I

Farmacologia familiar

I

Caixas, caixinhas, guarda-joias, caixas de comprimidos, vasos, estojos, jarrões. Esta casa que agora lhes pertence alberga um museu de recipientes. De marfim, de pinho, de ébano, de cerâmica, de porcelana, de vidro, daquele papel lustroso que se usa no origami. Nora examina-os um por um, varrendo de baixo para cima e da esquerda para a direita todas as superfícies da sala, e quase sempre apalpa o vazio, ou lenços ranhosos, ou moedas de cêntimos e pilhas gastas, mas de vez em quando grita bingo! e põe um Valium no bolso traseiro das calças, o qual, depois de uma hora de prospeção, começa a ficar cheio. Sente a boca pastosa de mastigar pó antigo e gostaria de fazer uma pausa para uma cerveja, mas não pode parar, não pode parar; está numa corrida contra o relógio e não pode, não pode perder. Ouve os passos nervosos da irmã lá em cima e sabe que, assim que as diligentes mãos policiais de Olivia tiverem terminado a inspeção dos quartos e da casa de banho grande, virá para baixo e revistará o que restar. É por isso que Nora, mesmo durante as suas férias não remuneradas, está novamente a correr, trabalhando sob pressão, competindo com um deadline... Presa no remoinho compulsivo que engoliu a sua vida adulta. Toda uma infância de competição e derrota contra Olivia preparou-a para ser uma boa mártir do jornalismo freelance, e agora o jornalismo freelance está a atirá-la, anfetamínica e imbatível, de volta à arena original para encerrar o ciclo. Snifou uma linha assim que chegou, para aguentar a esgotante intensidade da reunião familiar, e uma mais pequena, como lembrete, depois de a irmã decretar inaugurada a gincana com um comentário tão específico como excêntrico: «Tem de seguir-se o rasto das drogas.» Parece que alguém andou a ver demasiadas séries daquelas em que os antinarcóticos são os heróis e as pessoas como eu são lixo, pensa Nora, e diverte-se ao imaginar a cara de Olivia se soubesse que ela estava a competir dopada. Sempre a fazer batota, dir-lhe-ia isso ou algo ainda pior. Mas não há doping que faça milagres, irmã. Gostaria de lhe explicar que o consumo dessas substâncias é por vezes uma discriminação positiva, uma vantagem de alguns segundos para os atletas que já se encontram lesionados na linha de partida, e outras vezes simplesmente um requisito camuflado da própria competição. Porque o corpo tem limites que ignoram os ideais de progresso e superação. Porque as nossas fibras não foram concebidas para vencer etapas de montanha em bicicleta, sempre um pouco mais rápidos que os nossos pais, nem existe uma forma de responder a cinquenta e-mails, fazer quatro entrevistas por telefone e duas por WhatsApp, escrever cinco mil palavras, manter as redes sociais em dia, atualizar o curriculum e ainda tomar banho, vestir-se e maquilhar-se para ir à apresentação desse novo suplemento cultural onde quem sabe, se sorrires o suficiente, estabeleças contactos com aquelas pessoas que poderão encomendar-te mais cinco mil palavras para amanhã, e com tudo isto, no final do dia, dormir seis horas.

Não, o doping não faz milagres, e a verdade é que, neste momento, até apreciaria uma pequena ajuda. Mas a sua prima Erica, que está no chão com o baralho de cartas da avó a jogar a alguma espécie de paciência arcaica, não parece interessada na sua busca.

– Olha, porque é que não levantas o rabo e vais ver as gavetas da escrivaninha?

Erica nem sequer se mexe no lugar para lhe responder. Pega nas cartas dispostas em círculo no tapete, junta-as num molho e baralha-as.

– Parece-me que já tens comprimidos para dormir durante um ano.

Na verdade, dariam para um mês, mas não o diz, porque não é essa a questão.

