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Esta é a história de Bob Burgess, um homem alto e corpulento que vive na vila de Crosby, no Maine, e que, na época de que estamos a falar, tem sessenta e cinco anos. Bob é um indivíduo de coração grande, mas não tem noção disso; à semelhança de muitos de nós, não se conhece tão bem como julga, e nunca lhe passaria pela cabeça que houvesse algo na sua vida digno de registo. Mas há; em todos nós, há.

O outono chega cedo ao Maine.

Na segunda ou terceira semana de agosto, é possível que uma pessoa a passar de carro olhe para cima e veja, ao longe, que a copa de uma árvore já está vermelha. Em Crosby, no Maine, este ano aconteceu primeiro com o grande ácer junto da igreja e, no entanto, o mês de agosto ainda nem ia a meio. A árvore começou a mudar de cor do lado virado a leste. As pessoas que ali viviam há anos acharam peculiar, pois não se lembravam de que fosse aquela a primeira árvore a mudar de cor. No final de agosto, a árvore inteira ainda não estava vermelha, era uma coisa amarelado-alaranjada que se avistava ao dobrar a esquina para a rua principal. Seguiu-se setembro, os veraneantes regressaram às suas terras de origem e, muitas vezes, nas ruas de Crosby, só se via um punhado de pessoas. As folhas não pareciam vibrantes, em geral, e as pessoas especulavam que tal se devia à falta de chuva registada em agosto, e em setembro.

Uns anos antes, as pessoas que entrassem na vila de Crosby vindas das portagens da autoestrada passavam por um stand de automóveis, uma loja de dónutes e um restaurante barato, e também por grandes casas degradadas de madeira, com os alpendres cheios de coisas, como pneus de bicicleta, brinquedos de plástico, cabides e aparelhos de ar condicionado que não eram usados há anos, e, numa dessas casas, vivia um homem de meia-idade chamado Ricky Davis. Era um homem grande e embriagava-se com frequência, e muitas vezes o viam debruçado no parapeito do alpendre lateral com as calças caídas, a mostrar o rabo enorme, rego e tudo, ao pessoal que passava de carro, e quem nunca vira tal coisa virava a cabeça para observar com uma sensação de espanto. Mas, depois, a câmara municipal votara para que se instalasse a nova esquadra de polícia naquele lugar e, assim sendo, Ricky Davis e a casa em que morara tinham desaparecido; corria o boato de que ele vivia perto da antiga feira popular, num aloja- mento de habitação social de Hatfield.

Quando se chegava a meio da vila, via-se uma grande casa de tijolos ligeiramente recuada em relação à rua principal. Depois de se atrasar os relógios em novembro, fazendo com que escurecesse mais cedo, as poucas pessoas que passassem de carro e as que caminhassem no passeio do outro lado da rua conseguiam ver pelas janelas o interior da casa, amarelo dos candeeiros acesos, e Bob Burgess e a mulher, Margaret Estaver, eventualmente a cozinharem juntos na sua cozinha até fecharem as cortinas. As pessoas sabiam quem eles eram e, de uma maneira que não era totalmente consciente, havia uma sensação de segurança que advinha do facto de aquele casal viver ali mesmo, a meio da vila: Margaret era ministra da Igreja Unitária e tinha a sua congregação. Bob fora advogado em Nova Iorque durante muitos anos, quando era mais jovem, mas ninguém o recriminava por isso, provavelmente por- que crescera em Shirley Falls, quarenta e cinco minutos a norte dali; regressara ao Maine havia quase quinze anos, quando se casara com Margaret. Ainda aceitava um ou outro processo criminal em Shirley Falls e constava que tinha lá um escritório, embora já estivesse praticamente reformado. Além disso — as pessoas mencionavam-no à boca fechada —, Bob sofrera uma tragédia na infância: brincara com a manete das mudanças do carro dos pais e o automóvel, na entrada de casa dos Burgesses, deslizara pela encosta abaixo; as pessoas da vila sabiam que o carro — e, por conseguinte, Bob — matara o pai de Bob, que tinha ido ver se havia alguma coisa na caixa do correio da rua.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Olive Kitteridge, que tinha noventa anos e vivia na residência para a terceira idade chamada Apartamentos Ácer, conhecia essa história de Bob Burgess e sempre gostara dele, achava que havia nele uma tristeza discreta, provavelmente devida a essa desgraça precoce. Olive não apreciava muito Margaret, a mulher de Bob. Era por Margaret ser ministra da igreja e Olive não gostava de ministros da igreja, a não ser de Cookie, que a casara com Henry, o seu primeiro marido. Um homem maravilhoso, o reverendo Daniel Cooke. E um homem maravilhoso, o Henry Kitteridge.

