Pensei bastante em Príamo nos dias seguintes. Ver o anel dele ao pescoço de Andrómaca reavivou todas as recordações. Eu nada podia fazer para evitar a desonra do seu cadáver, mas podia pelo menos visitar a viúva, Hécuba, e eventualmente tornar-lhe a vida mais cómoda. Portanto, uma manhã, fui ao encontro dela e levei Amina comigo. Podia ter escolhido uma das outras raparigas, mas achei que a caminhada talvez me desse uma oportunidade de conversar com ela. Continuava a preocupar-me; parecia incapaz de aceitar a realidade da sua situação. Na verdade, mostrava-se firmemente e perigosamente desafiadora. Porém, não houve maneira de falar com ela durante o caminho para a arena. O vento soprava com tamanha força que impossibilitava as palavras. Vi-me obrigada a caminhar cabisbaixa, agasalhada pelo véu, enquanto Amina seguia atrás, como sempre.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Um grupo de homens alisava a areia da arena. A ideia de Álcimo de organizar jogos competitivos foi um êxito e várias das provas teriam lugar ali. Parei para os ver trabalhar. Havia montinhos de oferendas aos pés das estátuas dos deuses — fruta, grandes ramalhetes de margaridas roxas, assim como outros presentes mais excêntricos: miniaturas de escudos e lanças, um par de sandálias novas, um cavalo de brincar. Observando o círculo, vi que o quinhão de alguns deuses — em especial, de Atena — era maior do que outros e percebi que se tratava de uma montra visual do que os guerreiros gregos pensavam. Porque é que continuamos retidos nesta maldita praia? Que deus ofendemos? Resposta, ou pelo menos a melhor hipótese: Atena. E porquê Atena? Porque foi no templo dela que Cassandra foi violada, e o violador, Ájax, o Menor, não fora castigado como devia; podiam considerar-se Agamémnon e os outros reis cúmplices do crime. Não era, evidentemente, a violação que os incomodava; era a profanação do templo. Esse crime, sim, poderia despertar a vingança de Atena.

Amina fixava as pilhas de oferendas, os olhos correndo de estátua em estátua. Interroguei-me que pensaria delas. Seriam certamente esplêndidas quando foram erigidas, mas tinham caído num estado de delapidação ao longo dos anos: bases apodrecidas, pintura lascada. Ártemis, senhora dos animais, deusa da caça, encontrava-se num estado particularmente mau: feições meio sumidas, vestes mal retendo vestígios de pintura.

Uma vez que ali estava, lembrei-me de visitar Hecamede, troféu de honra de Nestor, e logo a seguir Ritsa, a minha amiga mais próxima no acampamento. Encontrei-a a varrer o salão, e, junto à porta, um feixe de juncos frescos prontos a ser espalhados pelo solo, embora, como ela própria assinalou, depois de nos abraçarmos, o salão mal precisasse de ser limpo. Não houvera nenhum banquete na cabana de Nestor; Antíloco, seu filho mais novo, morrera no assalto final a Troia. Antíloco: o rapaz que amara Aquiles. A morte dele mergulhara no luto todo o recinto.

— Sim, claro. Ia precisamente a caminho de lá. Só que não resisti a ver-te primeiro.

— Ótimo, vamos juntas. Deixa-me só ir ver Nestor.

Ao que parecia, ele dissera que ia sentar-se no alpendre, mas quando espreitámos pela porta do quarto demos com ele a dormir, a ressonar bem alto, revirando-se o lábio superior para fora a cada expiração. Mesmo àquela distância, vi que tinha o nariz e os lábios azuis.

— É do ar esquelético que não gosto — disse Hecamede, tocando na ponta do nariz. — Ficam assim antes de se irem.

Livro: "As Mulheres de Troia"

Autor: Pat Barker

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 22 de junho

Preço: € 18,80

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Foi um alívio deixar para trás aquela divisão e o seu cheiro a carne velha e doente. Novamente no salão, inspirei fundo várias vezes. Depois, Hecamede pegou numa travessa, eu na outra e, com Amina a seguir como de costume várias jardas atrás de nós, atravessámos a arena onde as sombras compridas das estátuas dos deuses se espraiavam na areia recém-alisada. Ofuscadas, passávamos da luz para as sombras e novamente para a luz — uma caminhada curta e vigorosa no vento cortante — e, a seguir, baixando as cabeças, emergimos na escuridão bolorenta da cabana de Hécuba. De um quarto de doente para outro, pensei. Mas a semelhança acabava aí. Nestor dormia numa cama de rei rodeada de todos os adornos da riqueza e do poder; a cabana de Hécuba era mais um canil do que uma habitação humana. Se bem que, pelo menos, a tivesse só para si, luxo raro num acampamento sobrelotado. Odisseu parecia tratá-la razoavelmente bem. Quando as mulheres da realeza foram partilhadas entre os reis, houvera muita gargalhada a expensas de Odisseu. Agamémnon e vários dos outros reis tinham ficado com as filhas virgens de Príamo, Pirro com uma viúva refrescantemente jovem — que grande potencial, se ao menos ela se alegrasse um pouco —, ao passo que Odisseu se vira a braços com uma velhota esquálida. Ele limitou-se a encolher os ombros, não fazendo caso das risadas. Sabia que ia levar para casa a única mulher que Penélope, sua esposa, aceitaria, e, com alguma sorte, talvez a conseguisse convencer de que dormira sozinho nos últimos dez anos, passando os solitários serões só no ocasional jogo de pinos com os seus homens. Era suficientemente astuto para fazer tudo aquilo parecer convincente — e, ao que se dizia, Penélope era tão astuta que fingiria acreditar. Não havia quem não louvasse o espírito e a bondade de Penélope. Não me custava nada imaginar Hécuba sentada numa sala aquecida a bordar uma peça pequena, e não, como tantas mulheres mais velhas eram obrigadas a fazer, a esfregar pavimentos de pedra debaixo de uma saraivada de berros, por não trabalharem suficientemente depressa. Oh, podia ser uma vida de sofrimento, assolada pelo desgosto, mas pelo menos gozaria de conforto físico nas semanas ou meses que lhe restassem, fosse eles quantos fossem.

Um perfeito disparate, estas fantasias. Desde o instante em que viu Príamo ser assassinado, Hécuba não tencionava viver.