– Vá lá, Erica, tu sabes que não é por isso.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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E não é mesmo por isso. Ela não é movida pela ganância. Não quer é que Olivia fique com o espólio todo e o devolva à farmácia como manda o protocolo, como deve fazer-se,como deveria ser. Afinal de contas, este é o tesouro da sua avó. O trabalho de uma vida. Mas parece que só uma agarrada consegue entender outra agarrada. O cuidado com que se dispersam as migalhas, sempre escondidas mas sempre à mão, pelos melhores esconderijos; os restos de hoje a postos para a escassez que o futuro pode trazer. Tem qualquer coisa de jogo infantil, porque as crianças, tal como os viciados, gostam de acumular pelo simples prazer que dá o muito em relação ao pouco. Aprendeu isto com o pequeno Peter, que continua ali no jardim, a recolher folhas secas no reboque do seu trator de plástico e a separar em montinhos os frutos das diferentes variedades de coníferas que lhe dão sombra. De vez em quando procura a criança através das janelas porque sabe que a mãe dele, de pé ao seu lado, não o vê. Os olhos de Lis têm estado nublados e perplexos desde que chegou, fixos em qualquer lugar de sítio nenhum. Ao vê-la, Nora lembra-se dos gatos que ficam parados no meio do átrio, a miar a um fantasma. Não sabe o que anda a sua prima Lis a tomar, mas é óbvio que se encontra drogada, tanto ou mais do que ela. A diferença é que o seu consumo de drogas psicotrópicas não deve alarmá-las porque é prescrito por um psiquiatra. Os detalhes da crise de Lis, que a manteve afastada do próprio filho no Natal passado, permanecem um mistério, mas Nora sabe que a prima pagou a fatura: deixou-se avaliar – diga de um a nove quanto lhe apetece atirar-se pela janela –, despersonalizar e rotular. Em troca, obteve a sua receita. Já Nora resiste a pedi-la. Só acredita no consumo auto prescrito, razão pela qual atribui um valor tão elevado a estes comprimidos que a sua avó lhes deixou, juntamente com a casa. Por agora, significam que não vai acabar nas urgências da próxima vez que precisar de benzodiazepinas legais para gerir os efeitos secundários das anfetaminas ilegais que consome. Não terá de inventar um quadro de ansiedade ou, cabisbaixa, humilhar-se perante o médico de serviço: desculpe, desculpe, doutora, estou muito envergonhada, mas é que ontem consumi uma droga que nem sei o que era, nunca tinha tomado antes, já sabe, um disparate, e agora dói-me o peito e o meu braço esquerdo está dormente e tenho taquicardia e a verdade é que há horas que só penso que vou morrer. Só este inverno já foram quatro vezes, cada uma num hospital diferente, alternando entre o serviço nacional de saúde e o seguro privado, que é pago apenas com este propósito, de modo a não levantar suspeitas, mas de todas as vezes sentiu que regressava ao mesmo cenário da adolescência, assinando novamente o papel em que reivindicava fragilidade mental para que o ginecologista lhe concedesse o dom de um aborto farmacológico. A mesma alienação, a mesma raiva. Portanto, não me digas que é por vício, Erica:

– É para honrar a vontade dos mortos.

A prima solta uma gargalhada porque não é possível levar algo assim a sério, a menos que seja num telefilme, reconhece, e o seu riso é puro óxido nitroso que se propaga pelo ar, por isso Nora inala e depois dobra-se, engasga-se, ri-se como um burro a zurrar, e isto desagrada muito à sua irmã Olivia, tão inimiga da felicidade alheia (nem sequer conhece a sua própria felicidade), que trota pelas escadas abaixo para lhe reprimir as tolices.

– Espero que não estejam a fazer figuras parvas com os comprimidos da avó.

Calam-se ambas e contêm-se, com as bochechas inchadas e vermelhas. Olivia não é mãe delas (não é mãe de ninguém) mas encerra-as no papel de filhas mais novas, primas asselvajadas pelo verão campestre, que acabaram de derrubar a montanha de cereais debulhados, beberam o licor de ervas ou deixaram o cão à solta sem prender primeiro as galinhas. Tem sido assim desde que se lembram: Erica e Nora contra Olivia e Lis. Primas que se preferem uma à outra em vez de às suas irmãs. As irmãs erradas. Mutuamente incompreensíveis.

– Por favor, antes de roubarem alguma coisa, mostrem-mo. Para que eu o possa identificar. Por favor.

Agora Olivia soa lamuriosa, suplicante, e Nora não o permitirá. Avança e confronta-a com gestos que lembram os de um animal que protege a sua porção de carniça.

– Bom, é que também não é preciso o teu curso de medicina para distinguir o Valium do ibuprofeno. E digo-te já que aqui não há mais nada.

Com a sua agressividade, Nora consegue que a irmã, pouco dada a levantar a voz, se deixe arrastar pela inércia e adote o mesmo estilo de luta de galos com que ela a está a provocar. Sem descer do primeiro degrau das escadas, ostentando nesse pequeno pedestal o seu estatuto de irmã mais velha e cidadã de sucesso, Olivia engole a saliva e responde aos gritos.

– Mas tu és idiota ou fazes-te? Idiota! Idiota! Idiota! Não tens respeito por nada? Nem sequer pelo que aconteceu à avó?

