseantes para tanto irritar como agradar audiências. É frustrante para alguns não saber quem é Elly, mas se podemos contar com alguma coisa no universo de Vaughn, é que será igualmente frustrante quando descobrirmos quem é”. Estas palavras, escritas por Fran Hoepfner no artigo acima citado da Vulture, podiam ser apenas uma previsão audaz; ao invés, foram uma infeliz profecia.
Será que “aconteceu”, como Matthew Vaughn prometeu, Elly Conway vir a público? Sim e não. A autora não chegou a apresentar-se porque, de facto, não existe — mas ficámos a saber quem escreveu em seu nome. Poucos dias após a estreia do filme, o “The Telegraph” desvendou o mistério: sim, Tammy Cohen escreveu o livro, mas a quatro mãos com Terry Hayes, escritor e guionista australiano responsável pelo best seller mundial “Peregrino”.
“Deus do céu, espero que todas as pessoas que encomendaram o livro a pensar que tinha sido Taylor [Swift] a escrevê-lo não tenham ficado desiludidas”, reagiu Cohen em conversa ao jornal britânico. “Espero que sim, se é por isso que compram um livro, merecem esse castigo”, retorquiu Hayes.
Ao longo da entrevista dada ao The Telegraph, o par explicou como acabaram a escrever “Argylle”. Tudo começou quando Vaughn quis adaptar “Peregrino” ao cinema mas não conseguiu, devido aos direitos de adaptação terem sido comprados pela MGM, que não os quis ceder. Ao invés, tendo já contactado Hayes, o realizador acabou por desafiá-lo a escrever não um livro sobre o filme que iria criar, mas um romance que poderia ter sido escrito pela sua heroína — ou seja, Elly Conway — a propósito das aventuras de Aubrey Argylle.
O problema é que Hayes já estava ocupado a tentar terminar “The Year of the Locust”, o seu segundo romance no qual esteve a trabalhar durante sete anos e que saiu em 2023. Sem capacidade para dar vazão a dois projetos ao mesmo tempo, o seu editor acabou por sugerir trazer Cohen para o projeto. Hayes estabeleceu as traves-mestras da narrativa, ao passo que Cohen serviu-se das suas notas para dar corpo à história. E isto leva-nos derradeiramente a questionar se tudo isto terá valido a pena.
A ilusão caiu no momento da estreia — a partir do momento que o filme foi para os cinemas, “Elly Conway” deixou de atualizar as suas contas nas redes sociais. E ainda que o seu nome (e biografia) figure nas diversas páginas de autor dos sites onde “Argylle” se encontra à venda, às questões quanto à sua autenticidade evaporaram-se — o que diz tanto do poder de permanência do projeto como do panorama mediático atual.
No entanto, o que surgiu no final do filme revelou o verdadeiro intuito de Vaughn. Numa cena mostrada durante os créditos de “Argylle” — uma prática recorrente em franchises de filmes, como a Marvel —, vemos um jovem a dirigir-se a um pub inglês chamado “King’s Man” e a pedir um Cosmopolitan, algo atípico num estabelecimento do género. O barman, com um sorriso matreiro, dá-lhe uma caixa — o pedido, na verdade, era uma mensagem codificada. Lá dentro, reluz uma pistola. O jovem revela então o seu nome: Aubrey Argylle. Surge depois uma mensagem no ecrã a informar que “Argylle: Livro Um — O Filme”, estará em breve nos cinemas.
O que é que isto significa? Em primeiro lugar, que “Argylle” não passou de uma tentativa de alargar o universo narrativo da saga “Kingsman”. Em segundo, que nunca houve intenção de ter o livro separado do filme enquanto entidade narrativa independente — foi um mero expediente de marketing, até porque a cena acima descrita surge no primeiro terço do livro.
"Não se trata apenas de um livro autónomo ou mesmo de um filme autónomo: eles esperam que seja o início de um enorme franchise"
De resto, Hayes admitiu mesmo que os responsáveis pela produção do filme tiveram dedo no enredo do livro. “Eles tiveram as suas exigências, mas isso foi compreensível. Não se trata apenas de um livro autónomo ou mesmo de um filme autónomo: eles esperam que seja o início de um enorme franchise", afirmou o escritor ao Telegraph.
No final, fica-se com a clara noção de que o todo acabou por ser muito menor à soma das suas partes — ou, por outras palavras, que foi tudo uma enorme perda de tempo e dinheiro. Os números confirmam-no.
