Carlos, Carlão, Pacman… Como é que a tua mãe te chama?

Por Carlos. Ou outros nomes que não vale a pena dizer aqui.

Carlão vem de onde?

É um nome que me chamam desde muito puto, desde o ciclo preparatório, quando andava com malta mais velha. Tudo por causa do meu irmão [João Nobre aka Jay-Jay], quatro anos mais velho. Na altura mais quatro anos faziam uma grande diferença. Como andava com aquela malta toda — e às vezes até com malta mais velha que o meu irmão, saltava as redes do ciclo preparatório para ir ter ao secundário com eles — e como era evidentemente mais pequeno do que eles, chamavam-me de Carlão, a gozar. Como se chamassem fininho a uma pessoa gorda. Era uma coisa de gozo. Cresci e até fiquei mais alto que eles todos.

Foi essa malta que te levou a ver Iron Maiden, a Cascais, quando tinhas 11 anos?

Sim, foi precisamente essa grupeta toda lá da rua e da escola. Era uma coisa muito forte para nós, mas andávamos a ouvir esse metal e sons derivados. Foi a minha estreia [em concertos].

Hoje, se um miúdo de 11 anos disser aos pais que quer ir ver Maiden talvez não cole...

Eram outros tempos, mas ainda assim não foi fácil. Tive muitas portas abertas... Acho que é o que acontece sempre ao filho mais novo, não é? O meu irmão teve de passar por muitas coisas que eu não passei. Comigo, essa porta já estava aberta e o caminho estava feito. Ainda assim, lembro-me de pessoal lá na rua, até pessoal com 17-18 anos, que não foi. E eu fui com o meu irmão, que tinha 15. Mas a verdade é que vivíamos numa altura muito diferente, em que a malta saía da escola e ficava na rua até aos pais virem à janela mandar ir para casa. Fazíamos muito vida de rua e aquelas cegadas todas, como ir roubar fruta. Hoje em dia isso já não acontece. Não estou a dizer que hoje é melhor ou pior, mas antes havia uma liberdade muito maior.

Falámos de Iron Maiden, mas tens outras memórias de concertos dessa altura?

Com 13-14 anos anos cheguei a ir ver matinées de metal ao Rock Rendez Vous [Lisboa], por exemplo. O meu irmão também tocava nos Braindead e eu supostamente fazia parte da equipa técnica. Era roadie, mas nem tinha força para agarrar num amplificador. Estava lá tipo mascote, quase. Mas cheguei a ir ver algumas coisas entre Almada, Corroios e o Fogueteiro. Também toquei com os Esborr numa primeira parte dos Censurados, no Fogueteiro [1990], tinha para aí quinze anos.

Por te teres dado com gente mais velha, achas que tiveste um crescimento mais rápido? E que com isso tenhas perdido alguma coisa?

Sim, sim. Cresci muito rapidamente para uma série de coisas, mas perdi obviamente muita coisa característica da pré-adolescência e mesmo da adolescência. O que os miúdos da minha idade estavam a fazer, no processo de crescimento normal, eu de certa forma saltei. Se algumas coisas eram dispensáveis, outras nem por isso. Ganhei umas coisas, perdi outras.

"Durante muito tempo fui o irmão do Nobre... E ele sim, era um dos nomes da rua. Eu era só o irmão"

És filho de cabo-verdianos, mas nasceste em Angola. E de lá vieste muito cedo para Almada...

Vim com meses, os meus pais fugiram à guerra. [De Cabo Verde] eles foram para Angola trabalhar para o estado português. Nasci em 1975, quando a situação já estava mesmo grave. E nasci em casa, tiveram de chamar uma parteira porque havia tiros na rua. Os meus pais fugiram tal como os tugas que lá estavam. Aquela malta toda que se veio a chamar de "retornados". Os meus pais vieram nessa leva e deixaram lá tudo o que tinham. Vieram para cá sem nada, quase como se fossem retornados, mas mais ainda com o peso de serem africanos.

Esse período, tanto em Angola como a vinda para Portugal, é algo de fácil de abordar com os teus pais ou tem algumas barreiras?