A pandemia fora penosa para Olive Kitteridge — penosa para toda a gente, na verdade —, mas Olive suportara-a, dia após dia, no seu apartamentozinho naquela residência de idosos; porém, quando proibiram as pessoas de comer na sala de jantar e começaram a levar-lhes a comida, ela pensou que ia endoidecer de vez. No final desse primeiro ano, porém, com as vacinas e, mais tarde, o reforço, já pôde sair um pouco mais, alguém lhe dava boleia até à vila ou a levava à beira-mar. Mas o verdadeiro problema foi que, durante a pandemia, a melhor amiga de Olive, Isabelle Goodrow, que vivia duas portas abaixo, dera uma queda grave e — de todas as coisas horríveis que podiam ter acontecido — fora transferida para «o lado de lá da ponte», para a unidade de cuidados continuados. Agora, Olive ia visitar Isabelle todos os dias e lia-lhe o jornal de fio a pavio. Mas fora difícil, e ainda era.

Na ponta do promontório de Crosby, no alto de um penhasco com vista sobre as ondas (quase sempre) agitadas do oceano Atlântico, vivia uma mulher chamada Lucy Barton, que viera para a região com o ex-marido, William, dois anos antes, fugindo de Nova Iorque durante a pandemia, e tinham acabado por permanecer na vila. A situação suscitava sentimentos ambíguos: tratava-se, em parte, da reticência natural em relação aos nova-iorquinos, mas não só: os preços das casas em Crosby tinham disparado precisamente por causa de pessoas como Lucy Barton, que haviam decidido instalar-se na vila, e todas as pessoas do Maine que acalentavam a esperança de se mudarem para uma casa melhor descobriram que não dispunham de meios para tal. Lucy Barton crescera numa aldeia no Illinois e vivera na cidade de Nova Iorque durante toda a sua vida adulta; nunca passara sequer os verões no Maine, antes de ali chegar com o ex-marido. Além disso, Lucy Barton era romancista, o que desencadeava diferentes emoções nas pessoas: em geral, preferiam que ela regressasse a Nova Iorque, mas ninguém parecia ter nada de mal a dizer sobre ela; e, excetuando as suas caminhadas à beira-rio com o amigo, Bob Burgess, raramente a viam. Embora, por vezes, a avistassem a transpor a porta dos fundos que levava ao escritoriozinho que ela arrendava por cima da livraria.

Na rua principal, havia cartazes a dizer PRECISA-SE FUNCIONÁRIO ou ESTAMOS A CONTRATAR PESSOAL em quase todas as montras das lojas e, ao longo da costa, uns poucos restaurantes tiveram de fechar portas por falta de empregados. Que acontecera? Teorias não faltavam, mas o mais acertado era dizer que, na sua maioria, os habitantes de Crosby não sabiam. Só sabiam que o mundo já não era como dantes. E a maioria das pessoas de Crosby eram velhas, ou quase velhas, porque há anos que a população do Maine estava envelhecida. Umas pessoas diziam que o problema era esse, não havia jovens para fazerem aqueles trabalhos. Outras argumentavam que o desemprego não se confinava ao Maine e se registava no país inteiro; umas especulavam que o mal era a crise dos opiáceos, as pessoas não passavam nos testes de despistagem de drogas para poderem trabalhar. E outras ainda defendiam que a culpa era da geração mais jovem: por exemplo, o neto de Malcolm Moody, de dezasseis anos, viera passar três dias com o avô e não largara os jogos do iPhone. Que se podia fazer?