Nora definiria a sua irmã como uma daquelas pessoas que, nos funerais, censuram o choro excessivo de parentes distantes e obrigam aqueles que lhes são próximos a permanecerem serenos, usando para isso toda a violência que considerem necessária. Porque a dor é para se sentir quando, onde e como tem de ser. Sem demoras, sem anestesia e, claro, sem sentido de humor. Nora não se surpreende, por isso, que lhes imponha o seu luto, insinuando que, porque ela e Erica se riem, então foram menos afetadas pela perda, têm a pele já calejada ou, simplesmente, sofrem menos. O que ela não compreende bem é essa obsessão contabilística que a irmã possuiu, essa necessidade de registar e inventariar cada comprimido como se quisesse impor um diagnóstico ao cadáver, etiquetado e medicado para além da morte. Será que tem medo de que haja drogas perigosas ao nosso alcance?, pergunta-se. Será que se sente tentada a seguir os passos da avó com aquela irresistível inércia que atrai a Bela Adormecida na direção do fuso que a há de picar? Esse pensamento está presente, supõe ela; latejando, latente nas suas quatro cabecinhas. Parece que um suicídio na família confirma a suspeita de sempre, de que a loucura corre nos genes, de que estamos biblicamente perdidas. E embora Nora até compreenda a apreensão, não concorda com ela. É um pensamento mágico contra a materialidade que as esmaga. Se estamos loucas, argumenta, é porque nos levaram à loucura.

II

Erica procura a terra, a sua proximidade, o calor intenso que essa proximidade liberta na área do sacro – no ponto exato onde termina a coluna vertebral e começa essa cauda do animal que não existe mas que já existiu; precisamente aí, onde o corpo se lembra de um passado de tigre e de uma ancestralidade de réptil – e por isso encontrou o seu espaço no chão da sala de estar, num mosaico de azulejos encurvados, partidos e irregulares, que revelam a quantidade de vezes que, ao longo dos anos, as raízes das árvores tentaram entrar na casa. Celebra estas cicatrizes na alvenaria porque evidenciam que, no campo, não faz sentido alguém amuralhar-se. É absurdo tentar fazer com que a natureza respeite a diferença entre o que está dentro e o que está fora, ou fingir que uma casa se ergue sobre algo que só a contém. Mas quase ninguém compreende isto. Nem mesmo a avó, que compreendeu quase tudo, conseguiu transcender a sua ilusão de uma membrana, aquela trincheira interior que divide o que é humano do que não é. Dona Carmen, como os da aldeia a chamavam, gostava de a dominar com recurso aos trabalhadores que, a golpes de machetes, expulsavam a vida arbórea, e gostava das portas, das paredes, dos nichos e dos compartimentos secretos. Erica encontrou o baralho de cartas de jogar onde sempre o escondiam na brincadeira: no cofre oculto pelo espelho da entrada, com o código 7-4-90, a data do seu nascimento, porque nem a tua mãe, nem a tua irmã, nem as tuas primas têm qualquer respeito e manuseiam-nas para jogar solitários, mas tu, minha pequena viquingue, compreendes que há coisas sagradas e sabes como cuidar delas.