Existem algumas barreiras. Mas isso é algo, acredito, que é comum a várias famílias: à medida que o tempo vai avançando, mais se vai descobrindo. Lembro-me que a minha mãe, há uns tempos, disse-me uma coisa que nunca me tinha dito: que quando estava a fugir para o avião, ia comigo ao colo com meses, caiu-lhe o sapato e ela deixou-o para trás e entrou no avião descalça. Isso foi uma coisa que ela me disse, sei lá, no ano passado. Vamos descobrindo coisas... O tempo cura muito, n'é? À medida que as pessoas vão ficando resolvidas com o seu passado também comunicam mais facilmente.

Como foi crescer em Almada nos anos 70-80?

Epá, foi porreiro. Tenho boas memórias...

Que Almada era essa?

Era uma cidade que sempre foi dormitório. Não se passava grande coisa, as pessoas para fazerem o que quer que fosse tinham de vir para Lisboa. Tinhas a forte presença da Lisnave... Mas, em boa verdade, não se passava grande coisa. Talvez por isso e por ser periférica, criava-se ali um grande espírito de companheirismo e de camaradagem. Um gajo fez ali boas amizades. Tive uma infância e uma adolescência muito rica.

Quais são as diferenças com a Almada de hoje?

Tem uma série de serviços e de estruturas que não havia na altura. Mas, por outro lado, talvez esteja descaracterizada. Não sei, encontro-me dividido entre Almada e Cacilhas. Na verdade, digo sempre Almada, mas sou mais de Cacilhas. Entre Lisboa, onde moro, e Cacilhas, onde vou trabalhar, no estúdio, acabo por não viver a cidade [de Almada] como vivi naqueles anos todos. Mas acho que está melhor, sendo que há ali coisas que são um problema de todas as cidades, como as avenidas que antes tinham uma vida muito grande e agora estão meio fantasma, já não há aquela vida de rua que havia.

Quem eras tu na tua rua?

Durante muito tempo fui o irmão do Nobre... E ele sim, era um dos nomes da rua. Eu era só o irmão.

Dizias na letra da música "Comité Central" que eras o "preto russo". "Preto russo, uma de mão, lavado com detergente (...) Muito escuro para branco / Muito claro para preto"...

Era uma das alcunhas, sim.

Como é que é esse estigma te acompanhou?

Foi muito complicado. Por muito resolvido que esteja, há sempre um lado meio estranho, que é o de nunca te sentires parte de algo. Às tantas até pode ir muito além da cor da pele... A Sara Tavares dizia noutro dia, numa conversa, que a primeira vez que foi a Cabo Verde disseram-lhe 'vai para a tua terra, vai para Portugal'. O pessoal de cá é que diz muito aquela coisa do 'vai para a tua terra', n'é?. Então ela sentiu que não pertencia nem a Portugal, nem a Cabo Verde, nem a nada. Isso à partida não é uma coisa boa.

E eu senti isso, não só no aspeto da cor da pele. Durante a adolescência, havia aquela coisa das modas, dos grupos: ou eras do metal ou do gótico. Sempre me senti a usar uma pele forçada. A sério, sempre fiz um grande esforço para pertencer.

"Chegou uma altura em que percebi que era okay ser isto tudo e não ser nada. Não ser nada, não. Ser o que sou"

A que grupos?

A muitos. Costumo brincar e dizer que era o "Zelig" do Woody Allen. Quando estava com góticos, ficava automaticamente gótico. Porque eu só queria pertencer a algo. E por ser tão indefinido isso custou-me sempre muito. Até que chegou uma altura em que percebi que era okay ser isto tudo e não ser nada. Não ser nada, não. Ser o que sou.

Não deixa de ser curioso. Desde os Da Weasel muita gente quer ser como tu. Como tu, Pacman/Carlão, ou como vocês, Da Weasel. E quer alcançar o que conseguiram e trilhar novos caminhos, tal como vocês o fizeram.