Nada.

E, então, em outubro, a folhagem explodiu, estilhaçando o mundo com um tom dourado. O Sol brilhava e esvoaçavam folhas amarelas por toda a parte; era lindo. Os dias estavam frios e à noite chovia, mas de manhã o Sol voltava a despontar e a natureza, em toda a sua glória, cintilava e aconchegava-se em redor da vila de Crosby. As nuvens pesadas no céu tapavam, de repente, o Sol e, com a mesma rapidez, afastavam-se e era como se se tivesse acendido uma luz intensa, o céu tornava-se novamente azul e luminoso, com as folhas amarelas e laranjas a caírem, lenta e silenciosamente, para o chão.

Um pensamento apoderara-se de Olive Kitteridge num desses dias de outubro e ela cogitou durante quase uma semana antes de telefonar a Bob Burgess. «Tenho uma história para contar à tal escritora, a Lucy Barton. Gostava que lhe pedisses para me visitar.»

Era uma história sobre a qual Olive refletia com uma frequência cada vez maior e pensava — como as pessoas pensam muitas vezes — que, se a contasse a um escritor, talvez um dia pudesse ser usada num livro. Olive não sabia se Lucy era uma escritora famosa ou nem por isso, mas decidiu que não tinha importância. Como a lista de espera para os livros de Lucy era sempre longa na biblioteca, Olive encomendara-os na livraria e leu-os, e algo a fez pensar que a tal Lucy talvez apreciasse — ou pudesse usar — a história que Olive tinha para contar.

Naquele dia de outono em concreto, as folhas amarelas da árvore que se via pela grande janela da porta traseira de Olive caíam, trémulas, para o chão, enquanto ela esperava que Lucy Barton aparecesse. Sentada na poltrona de orelhas, Olive viu dois chapins e um chapim-de-penacho- -cinzento no seu comedouro para pássaros. Inclinou-se para a frente e avistou um esquilo. Olive tamborilou os dedos na janela, com força, e o esquilo fugiu a correr.

— Aha! — exclamou Olive, recostando-se. Detestava esquilos. Comiam-lhe as flores e estavam sempre a incomodar os seus passarinhos.

Olive encontrou os óculos na mesinha ao seu lado e, pegando no grande telefone sem fios, também na mesa, carregou numas teclas.

— Isabelle — disse. — Não posso visitar-te hoje de manhã, vou receber uma pessoa. Conto-te tudo quando te for ver esta tarde. Até logo. — Olive desligou o telefone e olhou em redor do seu pequeno apartamento.

Tentou imaginar o espaço visto pelos olhos da escritora e concluiu que não estava mal. Era simples, sem estar atravancado com bibelôs hediondos como se via em casa de tantos velhos, mesas pejadas de fotografias de netos, só tolices. Olive tinha quatro netos, mas só pusera uma foto de um deles no quarto, uma fotografiazinha do Pequeno Henry, que já não era assim tão pequeno. E, na sala, no louceiro, tinha uma fotografia grande de Henry, o seu primeiro marido, e bastava. Olhou para ela e disse:

— Bom, Henry, veremos se ela se mostra recetiva.

Às dez menos cinco, bateram ao de leve na porta que dava para o corredor e Olive gritou:

— Entre!

E entrou uma mulher franzina, com ar passivo e apagado. Olive não suportava pessoas com ar passivo e apagado. — Cheguei demasiado cedo, desculpe — disse a mulher. — Chego sempre demasiado cedo, parece mais forte
do que eu.

— Não tem mal. Detesto gente que se atrasa. Sente-se — respondeu Olive, e apontou com a cabeça para o sofazinho encostado à parede em frente. Lucy Barton avançou e sentou-se. Vestia um sobretudo de tecido escocês azul e preto até aos joelhos e umas calças de ganga que Olive achou demasiado justas para uma mulher da idade dela; Lucy tinha sessenta e seis anos, Olive verificara.

