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8
Junho de 1952
Depois de uma grandiosa temporada em cena na Broadway, Audrey chegou a Roma. Logo que saiu do edifício do aeroporto, foi fulminada pela onda de calor que por lá se fazia sentir. William Wyler quisera iniciar as filmagens logo no início do verão, para escapar à canícula de agosto, quando faria realmente um calor insuportável na cidade, mas a verdade é que o asfalto já cintilava sob a luz do sol. A Cidade Eterna estava como que presa dentro de uma campânula de calor e humidade. Quando Audrey viajou de táxi até ao hotel, os contornos dos monumentos pareciam desvanecer‐se sob a luz tremeluzente. Trazia os seus grandes óculos de sol, que, entretanto, se haviam tornado numa imagem de marca, uma blusa de manga cava, corsários e sabrinas, mas mal podia esperar por chegar ao hotel para tomar um duche frio e pôr um vestido mais arejado.
Multidões de turistas acotovelavam‐se em torno dos famosos monumentos e também Audrey olhou com espanto para o Coliseu pela janela do carro. Por momentos, foi invadida pela enorme felicidade de poder trabalhar naquele lugar maravilhoso e com tanta história, e, de novo, a vida pareceu‐lhe uma grande aventura.
O hotel era um edifício grande e imponente pintado com cores pastel, caracterizando‐o uma espécie de charme descorado. Audrey gostava do modo como evocava o brilho de outros tempos. Para seu alívio, dentro das grossas paredes de alvenaria estava mais fresco do que no exterior, e o quarto dava para um pátio interior que ficava à sombra de palmeiras de folhagem densa e chapéus de sol.
Tirou a roupa totalmente transpirada, desfez a mala e desceu ao átrio com algumas moedas na mão para ligar para casa de uma cabina telefónica. Tivera de prometer a Ella que dizia alguma coisa logo que chegasse. O telefonema seguinte foi para James, que também aguardava notícias suas.
– Querida! Que bom que chegaste bem. – Mal conseguia perceber a voz de James, a casa dele parecia um formigueiro de pessoas a rir, numa confusão de conversas.
– Tens visitas? – perguntou Audrey, intrigada.
– Isso não interessa, conta‐me mas é como são as coisas em Roma. Já conheceste o maravilhoso senhor Peck?
– Ainda não o vi, acabei de chegar. Mas mal posso esperar por o conhecer. Dizem que é um colega incrível e um homem simplesmente deslumbrante.
– Não te estiques – rosnou James.
– Ora, não te preocupes. O Gregory Peck é treze anos mais velho do que eu, tem trinta e seis anos e, além disso, é casado. Muito bem casado. Agora tenho de ir, James. Estou a ver o Gregory Peck do lado de fora da cabina e parece que também quer telefonar.
– Muito engraçadinha – resmungou ele. Audrey concluiu que estava demasiado calor dentro daquela cabina telefónica para se abor‐ recer com ele, pelo que pousou o auscultador depois de uma breve despedida.
Quando se virou, ficou paralisada como uma pedra. Diante da porta de vidro semiaberta estava, nada mais, nada menos, do que Gregory Peck, vestido informalmente com calças de linho amarrotadas e uma camisa branca de manga curta, aparentemente tão desgrenhado, depois de um voo longo, como ela. Estava descontraidamente encostado à parede, os braços cruzados à frente do peito, e sorria‐lhe.
– Sr. Peck... – Audrey conseguia ouvir o sangue a correr‐lhe para as orelhas. Se naquele momento se tivesse aberto um buraco no chão, ter‐se‐ia de bom grado atirado lá para dentro.
– Menina Hepburn? – perguntou ele, ainda com o sorriso enviesado no seu rosto atraente. Via‐se‐lhe nos olhos castanhos a malandrice, e Audrey tomou embaraçosamente consciência de que era ela o motivo do seu divertimento. Ela assentiu, muito corada.
– Trate‐me por Gregory. Greg. E vamos tratar‐nos por tu – disse ele calorosamente, afastando‐se um passo do canto onde estava para lhe estender a mão.
– Audrey – murmurou ela, confrangida.
– Pelo que pude ouvir, estás muito bem informada sobre mim – disse ele com um trejeito nos cantos da boca. – Quer isso dizer que já não há nada que possa impedir a nossa boa colaboração.