É óbvio que fico contente com isso. Lembro-me quando o primeiro disco de  N.E.R.D saiu, achei aquilo do caraças. Porque era precisamente aquilo pelo qual nós, durante muito tempo, andávamos a lutar. Sempre me revi muito no universo deles. Olhavas para aquilo e vias uma grande misturada: ele era do skate, mas rimava e cantava. Então, quando eles apareceram eu pensei: 'porra, é isto'. E nós já andávamos lá perto. Era o caminho natural das coisas. Se calhar, se não tivéssemos existido, as pessoas iriam chegar lá na mesma.

As tuas filhas sabem que há uma geração que não consegue ou ouvir um “estás a sentir” sem pensarem automaticamente no resto do verso, “uma página de história / pedaço da tua glória”. Ou um “adivinha quem voltou” sem um “comeu e não calou" e um “olá nina” sem um “quero tratar de ti”.

Não, não. A mais nova tem três e a mais velha oito anos. E a mais velha conhece algumas coisas dos singles, mas não de todos. O “Re-Tratamento" e o "Dialectos da Ternura" ela conhece, mas mais do que isso não. E até há bem pouco tempo não conhecia sequer isso.

Mas elas não estranham algum idolatrismo que possa surgir, por exemplo, quando vais na rua...

Elas têm consciência de algumas coisas, por causa das pessoas [na rua] pedirem fotos e dizerem uma série de coisas. A mais velha já começa a ganhar uma perceção diferente e a perceber que há algo mais do que uma coisita normal. Lembro-me de quando fiz uma dobragem de um filme de animação, ainda ela era muito pequena, e de lhe dizer 'olha, Alice, isto é o pai'. Fazia a voz de um hipopótamo e ela apontava para a 'hipopótoma' e dizia 'e ela é a mãe'. Não sabia separar muito bem as coisas. Se estava na televisão era porque era normal as pessoas estarem na televisão. Agora já vai percebendo uma cena aqui e ali. Já vai a concertos...

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Tu és um melómano. Também lhes passas isso ou já as levaste a algum concerto que não teu?

Já ouvi muito mais música do que agora. Quando tinha mais tempo e mais disponibilidade. Elas já foram a um concerto dos Clã, adoram o “Disco Voador". De resto ainda é um bocado... A menos que esteja num festival e elas estejam comigo, acabamos por picar aqui e ali. Mas eu próprio já não sou aquele consumidor de concertos que fui. Elas acabam por ouvir [connosco] música em casa e no carro. E nós ouvimos as músicas delas.

E se com 11 anos te pedissem para ir ver Iron Maiden? Ias com elas...?

Se calhar gostava mais que elas fossem ver Maiden que algo mais standard. Revelava talvez alguma apetência por ouvir coisas que não lhe estão a esfregar pelos olhos e pelos ouvidos a dentro. Mas provavelmente ia, sim. Acho que os meus pais não foram porque não tinham nada a ver com aquilo.

Os miúdos de hoje deixam de procurar música e vão mais por aquilo que lhes chega?

Não sei, sinceramente. Já deixei de entrar naquela onda de achar que sei o que é que os miúdos fazem.

Quando falo de miúdos estou a estender até uma faixa etária mais alargada.

Há uma grande diferença entre aquilo que era a cultura musical de há uns anos e o que é a de agora. Ainda me é difícil avaliar isso. Mas para nós havia um bocado essa procura, havia todo um ritual. Ires à procura de música nova era uma espécie de viagem. Quase um segredo escondido. Hoje em dia é tanta coisa a aparecer que até é difícil filtrar.

A sugestão do amigo quase foi substituída pelo algoritmo.

Um bocado, ya. Mas vai haver sempre aquela malta que não vai atrás do que lhe é impingido. Acho, na verdade, que o que muda são os suportes, o resto mantém-se igual.

"O pessoal do hip-hop não gostava [de Da Weasel] porque achava que não éramos hip-hop, e o pessoal do rock não gostava porque dizia que não éramos rock"

A brincar a brincar, os Da Weasel começaram há 25 anos. E não vamos falar de como tudo começou porque há 25 anos que se fala desse começo. Pergunto antes o que te ia na cabeça no dia seguinte ao fim.

Não sei. Sabes que a malta não falou muito sobre isso e eu também preferia não o fazer. Mas se bem te recordas nós fizemos uma paragem de um ano e depois então a coisa acabou. Portanto não foi assim um choque de um dia para o outro. Tipo um dia estamos a tocar e na semana a seguir acabou. Esse ano, de certa forma, assegurou que houvesse uma transição mais fácil.