Quanto pior a ideia, maior o fracasso
A promessa de mais “Argylle” talvez tenha sido demasiado otimista, dada a forma como o seu primeiro filme foi recebido, a todos os níveis. De modo geral, a crítica foi brutal com o filme de Matthew Vaughn. “Já me diverti mais em consultas no dentista”, escreveu Hannah Strong para a prestigiada revista britânica “Little White Lies”. “Nem um gato consegue salvá-lo” é o título lacónico da crítica de Alissa Wilkinson para o “The New York Times”. E mesmo que a resposta generalizada se tenha demonstrado mais entusiasta — na plataforma Rotten Tomatoes, “Argylle” tem 72% de aprovação do público perante a nota bastante inferior de 32%, resultante da soma agregada das críticas especializadas —, tal não se repercutiu na audiência. Ao fim de duas semanas nos cinemas, o filme conseguiu gerar apenas 64.5 milhões de dólares a nível internacional — uma ninharia tendo em conta o seu custo de produção avaliado entre 200 e 250 milhões de dólares —, sendo o primeiro grande flop de 2024.
Já o livro passou ao lado do aparelho mediático, não deixando ainda assim de merecer algumas críticas satisfatórias no The Guardian e no The Telegraph. No entanto, não só registou vendas muito humildes a nível internacional, como a sua pontuação na plataforma Goodreads — onde a norma é o inflacionamento de notas — fica-se por uns 3,33 em cinco estrelas. Note-se que muitas das más notas obtidas são da parte de utilizadores desagradados por acharem que o livro tinha sido escrito por Taylor Swift.
Os seus autores declararam ao “The Telegraph” que o seu livro não se trata de um estratagema para gerar interesse no filme, mas na prática é o que aconteceu. “É difícil falsificar hype, especialmente quando se trata de literatura. É necessário o entusiasmo orgânico dos leitores e dos espectadores, e nem mesmo o gancho de um autor secreto conseguiu ultrapassar a questão principal: se as pessoas não o quiserem, não o comprarão”, escreveu Kayleigh Donaldson no Pajiba.
Na era da pós-verdade, não faz mal que se minta frontal e abertamente à imprensa?
As circunstâncias da "Argylle" e de “Elly Conway”, contudo, denotam algumas tendências ainda bastante mais perturbadoras. Desde logo, o facto de que, na era da pós-verdade, não faz mal que se minta frontal e abertamente à imprensa, desde que isso seja encarado como uma brincadeira inocente. Recorde-se que Matthew Vaughn e membros da sua equipa disseram, sem margem para dúvidas, que Elly Conway era uma pessoa real. Quaisquer subterfúgios semânticos a que possam recorrer para negar ou minimizar esse facto não passarão de tentativas patéticas de minimizar estragos — especialmente dada a resposta negativa ao filme e ao facto da sua campanha promocional ter alimentado especulações. Além disso, (tentar) enganar os mesmos jornalistas com os quais se quer ter uma boa relação parece, na melhor das hipóteses, contraproducente, e na pior, uma forma de erodir a confiança entre as duas partes.
Ao mesmo tempo, como vários órgãos já avançaram, tentar fazer parecer com que “Argylle” tenha surgido de forma orgânica é um sintoma deprimente da forma como os estúdios de Hollywood operam hoje em dia, onde é cada vez mais difícil fazer singrar ideias originais perante a aposta segura dos franchises e das sagas. Por outros termos, porquê querer ter um filme único, quando este pode ser alapado junto de um universo narrativo já existente? Neste caso em concreto, o expediente encontrado atingiu panoramas de desespero ainda maiores, a ponto de recorrer a dois escritores bem cotados para tentar criar interesse de forma artificial.
É uma pena, porque apesar de não ter grande brilho — talvez fruto de ser um exercício a quatro mãos sob ditames de outrem —, "Argylle" trata-se de um livro divertido e competente, onde os autores fizeram o melhor possível com o que tinham à disposição. À falta de rasgo literário, a narrativa sucede-se a um ritmo animado, com reviravoltas divertidas — bem menos nauseantes que as do filme — e momentos de genuíno interesse. É um livro para uma tarde bem passada, mas “Argylle” talvez tivesse almejado algo mais caso não tivesse nascido com o mero propósito que muitos já suspeitavam, o de ser um mero instrumento de promoção.
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