“Pegar num tratado de sapiência, fazer dele um objeto cénico e lê-lo como se fosse uma partitura musical”, foi como o encenador Fernando Mora Ramos definiu o espetáculo que hoje se apresenta no O'culto da Ajuda, em Lisboa, onde poderá ser visto até dia 03 de dezembro, depois da estreia, nas Caldas da Rainha.
Para o compositor, que há muito que procurava fomentar "um estado de 'integração' entre o semântico e o fonético - música enquanto texto e texto enquanto música", a obra de Alberto Pimenta era a ideal.
"Abordar este texto prodigioso estava faz tempo no horizonte, não só por aquilo que enuncia e pela sua intemporalidade – e como tal atualidade, mas também porque nele se projecta uma cumplicidade crescente de ideais e de pesquisa com o Fernando Mora Ramos", conduzindo à parceria criativa entre o Teatro da Rainha e a estrutura Miso Music, de Azeguime, como escreve o compositor na página de apresentação da obra.
O texto do “Discurso sobre o filho-da-puta” foi “escrito para ser dito”, disse Mora Ramos à agência Lusa, em junho último, antes da sua estreia pelo Teatro da Rainha, que dirige.
Por isso, como sublinha Azeguime, o texto oferece, "do ponto de vista musical, uma quase partitura, pelas características com propriedades sonoras da escrita poética de Alberto Pimenta, e contém, desde logo, os elementos propícios a uma repartição por várias vozes, de um personagem simultaneamente uno e múltiplo".
A versão cénica "acolhe assim um quarteto de atores, como se um quarteto de músicos se tratasse, 'quarteto de cordas vocais' pois, para dar voz a um discurso coral no qual a palavra se faz música e se organiza em timbres, ritmos, harmonias, melodias; ora em uníssono ou em homofonia, em heterofonia ou em polifonia ou em contraponto".
Assim, mais do que ser música acrescentada ao texto poético de Alberto Pimenta, "o aqui está em causa é sobretudo o reconhecimento e o desvendamento da música que o texto já contém (...) e assumindo a palavra na sua vocalidade plena, a voz falada nas suas extraordinárias possibilidades de emissão múltipla, sonoras e expressivas", conclui o compositor.
Em junho, quando da estreia da obra nas Caldas da Rainha, o encenador destacara já como as qualidades rítmicas da escrita de Pimenta se aliavam às composições de Miguel Azguime, durante cerca de uma hora e 45 minutos, para prenderem o espectador a um discurso que “vai do altar ao cabaré”, numa espécie de “retrato dos portugueses, escrito em 1977, mas ainda atual no que respeita aos males endémicos que [os] caracterizam”.
Sendo o protagonista um “comemorativista, um amante das datas que celebram as mortes, um militante da acumulação do regresso do passado”, a peça conta a quatro vozes e vários tons, como se desenvolve “o vírus da 'filha-da-putice'” e como, ao longo dos tempos, contribuiu para subirem na vida figuras peritas em "sacanear o parceiro, na traição dos ideais que se diziam defender, na ortodoxia burra, no complô, na manobra obscura, na capacidade de insinuação, no jeito particular para oportunamente mentir, no faz que faz e o faz que não faz, para tudo ficar na mesma e parecer o contrário”.
Trata-se de um sermão burlesco contemporâneo, como o descreve o encenador Fernando Mora Ramos: "Um grito gramaticalmente impecável, rigoroso de sentidos e forma, pela liberdade livre e contra o preconceito e o amiguismo hipócrita e nepótico que continua a constituir os modos da sociabilidade [portuguesa], muito atravessados de ambições de poder e poderes de facto”.
As técnicas “para subir na vidinha”, de que fala o texto de Alberto Pimenta, são representadas pelo Quarteto de Cordas Vocais composto por Cibele Maçãs, Fábio Costa, Marta Taveira e Nuno Machado.
Alberto Pimenta, que foi professor da Universidade Nova de Lisboa e leitor de Português em Heidelberg, é escritor, poeta e ensaísta, distinguindo-se na literatura contemporânea pelo caráter crítico e irreverente da sua obra, que abrange poesia, ficção, teatro, linguística, crítica, ensaio, 'happenings', 'performances', colagens.
O compositor Miguel Azeguime, fundador do projeto Miso Music, que visa fomentar e divulgar a criação musical contemporânea portuguesa, viu os seus 60 anos assinalados em outubro, pelo Teatro São Luiz, com concertos dedicados à sua obra.
O “Discurso sobre o Filho-da-Puta” foi escrito em 1977, ano em que o autor se celebrizou com uma performance no Jardim Zoológico de Lisboa, trancando-se numa jaula ao lado de outra onde estavam dois macacos, com uma tabuleta indicando "Homo sapiens".
O livro foi o mais publicado e traduzido de Alberto Pimenta.
As técnicas para “subir na vidinha” de que Alberto Pimenta fala na obra terão mais duas récitas naquele espaço à Ajuda, na sexta-feira, dia 27, e no dia 03 de dezembro, quinta-feira, sempre às 19:00.
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