Mas na altura o que é que te apetecia fazer. O que fazes agora?

Na altura não me apetecia fazer grande coisa na música.

Em algum momento te passou pela cabeça algo como ponto final nos Da Weasel, ponto final na música?

Houve um período, sim. A cena dos Da Weasel foi realmente muito forte para todos nós. E o que eu acho mesmo fixe é que deixámos ali um corpo bonito. Eu pelo menos vejo as coisas dessa forma. A verdade é que muita gente que hoje fala dos Da Weasel, tipo 'quando é que voltam' e não sei quê, nunca nos viram. Outras até dizem isso, mas há muitos anos andavam a dizer 'o "Terceiro Capítulo" [o segundo álbum] é que era'. E falam muito de Da Weasel, mas nem falam de Da Weasel no seu todo.

É sempre um fenómeno meio estranho quando uma banda acaba, ou quando uma pessoa morre, porque depois passam uns tempos e aquilo fica ali meio... é um terreno muito difuso. As pessoas só se lembram do que se querem lembrar. Mesmo muito ódios que nós tínhamos tornaram-se no oposto, o que é muito irónico.

Que ódios eram esses?

Ódios de... sei lá. Se calhar estou a ser um bocado forte. O pessoal do hip-hop não gostava [de Da Weasel] porque achava que não éramos hip-hop, e o pessoal do rock não gostava porque dizia que não éramos rock. Com o passar dos anos já vêm dizer 'ah não, eu ouvia e curtia'. Epá...

"Não vejo tudo com grande saudosismo, precisamente porque tudo aquilo que nós fizemos foi feito com boa onda, pelas razões certas e foi fixe"

Mas digo honestamente que não vejo tudo com grande saudosismo, precisamente porque tudo aquilo que nós fizemos foi feito com boa onda, pelas razões certas e foi fixe. Para mim o último disco é o melhor, é o mais bem conseguido, é o mais estruturado, é o que tem melhores músicas, melhores letras e melhor produção. Portanto, quando olho para isso tudo, olho com uma sensação de missão cumprida. Não entrámos naquela coisa que é quase inevitável as bandas entrarem, que é começar a criar demasiadas rotinas, demasiados vícios e a chegar num ponto onde já não fazem nada de interessante. Porque é mesmo assim, são muitas pessoas juntas e crias ali uma cena em que as pessoas já não se desafiam tanto criativamente. E entras numa espiral que acontece a bandas com mais de 15-20 anos: já não fazem discos interessantes, continuam a tocar os álbuns antigos... Quem vai ver os Stones não vai ver pelo álbum que lançaram o ano passado, ou mesmo há cinco anos. Isso até é fixe, mas para mim não seria a coisa mais interessante. Resumindo, vejo esses anos [de Da Weasel] com bons olhos mas não numa de 'naquele tempo é que era'.

Como é que se passa de um Pavilhão Atlântico, com um público garantido e fiel, para um sala mais pequena, a começar com outro projeto e a conquistar novos públicos? É desafiante?

É... Mas eu nem tinha noção disso. Lembro-me de estar no Atlântico, de estar a stressar e do Quaresma me dizer: 'o pessoal que vem aqui, vem para nos ver'. Não era um festival, era uma data nossa [de Da Weasel]. Eu questionava tudo, até demais. Mas não sabia que aquilo era garantido, quando comecei a fazer outras coisas é que percebi. [Salas mais pequenas] é desafiante… Mas tens um grande fantasma por trás....

Os Da Weasel...

É um fantasma grande... Mas tenho seguido sempre aquilo que quero fazer de forma muito intuitiva. Por muito que as coisas custem, são feitas com um bom espírito. Quando os Da Weasel acabaram, em boa verdade, não queria voltar aqueles sítios, tipo Queimas das Fitas, e à vida de estrada muito intensa. Não sei como foi para os outros, mas eu queria aproveitar para descansar um bocado disso. Seja com Dias de Raiva ou com Algodão, soube-me muito bem fazer salas pequenas, tipo café-concerto. Por muito inseguro que seja, e sou bastante, já não me afeta tanto como me afetava quando tinha vinte anos. A casa não está cheia? Fico fodido meia hora e depois já passo para outra.