E é verdade que Erica compreende o sagrado. Compreende-o ou sente-o, mas, acima de tudo, procura-o. Todas as noites, às escuras na sua cama, fecha os olhos e inala lenta e suavemente até atingir os limites da sua capacidade torácica. Sustém a respiração, conta até três, e escolhe a área do seu corpo que se vai apagar quando exalar. Agora os pés, decide, e, à medida que os seus pulmões perdem ar, um formigueiro de membro adormecido espalha-se pelas suas entranhas, rodeia os seus calcanhares e, finalmente, desliga-os do resto do seu corpo. Músculo por músculo, zona por zona, conquista a leveza, uma leveza que lhe permite visualizar-se como um barco à deriva num rio selvagem ou como uma pena que se eleva, e é assim, flutuante e coisa, que consegue vislumbrar o acesso às dimensões proibidas. Um limiar de luz nas margens da córnea, nuclear, faiscante. Ela sabe que ainda tem um longo caminho a percorrer antes de a poder atravessar, porque a sua cabeça nunca se detém por completo; é incrível o número de níveis simultâneos em que a consciência opera. Quando consegue silenciar o fluxo do pensamento, as explorações do aqui e agora e do antes e ontem, uma voz notarial e descritiva irrompe, irradiando as suas ações. Estás a respirar. Estás a tentar esquecer que respiras. Erica só consegue libertar-se dela com grandes doses de concentração – invariavelmente na fase pós-ovulatória e quase sempre depois de um jejum prolongado, ou em lugares como este, onde a noite range – e, quando o faz, quando se despoja tanto do peso anatómico como do linguístico, as imagens começam a emergir no meio da cegueira. Manchas de luz, serpenteantes como as que o fogo faz e pouco sugestivas, ou representações icónicas muito precisas, rostos e objetos que não têm qualquer relação com ela e que parecem ter sido arrancados da vida de outros. São tão extraordinárias que lhe custa deixá-las ir, mas para as apreender precisa de as descrever, e é então que regressa a voz que irradia, voltam as palavras e ela retorna com elas ao ponto de partida. Só recorda, portanto, as visões que a levaram ao fracasso, aquelas que quebram o processo de dissolução em direção a outros mundos. Viu ecossistemas em miniatura, projetos de jardins agrupados ou talvez neurónios que se interligam e se expandem, o coto do antebraço de um homem, uma jarra cheia de dentes, duas velhas que se beijam na boca, uma sombra com cornos e olhos como brasas – esta última pertence a uma ordem ligeiramente diferente da sua experiência, pois não estava a meditar mas a foder, só que com as pálpebras fechadas, afinal de contas – e finalmente, ontem à noite, uma cascata de naipes, um baralho espanhol que se dissolvia na escuridão do fundo do seu olho e que hoje a levou a verificar o cofre da avó em busca das suas cartas da sorte. Pergunta-se se o teria feito de qualquer forma, se a visão era uma ordem ou uma simples lembrança de algo que já estava na ponta da língua, mas não há maneira de saber. É estranho que ela não tenha revistado a casa assim que chegou, como as suas primas, mas também é verdade que Erica é sempre mais atraída para o exterior e a aldeia recebeu-a com o laranja fluorescente das calêndulas. Chegou um dia mais cedo do que as outras, sim, mas passou-o a colher flores, a preparar uma eira para a sua secagem e a descascar ramos de sabugueiro. A sua avó iniciou-a no mundo das ervas, nas suas propriedades ativas, nas suas finalidades medicinais, cosméticas e até psicotrópicas, mas nunca lhe ensinou o significado das cartas. Agora, porém, ao sentir o lombo do baralho nas suas mãos, ao dobrá-lo suavemente, lembra-se dos gestos, da liturgia, e deixa-se arrastar por eles.

Livro: "As Herdeiras"

Autor: Aixa de la Cruz

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 30 de janeiro de 2024

Preço: € 18,80

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Primeiro tem de baralhar com a mão direita, enquanto pensa no motivo da consulta. Quero falar com a minha avó. Quero saber se ela está bem. Se nós, que ficámos, vamos ficar bem. A seguir, parte-se em três maços, que se viram para revelar três cartas que darão as chaves da leitura. Um valete de paus, um dois de copas, um seis de ouros. Finalmente, o baralho é reagrupado, vinte outras cartas são descartadas e as restantes são colocadas em cinco filas de quatro, o que resulta numa festa de cartas, umas de frente e outras viradas de verso, que causam a Erica uma sensação de aflição, um aperto na garganta, e bastantes espadas, que n o são boas, com muito poucos ouros, que são os bons. Ela sabe que nas melhores previsões há sempre vários ases juntos e, como não é o caso, recolhe as cartas e baralha novamente. Isto também fazia parte da idiossincrasia da sua avó: quando não gostava de uma resposta, reformulava a pergunta. Por isso, novamente três maços. Três cartas. Um dois de copas, um valete de paus e um seis de ouros. Não foi o mesmo que saiu antes? Repete a operação, tendo o cuidado de evitar qualquer simetria inconsciente, e por isso faz um primeiro maço de apenas três naipes e outros dois que parecem salientes como barrigas de grávidas. Descobre então um dois de copas, um valete de paus e um três de espadas, e é graças a esta última carta, à variação realista que introduz, que ela precisa de continuar a jogar, porque se sente num vértice entre duas dimensões, a lógica e a fantástica, congelada em pleno ar e sem saber para que lado vai cair.

– Olha, porque é que não levantas o rabo e vais ver as gavetas da escrivaninha?