– Assim o espero – murmurou ela, com a voz enrouquecida.
– Fantástico. Já vi os testes de imagem que o William fez contigo. Estavam magníficos. Foste mesmo feita para o papel da princesa Ann, estou ansioso pelas filmagens.
– Eu também – disse ela, irritando‐se por momentos com a sua falta de eloquência. Porque é que, nos momentos mais importantes, parecia sempre uma adolescente inexpressiva?
– Agora tenho de ligar urgentemente à minha mulher e dizer‐lhe que aterrei em segurança – disse ele, e o seu sorriso novamente malandro insinuava‐lhe o «muito bem casado» que ela usara antes para se referir a ele. – Até mais tarde, então... Ah, Audrey? Se quiseres, depois podemos sentar‐nos juntos para ler os textos.
– Gostava muito – respondeu ela, não conseguindo suprimir um largo sorriso. Quando voltou ao quarto, com o coração a martelar‐lhe no peito, chamou‐se a si mesma à razão. Ele disse «ler os textos», foi preciso lembrar‐se constantemente, e não «vamos encontrar‐nos à noite e tomar um cocktail ou comer um gelado na escadaria da Praça de Espanha»...
*
Audrey deitou‐se cedo, pelo que nessa noite já não encontrou mais ninguém da equipa do filme. Na manhã seguinte, estava no plateau, que ficava no meio do vaivém das ruas de Roma, sentada na sua rulote enquanto a cabeleireira Grazia lhe arranjava o cabelo, e o marido, Alberto, a maquilhava ao mesmo tempo.
– Com este calor terrível, seria provavelmente melhor nem pormos maquilhagem – suspirou Audrey. Pedira que lhe trouxessem um café, pois sentia uma necessidade urgente de cafeína, mas a bebida quente pusera‐a de novo a transpirar por todos os poros. – Provavelmente daqui a nada já me vou parecer com um panda.
– Não se preocupe, signorina – tranquilizou‐a Alberto, usando uma esponjinha para aplicar cuidadosamente uma espessa camada de base. – Temos produtos especiais que resistem a quaisquer condições meteo‐ rológicas. Está encantadora.
– Duvido muito! – murmurou Audrey, bebendo um gole de água e pondo de lado o copo de café meio vazio. Para a cena que iriam rodar naquele dia, vestira a camisa de noite de colarinho alto e cheia de folhos que já conhecia dos testes de imagem. – Nesta cena pareço‐me com a minha bisavó. Não admira que, no filme, a princesa exija que lhe tragam um pijama. – Grazia e Alberto riram‐se baixinho, como se ela tivesse dito uma coisa mesmo muito divertida.
Nesse momento, alguém bateu à porta e, quando Audrey disse «entre», William Wyler subiu para a rulote. A sua T-shirt já exibia, logo pela manhã, grandes manchas de suor sob as axilas.
– Deus do céu, aqui dentro está insuportável – resmungou ele, dando um beijo na face de Audrey. – Puseram‐te na antecâmara do Inferno? – Cuidado, Sr. Wyler, ainda esborrata a maquilhagem – advertiu
Alberto, sacando novamente da esponjinha.
– Estás bonita – disse William, dirigindo‐lhe um sorriso atrevido. Audrey suspirou.
– Sim, que se há de fazer. Afinal de contas, já me viste antes de camisa de noite, por isso agora estou a fingir que não me incomoda.
– Sempre a mesma fina lady inglesa, não é? – William sorriu e depois olhou para o relógio. – Se vossas excelências já estiverem prontas, poderíamos começar. No pino do meio‐dia vamos estar todos espapaçados como compota de framboesa ao sol, por isso temos de aproveitar ao máximo cada minuto.
As primeiras cenas que rodou – de camisa de noite – eram sem Gregory Peck, mas para o final da manhã estavam previstas as primeiras cenas juntos. O ator desceu descontraidamente da sua rulote e juntou‐se a Audrey, que estava debaixo de um grande chapéu de sol que um elemento da equipa segurava em cima da sua cabeça para a proteger, enquanto ela esperava pelos últimos ajustes das câmaras.
– Bela roupa – observou ele, ao que ela passou os olhos pela saia e pela blusa que deveria usar na cena em que se conheceriam.