Essa insegurança manifesta-se de que forma?

Em tudo. Questiono-me sempre. Questiono até que ponto [o que estou a fazer] é relevante ou não. Questiono a minha posição no meio desta indústria toda... O João Gil há uns tempos disse uma coisa interessante: essa coisa do 'já não tenho nada a provar a ninguém' é falsa. Mais do que não seja, tens a provar a ti próprio, tu que és a pessoa mais fodida de se convencer. Olho para trás e [penso que] já fiz aquilo tudo e foi fixe. Já percebi que não é o que as pessoas pensam ou romantizam. Se vou agora a um parque de diversões e não consigo andar na montanha russa... epá, já andei e já sei como era: era fixe, mas também não era assim tão fixe.

"Questiono-me sempre. Questiono até que ponto [o que estou a fazer] é relevante ou não. Questiono a minha posição no meio desta indústria toda"

Estou numa altura em que provavelmente iria passar muito mal se tivesse uma agenda como esta malta mais nova tem. Aquela agenda louca de quase uma centena de concertos por ano, sem passar tempo em casa. Estou bem assim, por muito que pense que seria fixe, mas já passei por isso e sei que pode ser muito complicado. Mesmo sendo Portugal um país pequeno, tenho uma pequena ideia do que são as grandes tours internacionais. E as pessoas ficam com graves problemas, tipo depressões.

O que é que seria pior, ficares sem o dom da palavra ou o Benfica perder?

Não sei se é dom, mas era muito pior ficar sem palavras. O Benfica é daquelas coisas que também vou levando de outra forma. Aqui há uns anos se calhar deixava de fazer coisas com as minhas filhas por causa de um jogo. Hoje em dia, pondero.

Irritaste-te?

Irrito-me um bocado.

E irrita-te o panorama atual do futebol português, aquele fora das quatro linhas?

Tudo o que é fora do jogo jogado, epá... não tenho paciência. Não procuro essas notícias nem vou ver aquele exagero de programas que há em torno disso. Estou minimamente dentro, vou aos jogos quando posso, tenho os canais pagos e vejo tudo. Mas acaba o jogo e acaba mesmo.

Já que referiste as tuas filhas. O que é que sentiste quando uma delas entrou na Luz de mão dada com o Pizzi, num Benfica-Dinamo de Kiev? Também querias ter estado naquele momento, de mão dada, um de cada lado?

Quase. Mas senti um grande orgulho. Acho que acabou por lhe passar um bocado ao lado e eu talvez eu tenha vivido mais o momento do que ela.

Ainda jogas FIFA online?

Jogo e levo tareias de putos que devem ter sete anos.

Sabem lá eles que estão a jogar com o Carlão...

Ainda bem que não sabem.

créditos: Rita Sousa Vieira | MadreMedia

Falando agora do teu último álbum, "Entretenimento?". A quem deixas a questão: a ti, a quem te ouve, à indústria?

A mim e a toda a gente. Mas em primeiro lugar, a mim.

E já alguém te deu resposta a esta questão?

Não... Não querendo ser minimamente pretensioso, é um bocado aquele exercício filosófico de estares ali a discutir coisas que não têm uma resposta fechada.

"Assusta-me esta altura que vivemos, da cultura da imagem e em que quase tudo é comunicado como entretenimento"

Cabe a cada um encontrar a sua resposta?

Sim. Eu questiono-me até que ponto, estando nesta indústria, não posso ser também um pião do jogo. E se jogo ou não. Sabendo que há algumas regras que acabo por cumprir. Assusta-me esta altura que vivemos, da cultura da imagem e em que quase tudo é comunicado como entretenimento. Mistura-se tudo e às vezes não funciono muito bem quando as coisas não estão compartimentadas. Sei lá, quando a Assunção Cristas foi ao 5 para a Meia Noite na mesma altura em que fui. Aquela coisa toda dela estar naquele registo, epá... é meio estranho. Nem acho que seja bom ou mau.

