“Fernando Matos Silva: o cinema a fazer realidade” atravessa o percurso do cineasta, reunindo produção para cinema e televisão, as longas e curtas-metragens, o trabalho de ficção e de documentário – muito dele feito com a produtora Cinequipa que fundou após o 25 de Abril -, pondo em evidência o essencial de uma obra com centenas de títulos, que reflete perto de 60 anos da história portuguesa.
A ameaça da guerra colonial, como mostra “O mal amado” – que foi também o primeiro filme a estrear-se sem censura, dias depois do 25 de Abril -, as condições de vida da população, as lutas de operários e camponeses, as greves, a reforma agrária, a liberdade de expressão e de manifestação conquistadas em 1974, a afirmação do teatro independente no período revolucionário, o passado colonial português, o impacto deixado pela ditadura e o tempo pós-Revolução são realidades pensadas na obra de Fernando Matos Silva.
“Última das figuras seminais do Novo Cinema português”, Fernando Matos Silva, “ainda a quente, assina alguns dos filmes mais lúcidos sobre a situação política, económica e social do Portugal”, lê-se no texto sobre a programação de janeiro da Cinemateca.
Os programadores da retrospetiva destacam “títulos como o panfleto ‘Contra as multinacionais'” ou a “ficção ensaística” de “O meu nome é…”, a par de “filmes de pendor histórico” reenquadrados pelo novo regime democrático, como “Argozelo – à procura dos restos das comunidades judaicas”, em que se denunciam condições de vida e de trabalho de mineiros, e “Guerra do Mirandum”, “alegoria sobre a força do poder popular”.
Em “Acto dos feitos da Guiné”, de 1980, Fernando Matos Silva aborda “500 anos do passado colonial português feito de exploração dos recursos, de escravatura e de guerra”, escrevem os programadores.
Dedicado a Amílcar Cabral, líder da luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, o filme faz “um percurso crítico sobre a história portuguesa”, estabelecendo “um arrasador levantamento de materiais de arquivo do conflito armado entre o exército português e o PAIGC, incluindo imagens da declaração da independência”, que ocorreu em setembro de 1973, e da fase posterior.
Das centenas de programas produzidos para a RTP, sobretudo a partir da década de 1980, “quando o realizador deixou de conseguir financiamento para os seus projetos”, a Cinemateca seleciona alguns, a maioria de caráter documental.
É o caso dos episódios de Cinemagazine em que Kirk Douglas recorda a ‘lista negra’ de Hollywood, Jean-Luc Godard apresenta “Nouvelle vague”, António Reis, o realizador de “Jaime” e “Trás-os-Montes”, é homenageado, e cineastas como Bertrand Tavernier, Jonas Mekas, Otar Iosselianni, Aki Kaurismäki, Krzysztof Kieslowski, Manoel de Oliveira e Pedro Costa falam do centenário do cinema (1995).
O regresso ao ‘grande ecrã’ aconteceu na década de 1990, com “Ao Sul”. A Cinemateca considera-o “um belíssimo filme resumo”: “O filme que dá sentido e união à obra dispersa de Matos Silva, o filme que tudo convoca, tanto o que está para trás (o Novo Cinema, o cinema militante, os traumas da guerra colonial), como o que estaria para a frente (a entrada na CEE, a desertificação do Alentejo, a emigração das gerações mais qualificadas)”.
Para a Cinemateca, Fernando Matos Silva é “um dos cineastas essenciais para compreender o ‘cinema de Abril'” e “o registo do país, […] de forma panorâmica”.
A retrospetiva é acompanhada por um ciclo programado pelo cineasta – “Fernando Matos Silva: Carta Branca” -, que reúne realizadores como John Cassavetes, John Ford, Joseph Losey e François Truffaut, e os seus companheiros do Novo Cinema português, de Augusto Cabrita e Manuel Guimarães, a Ernesto de Sousa (“Dom Roberto”) e João Matos Silva, seu irmão.
Também serão exibidos “Os verdes anos”, de Paulo Rocha, e “Belarmino”, de Fernando Lopes, dois filmes em que Fernando Matos Silva se iniciou como assistente de realização.
A programação da Cinemateca Portuguesa em 2024 será dominada pelos 50 anos do 25 de Abril, com a memória do país e dos “valores do ‘big bang'” da queda da ditadura a dialogarem com a toda a história do cinema e as suas muitas expressões.
“As Armas e o Povo”, documentário rodado entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio de 1974 pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, abre a nova programação, a 03 de janeiro.
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