Nota introdutória

O livro que vão ler é uma fábula. Nenhum dos factos nele contados aconteceram realmente. Tudo é imaginação do autor. O livro passa-se em Angola por acaso mas podia passar-se no Zaire, no Congo, na Serra Leoa, no Uganda, na Bósnia, na Somália, na Irlanda, na Sérvia, na Libéria, no Kosovo ou em qualquer outra parte do mundo onde a realidade é tão monótona e previsível que é preciso inventar fábulas. Este livro não é nem pretende ser uma alegoria e muito menos uma metáfora. É antes um sonho perdido ou um pesadelo fútil ou uma loucura portátil.

I

Zico acorda sábado à tarde e começara a décima guerra civil angolana

Zico acordou na tarde de sábado e Luanda estava alucinada. Lembrava-se que estava a dormir de barriga para baixo nu sobre o lençol cor-de-rosa. Os cartazes da parede do quarto vegetavam com um sorriso nos lábios. Lá estava ela, Aretha Franklin, uma pomba sagrada de asas esculturais. E os cabelos em andaime de Bob Marley crescendo sobre a caliça despenteada em buracos redondos. O zumbido da ventoinha nos ouvidos inertes. De repente acordados. O momento zero do delírio. Zico aproximou-se, cambaleante, da estante dos livros. Apesar da sua vida turbulenta desde os tempos em que começara a militar no movimento associativo na Universidade de Luanda e a contestar o regime colonial, até às perseguições pelas várias polícias políticas, a prisão e o regresso à actividade profissional, apesar das muitas mudanças, nunca deixara de cuidar dos seus livros. Lia tudo e, em especial, lia tudo o que o ajudasse a compreender o seu país. Tinha perdido muitas coisas na sua vida atribulada mas não os seus livros e, para ele, era o que contava. Nesse dia quando foi à estante e tirou um livro ao acaso não deixou de ficar perplexo com a escolha. O livro chamava-se «Angola o Sono da Razão.» Era um livro velho, roído pelo tempo, coberto de pó, tinha folhas rasgadas, frases que mal se liam e pareciam sofrer da doença do tempo. Zico começou a ler o que podia ser lido...

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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... a décima bomba explodiu na cidade do Huambo. O acesso ao aeroporto está cortado. No bairro de Fátima, Sekulo Tchingongo foge, foge mas não sabe para onde e de repente pára na rua e grita: “As pessoas fogem em todas as direcções, é melhor ficar quieto”. Ninguém o ouviu. A sabedoria dos mais velhos já nada podia contra o barulho das bombas e o pânico das almas. Algumas pessoas vêm dos campos mais próximos, do Chinguar, da Cela, de Vila Nova, para se refugiarem na cidade. Outras pessoas abandonam a cidade, fogem para as matas. No meio dos trajectos cruzados que mudam ciclicamente a residência das pessoas ao ritmo das guerras, Sekulo Tchingongo ficou quieto e ficou bem. As bombas conviviam com a tarde de sábado num país impaciente, atravessado por um rumor de água, cascatas e morteiros...

Abriram a porta e chamaram: Zico! E Zico foi. As rodas do Autobianchi A‐112 beliscavam com raiva o pavimento que não ouve os últimos noticiários da rádio. Foi então que ele a viu. E já não tinha dúvidas: É sábado! Ele sempre pensara: ao sábado ela está mais calma, mais sensual, mais azul. Sinuosa e ondeante no seu apelo inelutável aos ins- tintos que nadam sob a pele. Só de a ver assim a tarde latejava e os olhos estavam imersos em seios azuis. A baía era a alma e a carne de Luanda, uma menina adulta na sua forma de interpretar as lendas.

Quando Zico a sentia sem tocá-la, como nesses momentos, a afinidade era mais patente. E pensava com insistência que há uma ponte de comunicação afectiva entre o homem e as coisas. Entre o ser e as águas. Entre a vida e as marés. E por vezes, essas pontes invisíveis que unem universos tão diferentes, tornam-se tão reais e transitáveis que são as pontes das pontes, preferíveis a todas as outras. Talvez porque aí o homem transita aberto por dentro, disponível para todos os encontros. Talvez porque aí o homem se sinta primitivo e não represente o drama da sua desintegração.

Zico pensava em tudo isto e depois aborreceu-se consigo próprio. Pensava em assuntos metafísicos para esconder os problemas físicos. O país respirava mais uma guerra e Zico escondia-se atrás do biombo da baía e da conversa das pontes. E depois havia o livro...

... a décima guerra civil angolana tinha começado e anos mais tarde ela havia de ser conhecida como a décima, isto é, aquela que se tinha seguido à nona e tinha antecedido a undécima, portanto era isso mesmo, a décima. Nas escolas, muitos anos mais tarde, os miúdos ouviam a pergunta:

– E depois da nona?

– Foi a décima.

– E antes da undécima?

– Foi a décima.

Livro: "Desconseguiram Angola"

Autor: António Costa Silva

Editora: Guerra e Paz

Data de Lançamento: 28 de janeiro de 2025

Preço: € 17,00

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Os habitantes do Huambo estão confinados aos refúgios subterrâneos devido aos bombardeamentos. Os despachos dos correspondentes têm também referido o alargamento do cordão defensivo da cidade. O Cuito, capital do Bié, vive um período de grande terror. As forças fiéis terão conseguido desalojar as peças de artilharia de longo alcance montadas na Ceilunga, a quinze quilómetros a nordeste do Cuito. O aeroporto continua fechado. A discussão é entre os canhões de longo alcance e os de 106 milímetros adaptados a jipe. As forças infiéis apregoam a fla- gelação da vila do Cunje e da cidade do Cuito. A estratégia é concentrar as forças fiéis no planalto central e depois conquistar as áreas diamantíferas a norte de Malanje designadamente o vale do rio Cuango...

Zico lê, ouve, pensa e diz alto: «Esta guerra é o sono da razão». O carro desliza suavemente pela cidade, da Marginal sobe até à Fortaleza, passa pela cidade Alta, vai até à Maianga, sobe a Brito Godins, vai até ao largo do Quinaxixe e depois perde-se no labirinto. Ao mesmo tempo soletra para si próprio: «A guerra em Angola é um alfabeto da barbárie, um festival de infâmias entremeado de exaltações e silêncios, intolerâncias e gritos, massacres e mandados de captura». Nos ouvidos de Zico no interior do Autobianchi A‐112 algures perdido na cidade ecoam as palavras do Bispo do Huambo, que podiam ser de Sekulo Tchingongo ou mesmo de kota Venâncio: «As armas hão-de perder Angola».

O carro perdido no país-labirinto, urdido por homens que encontraram a demência no processo de se conhecerem cordialmente, passou à frente do quartel do Grafanil. Zico vê os soldados benzerem-se. Riem-se e benzem-se. Têm grandes garrafas de cerveja na mão. Atiram cerveja uns aos outros. Gritam e riem. Benzem-se e abençoam-se. Zico comenta pausadamente para Zebidal, que não diz nada, apenas conduz e não sabe para onde:

– Angola foi abandonada pelos deuses. O único deus que sobrou foi a cerveja.

A cerveja-rainha abençoa a terra e os homens por entre a festa da desgraça.

Na tarde de sábado, quando Zico e Zebidal passeiam sem rumo pela cidade-capital de um país em ruínas e Sekulo Tchingongo permanece quieto no bairro de Fátima na cidade do Huambo, porque até fugir perdeu sentido, alguém exclamou que Angola é um país disputado pela morte, pela febre das balas e pela inquietação de um povo fugitivo.