– Estou nervosa – saiu‐lhe pela boca fora. – Já fiz, entretanto, algu‐ mas cenas, mas, de alguma forma...
Gregory olhou‐a totalmente de frente e fixou‐a com os seus caloro‐ sos olhos castanhos.
– Ora, de certeza que vais ser fantástica.
– Não – Audrey inspirou fundo. – Neste momento, sinto‐me uma absoluta principiante. Não consigo, Greg. Vou ser desajeitada como um boneco de madeira, tipo Pinóquio.
Gregory olhou‐lhe para o nariz e respondeu com brandura:
– Tenho a dizer que não te pareces propriamente com o Pinóquio. – Ao teu lado, de certeza que mais vou parecer uma atriz amadora de East London. Tu... Tu... és um ator celebrado, e eu sou só uma... sim, uma bailarina.
– Uma bailarina que fez furor na Broadway – contestou ele baixinho. Ela ficou presa ao seu olhar. Ele olhava para ela com uma expressão tão séria e solícita, que o coração dela deu um salto. Percebia perfeitamente por que razão milhões de mulheres sonhavam com ele. – Uma bailarina que, ao que me parece, tem um problema de autoconfiança que é preciso resolver urgentemente. – Ele chamou William, que estava a ter uma crise de nervos junto dos operadores de câmara, que estavam a ter problemas com a luz ofuscante. – Quanto tempo ainda, Will? Ainda temos um quarto de hora?
– Infelizmente, sim – gritou William com a cara toda vermelha. – Ou talvez até meia hora, ou uma hora inteira, se esta porcaria aqui não se puser a funcionar depressa!
– Não saias daí – disse Gregory, deixando Audrey boquiaberta. Voltou nem cinco minutos depois, trazendo nas mãos dois grandes cones com um gelado vermelho‐framboesa. – Toma, um gelado para relaxar. Acalma os nervos e ainda arrefece.
Audrey olhou para ele, incrédula, e depois desatou‐se a rir e pegou no gelado.
– Talvez seja uma boa ideia. Muito obrigada!
Refugiaram‐se nos degraus de uma rulote e lamberam os seus gelados em sintonia.
– E então, funcionou? – perguntou Gregory, quando ela acabou de comer o bico da bolacha do cone.
– E como! Agora sou a calma em pessoa e é provável que, sabe‐se lá como, eu vá conseguir dizer as minhas falas. – Audrey sorriu‐lhe e Gregory assentiu, satisfeito. Ela sentia‐se bem na sua companhia. Apesar de só se terem conhecido no dia anterior, já existia entre eles um ambiente de confiança e amizade. Ele era uma daquelas pessoas que colocavam o outro no centro da sua inteira atenção. Estava ansiosa pelas semanas que se seguiriam e também por ter a oportunidade de se apaixonar por ele no filme. Era evidente que, para ela, James vinha em primeiro lugar, mas também estava um nadinha apaixonada por Gregory. Seriam momentos gloriosos.
– Muito bem! – gritou William, limpando o suor da testa com uma grande toalha. – Todos às suas posições, vamos avançar.
Audrey e Gregory deslocaram‐se para as posições que lhes haviam sido marcadas, trocando ainda um último sorriso furtivo e cúmplice.
William correu freneticamente até Audrey e pôs‐se a arranjar a sua roupa.
– Deus do céu, meninos, o que vos passa pela cabeça para se sentarem comodamente a lamber gelados enquanto amarrotam a roupa toda...! Isto é um plateau de filmagens, não um teatro de marionetas. – Passou uma última vez os olhos por Audrey, enquanto refletia o que deveria dizer, mas depois explodiu: – Jesus Senhor, jovem, és lindíssima, isso já toda a gente aqui sabe, e o teu visual vai ser copiado por cada vez mais fãs. Acho que aquelas divas todas sensuais que temos visto até agora nos filmes vão ter de vestir roupa mais quente no futuro.
Totalmente corada, Audrey baixou os olhos para o seu corpo magro.
– Põe‐te a andar, velhote – disse Gregory a William –, e vai fazer aquilo para que te pagam.
William fez uma careta e foi‐se embora no seu passo pesado, enquanto Gregory e Audrey sorriram compreensivamente um para o outro.
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