Ter um presidente-selfie é entretenimento?

É, também. Sendo que se calhar faz-me menos confusão ser o Marcelo enquanto presidente do que o primeiro-ministro. Mas, ya, é isso. Vivemos numa altura em que tudo é entretenimento.

Neste disco contas com alguns nomes com quem já tinhas colaborado, como o Manel Cruz ou o Branko. Mas também te rodeaste de nomes da nova geração, como o Holly, o Slow J, o xxoy... Não há aquela cena de “estou num patamar” em que não preciso de um puto de vinte e poucos anos agora aqui a colaborar comigo.

É exatamente o contrário. Gosto de me deixar contaminar com sons mais contemporâneos, mas sem perder a minha identidade e noção daquilo que sou. Eu estou naquela música, naquele tipo de som, que gosto, mas há certas coisas que não me cabem a mim fazer. Faço o som à minha maneira, mas chamo alguém que o sente da forma certa para mandar a rima. É o caso da "Foge de Mim" com o Holly.

"Gosto de me deixar contaminar com sons mais contemporâneos, mas sem perder a minha identidade e noção daquilo que sou"

Da mesma forma que aprendeste com o teu irmão e com os amigos dele mais velhos, sentes que tens a aprender com esta geração?

Há muita gente que sempre fez isso, e da forma certa. O Bowie, por exemplo, fez até ao fim da vida. Quando tinha sonoridades mais contemporâneas, fê-lo de uma forma fixe. Era a identidade dele que estava ali, não era ele a tentar ser um miúdo de vinte anos. Eu sou camaleão, mas não tanto.

Esta capa do disco é do Miguel Januário, também conhecido por +/-, a do "Quarenta" era do Vhils. Há aqui um padrão, com assinatura de dois dos maiores nomes da 'nossa' arte urbana.

É uma maneira de ter obras deles de uma forma mais barata. Agora a sério, lembro-me de ter visto uma exposição do Vhils no Museu da Electricidade e de ter saído de lá com um orgulho... Sabes aquele orgulho que a malta tem no Cristiano Ronaldo? Eu também tenho, até certo ponto, mas não é o mesmo que tenho ao ver um Vhils a ter sucesso pelo mundo fora. Há muita coisa [neles] na qual eu me revejo. Poder fazer cenas com eles é do caraças. Eu ainda vejo muito a história dos discos como esse pacote todo. Mais do que ter vídeos, ter uma capa fixe e pensada.

E que faixa é a “Até já”, que encerra o disco. É uma faixa resumo, é de agradecimento, é uma autocrítica ou uma projeção para o futuro? É isto tudo e mais alguma coisa? Já que falamos num formato conceptual de um disco, é quase como se fosse aquele livrinho com a ficha técnica.

É isso tudo que disseste. Como te dizia antes, acho que nunca vou estar contente. Nunca ninguém está. Podem mentir, é natural, mas não estão. O que meti nesse tema foi um agradecimento, mas também quis falar deste momento da minha vida. Reflete o facto de querer fazer um disco como se fazia noutra altura, noutra vida ou como o Slow-J faz. Quase 24/7 a pensar um disco, a fazer noitadas, só vidrado naquilo. Mas eu não tenho vida para isso, não consigo. A minha conclusão e que não está lá, ou não está lá desta forma, é: se não fosse esta a minha vida, estaria à procura dela. Quase como aquela short-story, meio sketch, do Woddy Allen, entre um vizinho casado e um solteiro. Podia ter 'esse' disco, mas depois faltava-me tudo o resto. Neste momento da minha vida acho que tenho um equilíbrio muito porreiro entre tudo. 

"Se não fosse esta a minha vida, estaria à procura dela"

Em março participas num espetáculo que contará a História do hip-hop tuga. Qual é o teu capítulo?

Anda ali por meados dos anos 90. Os primórdios do hip-hop tuga, para mim. Quando ia às matinées no Trópico ver a Yen [Sung] a passar discos e comer cachupa enquanto o ouvia Boss Ac, Black Company, Family, Letras da Nova Mensagem. Os Da Weasel sempre tiveram uma posição meia paralela a essa história.