Pintado em 1964, o quadro faz parte de um conjunto de obras que se encontram desaparecidas da coleção pessoal de arte de João Rendeiro, o ex-banqueiro encontrado morto a 13 de maio, numa prisão da África do Sul, e que tem a mulher declarada fiel depositária pelas autoridades portuguesas.

Na segunda-feira, o realizador Nick Willing, filho de Paula Rego, tinha revelado à agência Lusa ter enviado um pedido para classificação da obra ao ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, por se tratar de uma peça “muito importante” para a pintora radicada no Reino Unido.

O pedido formal e fundamentado de classificação tinha já sido enviado à DGPC em outubro de 2021, por iniciativa da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, com o apoio da coordenadora da Casa das Histórias Paula Rego, a historiadora Catarina Alfaro.

Em resposta às questões enviadas pela Lusa por ‘e-mail’, a DGPC confirmou que deram entrada, enviados por Raquel Henriques da Silva em outubro de 2021, pedidos de abertura de procedimento de classificação de duas obras propriedade de João Rendeiro: "Cães de Barcelona", de Paula Rego, e "Cabeça Heráldica", de Amadeu de Sousa-Cardoso.

“Apesar do reconhecimento do inegável valor patrimonial das obras em causa, passíveis de classificação de âmbito nacional, e atendendo ao desconhecimento do paradeiro das obras, a DGPC contactou a Polícia Judiciária questionando se as obras em referência integravam a denominada ´Coleção João Rendeiro´ ou se faziam parte da lista das obras arrestadas ou a arrestar, no âmbito do processo judicial em curso”, indicou fonte oficial da DGPC.

A DGPC disse ter sido informada de que “as obras em causa não foram identificadas na visita efetuada à residência de João Rendeiro, bem como se desconhece se estas se encontram na posse/propriedade de João Rendeiro”.

“Do ponto de vista jurídico, o desconhecimento do paradeiro das obras impede que seja dado seguimento ao pedido de abertura dos supracitados procedimentos de classificação, até que sejam obtidas informações que conduzam à realização das formalidades legais a que obedece o procedimento, concretamente a notificação e publicitação da decisão de abertura do procedimento”, sustentou a DGPC.

A direção-geral recordou, no 'e-mail' enviado à Lusa, o decreto-lei 148/2015, que refere que “a administração patrimonial competente notifica o proprietário, o possuidor ou o titular de outro direito real sobre o bem móvel ou conjunto de bens móveis".

A DGPC disse que Raquel Henriques da Silva foi “informada, em dezembro de 2021 e maio último, em sede da Secção de Museus, Conservação e Restauro e Património Imaterial (SMUCRI) do Conselho Nacional de Cultura, sobre o ponto de situação destes procedimentos”.

Na segunda-feira, Nick Willing disse que tinha enviado um e-mail ao ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva ma última semana, pedindo para interceder nesta situação.

Fonte oficial do Ministério da Cultura contactada pela Lusa indicou que o ‘e-mail’ enviado por Nick Willing “só chegou na quarta-feira”.

Nick Willing disse à Lusa estar convicto de que “com a classificação, o quadro será mais difícil de vender ou de sair do país”.

“Esta obra é muito importante para a Paula [Rego] e é preciso fazer mais para tentar encontrá-la”, apelou o realizador, autor do documentário “Histórias e Segredos” (2017) sobre a vida da pintora de 87 anos, radicada no Reino Unido e uma das mais importantes artistas portuguesas.

“Os Cães de Barcelona”, com dimensões de 160 centímetros por 185 centímetros, teve como proprietário, em 1988, Francisco Pereira Coutinho, então diretor da Galeria São Mamede, mas passou a estar identificada como pertencente à Coleção João Rendeiro quando foi exposta numa grande retrospetiva da obra da pintora no Museu Rainha Sofia, em Madrid, em 2007, e no National Museum of Women in Arts em Washington, em 2008, segundo a proposta de classificação a que a Lusa teve acesso.

A obra de Paula Rego “tem excecional interesse documental, histórico e social, de acordo com a previsão legal”, fundamentou a historiadora no pedido “urgente” à DGPC, sustentando-o ainda como “testemunho notável de vivências ou factos históricos”, investigação histórica e científica, bem como a memória coletiva.

Apesar de a cena descrita no quadro ser inspirada num acontecimento ocorrido em Espanha, durante o regime político de Franco, Raquel Henriques da Silva sustenta que a obra, do início do percurso artístico de Paula Rego, “remete para a situação política em Portugal”.

Na altura, a artista teve conhecimento por notícias publicadas nos jornais, no Reino Unido, da morte de centenas de pessoas devido ao facto de as autoridades de Barcelona, de modo a erradicarem cães vadios, terem espalhado carne envenenada nas ruas, numa altura em que a fome era uma realidade generalizada.

“Os Cães de Barcelona” foi exibido pela primeira vez em 1964, numa exposição no London Group, uma associação de artistas que apresentava na altura obras de figuras como David Hockney, Frank Auerbach e Michael Andrews, e exibida em Portugal pela primeira vez, no ano seguinte, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.

“O Estado deve classificar estas obras porque são fundamentais na História da arte portuguesa”, defendeu a professora jubilada, membro da SMUCRI do Conselho Nacional de Cultura.

Na opinião de Raquel Henriques da Silva, tanto a pintura de Paula Rego como a de Amadeu de Souza-Cardoso “devem estar escondidas algures” e “não deverão ter saído do país”.

“Os dois quadros são mais importantes e valiosos dentro de Portugal”, afirmou.

Em novembro de 2010, cerca de 120 obras de arte da coleção João Rendeiro foram arrestadas e a mulher do ex-banqueiro acusado de vários crimes foi definida pelas autoridades como a sua fiel depositária.

“Agora com a morte de João Rendeiro decidimos insistir com o pedido de classificação desta pintura de Paula Rego”, reiterou na segunda-feira à Lusa Catarina Alfaro, historiadora de arte e especialista na obra da pintora, que também se associou à defesa da classificação como bem de interesse nacional.

Catarina Alfaro recordou que Paula Rego “chegou a tentar comprar a obra” a João Rendeiro, mas o ex-banqueiro “recusou-se a vendê-la”.