Livro: "Conta-me tudo"

Autor: Elizabeth Strout

Editora: Alfaguara

Data de Lançamento: 3 de fevereiro de 2025

Preço: € 19,95

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Olive sabia que o sofá era duro, mas sem perceber muito bem porquê — pela maneira como ela se sentou —, era como se a mulher o fizesse parecer ainda mais duro. E usava umas coisas estranhíssimas nos pés, umas botas com uns grandes fechos compridos e prateados na frente, da biqueira ao cano. Olive via-lhe os tornozelos magros e as calças justas enfiadas dentro delas.

— Dispa o casaco — disse Olive.

— Não, obrigada. Sou friorenta. Olive revirou os olhos.

— Não me parece que esteja frio aqui.

Olive estava desiludida com a criatura. Fez-se silêncio no quarto e Olive deixou-o instalar-se. Por fim, Lucy Barton disse:

— Bom, tenho muito gosto em conhecê-la.

— Sim-sim — respondeu Olive, balouçando um pé para a frente e para trás. Havia qualquer coisa estranha naquela mulher: não usava óculos, e os olhos não eram pequenos, mas tinha um ar ligeiramente aturdido. — Que é isso que traz nos pés? — perguntou Olive.

A mulher baixou os olhos e empinou as biqueiras do calçado.

— Ah, são umas botas. Fomos a Rockland no verão passado e vi-as numa loja.

Rockland. Dinheiro. Claro, pensou Olive.

— Não nevou — disse —, não entendo para que é que precisa de botas.

A mulher fechou os olhos por um longo instante e, quando os abriu, não fitou Olive.

— Ouvi dizer que veio para ficar — comentou Olive.

— Quem é que lhe disse isso? — perguntou a mulher, como se tivesse mesmo curiosidade em saber a resposta, e continuou com ar ligeiramente perplexo.

— O Bob Burgess.

E, de repente, o rosto da mulher alterou-se; por um instante, suavizou-se, descontraiu-se.

— Ah, está certo — disse.

Olive inspirou fundo.

— E então, Lucy — disse —, que tal Crosby, está a gostar da nossa vila?

— É uma mudança e peras — respondeu Lucy Barton.

— Bom, não é Nova Iorque, se é isso que quer dizer. Lucy olhou em redor do quarto.

— Sim, acho que é isso que quero dizer.

Olive continuou a observá-la. Por instantes, só se ouviam o tiquetaque do relógio de pé e o leve zumbido do frigorífico na kitchenette.

— Disse ao Bob que tinha uma história para me contar? — perguntou Lucy.

Despiu o sobretudo, deixando-o ficar sobre os ombros, e Olive viu uma camisola preta de gola alta. Magricela. A criatura era magricela. Mas os olhos observavam Olive, agora, com interesse.

Olive levou o braço à pilha de livros na prateleira de baixo da mesinha ao seu lado.

— Li os seus livros todos.

Lucy Barton pareceu não saber o que responder, embora baixasse fugazmente os olhos para os livros na prateleira.

— Quanto a mim — disse Olive —, as suas memórias roçam um bocadinho a autocomiseração. Não é a única pessoa que nasceu na miséria.

Uma vez mais, Lucy Barton pareceu não ter resposta.

— E que sentiu o William, o seu ex-marido, ao ver que tinha escrito sobre ele? Tenho curiosidade em saber.

Lucy encolheu ligeiramente os ombros.

— Não se importa. Compreende que sou escritora. — Entendo. Sim-sim. E agora — acrescentou Olive — voltou para ele. Estão novamente juntos. Mas não são casados.

— É isso mesmo.

— Em Crosby, no Maine.

— Exato.

*

Fez-se silêncio, uma vez mais.

— Não se parece nada com a fotografia que vem nos seus livros — comentou Olive.

— Eu sei — respondeu Lucy simplesmente, com um encolher de ombros.

— Porquê? — perguntou Olive.

— Porque foi tirada por um fotógrafo profissional. E o meu cabelo já não é louro. Essa foto foi tirada há anos. — Lucy passou os dedos pelo cabelo, que lhe dava pelo queixo e era castanho-claro.

— Bom, estava demasiado louro na fotografia — disse Olive.