Erica compreende e respeita a busca da prima, a sua intuição pouco consciente de que há uma mensagem codificada no rasto dos tranquilizantes, mas agora não a pode ajudar porque está absorvida pelo seu próprio mistério. Se a avó decidiu comunicar com Nora através de um arsenal de medicamentos espalhado pela casa, é perfeitamente lógico que escondesse a sua mensagem para Erica no baralho de cartas que tem nas mãos. Mas, para o confirmar, ela vai ignorar as regras. Em vez de voltar à rotina dos três maços, espalha as cartas como uma pincelada, num só gesto contínuo e em linha reta, e depois volta aleatoriamente um dos seus quarenta reversos. E ali está de novo o dois de copas. Persistente, insistente. Tão indecifrável quanto ineludível. E sinistro, acima de tudo sinistro.

– A memória dos mortos – balbucia Nora sem muito sentido, e algo com ar explode nalguma cavidade do corpo de Erica. A explosão sai da sua boca com o som de uma gargalhada, embora também pudesse ter-se traduzido num grito ou num guincho, qualquer expressão de pânico sem muito fôlego, já que o susto a deixou sem ar. Claramente, a sua prima também tem medo – basta olhar para a tensão no seu maxilar e para a expressão retorcida que o seu rosto exibe – e deixa-se levar pelo riso de Erica, por esta tentativa de desabafo que partilham agora e que as projeta pela casa como psicofonias. Olivia não demora muito tempo a aparecer, também perturbada, mas por razões diferentes. Olivia tenta sempre trazer ordem, porque é a sua forma de controlar o indizível, o que intui e não entende. Olivia precisa de entender tudo e, quando fracassa, grita.

– Idiota! Idiota! Idiota! Idiota!

A família é uma dimensão saturada, pensa Erica enquanto recolhe as cartas espalhadas pelo chão; um espaço sem ventilação. E talvez seja por isso que a sua irmã Lis se recusa a entrar aqui com elas. Chegou há horas, mas as suas malas ainda estão na rua, junto ao carro, e fez um piquenique com o Pipi no relvado do jardim. É óbvio que está a adiar o momento de pisar o chão em que Erica repousa as suas vértebras e o seu dois de copas, agora sozinho, isolado do baralho. É evidente que algo mantém Lis afastada destas paredes, e nem precisa de conhecer os detalhes. Qualquer apreensão é compreensível porque a presença da sua avó é densa, e com ela são cinco as mulheres que ali partilham teto. Felizmente, a casa é grande, e os campos em volta, as colinas e o páramo no alto são tão vastos como os vértices da antimatéria. Aqui há espaço para todas, Lis. Gostava de lho dizer. Mas prefere respeitar os seus tempos, pelo menos até que o entardecer rebente o céu com a sua pirotecnia nuclear e comece o frio. Nesta zona de Castela, mesmo em pleno verão, arrefece ao anoitecer, e então o miúdo terá de ser resgatado, e deitado, e ela terá de queimar alguns ramos de erva-de-são-joão para dissipar a energia viciada, mas cada coisa a seu tempo. Por agora, a sua atenção continua a ser desviada para aquela carta que a espia como se os dois corações fossem olhos. E terá de fazer alguma coisa com ela. Pega no telemóvel e hesita. Parece-lhe um pouco estranho recorrer à tecnologia para resolver um enigma desta natureza, mas não será a Internet uma metáfora recorrente nas suas reflexões sobre a vida após a morte? Quando pensa na reencarnação, no paradoxo de que nascemos virgens, mas, ao mesmo tempo, capazes de recordar vidas anteriores, imagina sempre que a consciência que sobrevive ao corpo é uma espécie de cópia de segurança armazenada na nuvem; que, tal como existem conteúdos que só estão no seu aparelho e que morrerão com ele quando lhe falhar a bateria ou o roubarem ou perder a sua mala, há outros conteúdos que permanecem incorpóreos, à espera de um novo suporte no qual se possam descarregar. Portanto, não é inteiramente estúpido o que está prestes a fazer, é o que pensa. Abre o seu navegador e escreve, fazendo uma pesquisa rápida. Acede a um manual de interpretação do baralho espanhol, que guarda imediatamente nos favoritos, porque oferece uma descrição sucinta e clara do significado de cada carta. O dois de copas está associado à criação; gravidezes ou projetos de vida. Erica pode descartar a primeira porque há meses que não se deita com um homem, pelo que a leitura só pode estar a referir-se aos seus planos de negócios, e a que a sua avó está de acordo com que ela transforme esta casa num meio de subsistência. Junta as mãos no peito, com os polegares sobre o coração, e olha para o céu, agradecida. Sabe que não será fácil convencer a irmã e as primas a não vender, quanto mais a deixá-la transformar este mausoléu de terrores familiares num santuário aberto ao mundo, mas esse sinal dá-lhe um impulso, projeta-a para um lugar que ainda não existe, mas que se enquadra num padrão carregado de significados.