Um súbito feixe de luz entrou pela janela e incidiu no soalho de madeira. O relógio de pé, ao canto, prosseguiu o seu tiquetaque.

Lucy levou a mão ao sobretudo e tirou-o das costas, pousando-o ao seu lado no sofá.

— É o meu marido — disse Olive, apontando para a grande fotografia no louceiro. — O Henry, o meu primeiro marido. Um homem maravilhoso.

— Parece boa pessoa — comentou Lucy. — Conte-me a história. O Bob disse que tinha uma história que me queria contar. — Falou em tom amável. — Gostava de a ouvir, a sério.

— O Bob Burgess é um homem bom. Sempre gostei dele.

O rosto de Lucy corou, pelo menos foi o que pareceu aos olhos de Olive.

— O Bob é o melhor amigo que tenho aqui na vila. Talvez até seja o meu melhor amigo de sempre. — Baixou o olhar para o chão quando falou, mas, depois, levantou a cabeça e fitou Olive. — Faça-me o favor... conte-me a história.

Algo dentro de Olive se descontraiu.

— Está bem — respondeu —, mas agora já não sei se vale a pena contá-la.

— Conte-me na mesma — retorquiu Lucy.

A história era a seguinte: a mãe de Olive era filha de um agricultor de uma vilazinha no Maine chamada West Annett, a cerca de uma hora de Crosby. Ah, e já agora, Olive não gostava da mãe. Mas provavelmente isso era irrelevante.

— Porque é que não gostava dela? — perguntou Lucy, e Olive pensou um instante e disse:

— Acho que por ela não gostar de mim.

Lucy fez que sim com a cabeça.

— Eu tinha cinco anos quando a minha irmã nasceu e guardo uma recordação... vá-se lá saber se é verdadeira... de ter perguntado à minha mãe porque é que não tinha irmãos e irmãs, e de ela ter olhado para mim e dito: «Depois de ti? Não nos atrevemos a ter mais um filho depois de ti.» Mas acabaram por ter.

— Porque é que ela havia de dizer uma coisa dessas? Que tinha a Olive assim de tão errado em menina? — perguntou Lucy.

— Bom. Para começar, eu não gostava de mimos e, ai, a mãe adorava a Isa, que se abraçava toda a ela. A mãe adorava mimos e, pelos vistos, eu não.

— A Isa é a sua irmã? Excelente nome. Muito bem, continue. — Lucy depenicou qualquer coisa das calças de ganga.

Portanto, a mãe de Olive...

— Como é que ela se chamava? — interrompeu Lucy, olhando para Olive, e Olive respondeu que a mãe se chamava Sara. — Com h no fim? — perguntou Lucy, e Olive abanou a cabeça. Sem h.

Sara tinha um irmão e tratou-o a vida inteira com um amor extremado, apesar de ser completamente louco. — Acho que nunca lhe desceram os testículos — comentou Olive. — Nunca chegou a nascer-lhe barba e tinha uma voz aguda, era uma pessoa muito peculiar, ah, e casou-se com uma mulher chamada Ardele, que também era maluca, e nunca tiveram filhos, mas, seja como for, a minha mãe tinha uma adoração pelo irmão, ela até morreu em casa da Ardele.

Sara foi criada numa pequena quinta na vila de West Annett. Era muito baixa e alegre... e bonita.

— Eu nunca fui bonita — acrescentou Olive.

Lucy ficou imóvel a observá-la, e Olive teve de desviar os olhos para a janela.

— Continue — sussurrou Lucy.

Olive baixou os olhos para a barriga, que estava espetada como uma bola de basquete, puxou a ponta do casaco para a tapar e continuou.

— Como a minha mãe queria ser professora, foi estudar para o Magistério Gorham. Naquele tempo, chamava-se magistério às escolas que formavam professores. Estamos a falar da segunda metade da década de 1920 — acrescentou Olive.

No final do primeiro ano, a mãe de Olive arranjara emprego a servir às mesas numa estância costeira, mais a sul; vivia na estância enquanto lá trabalhava. E apaixonara-se pelo filho da dona da estância.