O ano era o de 1993. Um eterno jovem guitarrista, de seu nome Zé Pedro, acalentava um sonho: vir a tocar, um dia, com Jorge Palma, músico que lhe merecia a maior das admirações. A história é narrada pelo próprio, entretanto lamentavelmente falecido, em “Na Palma da Mão”, a biografia oficial de Jorge Palma. “Formámos o Palma's Gang numa noite no Johnny Guitar, em que estavam também o Kalú e o Alex. No meio dos copos, falámos com o Palma sobre a hipótese de tocar as músicas dele”. A cerveja é, desde tempos imemoriais, gasolina para as mais loucas – e as mais belas – das ideias, e naquela noite não seria exceção. Uma semana depois, o saudoso bar lisboeta acolheria a primeira encarnação do Palma's Gang, entidade que funcionava menos como banda e mais como um grupo de amigos unidos pelo respeito mútuo para com o cantautor nascido a 4 de junho de 1950, numa Lisboa ainda toldada pelo Estado Novo.

De idade são 72, de carreira são 50. Palma, Jorge Palma, encerra este fim de semana uma série de concertos destinados a celebrar esse aniversário redondo. Depois desta noite de sábado, o Palma's Gang voltará ao Capitólio este domingo, já depois de os Jardins do Palácio Baldaya e o Teatro Tivoli terem sido palco para um regresso a discos como “Só”, “Com Uma Viagem Na Palma Da Mão”, “'Té Já”, “Bairro do Amor” ou “Voo Nocturno”. Mencionam-se estes, poder-se-ia mencionar outros tantos. A carreira de Jorge Palma está recheada de lançamentos marcantes e, melhor do que isso, de canções: o que importa não é o número de rodelas de vinil ou acrílico que se vendem, mas sim a quantidade de pessoas que as escutam e memorizam e cantam quando a emoção a isso obriga.

Escreve-se “regresso”, mas a dada altura o Capitólio pareceu transcender o tempo. Ali não estava o homem que partiu pela Europa fora, guitarra na mão, alma boémia e inquisidora à procura de descobrir o significado da vida, como outros tantos antes dele (e, se Kerouac fosse tuga, seria Jorge Palma). Estava o homem que parte, no tempo presente, e que vai narrando a sua aventura à medida que esta se vai desenrolando; não estava um mero exercício nostálgico ou uma lembrança que se guarda num baú para se recuperar, de lágrimas nos olhos, quando a idade já não perdoar.

Olhamos em volta e vemos cocurutos grisalhos a ceder ao headbanging, casaco atado à cintura, que de telemóvel na mão nos dão encontrões para captar imagens ou vídeos do concerto, quais putos com todo um currículo pela frente e alienados da certeza desse mesmo currículo. Vemos t-shirts do Johnny Guitar e ouvimos gargantas afinadíssimas assim que o Palma's Gang arranca com 'Portugal, Portugal', a canção que já tinha sido a primeira do alinhamento em 1993. Ouvimos um solo de guitarra tão roqueiro como os das grandes estrelas de outrora, cortesia de Flak, e temos a certeza de que o prefixo re- não pode entrar nesta equação. O Palma's Gang não foi uma brincadeira de há quase 30 anos, é um agora, e os agoras não se perdem.

No fundo, é como o rock. No episódio a si dedicado do programa “Vejam Bem”, da RTP, Palma afirma ter seguido em frente com a ideia do Palma's Gang depois de ter entrado “numa de sex, drugs & rock n' roll”. Não que antes disso não tenha existido momentos extraordinários – “Só” é quiçá o maior deles –, mas talvez em 1993 as suas canções precisassem de uma nova injeção de adrenalina, daquelas que só uma guitarra elétrica consegue oferecer. «A verdade é que muito daquele pessoal que assistiu à gravação, e depois aqueles que ouviram o disco, nunca teriam conhecido as minhas músicas nem me teriam conhecido a mim», diz o músico em “Na Palma Da Mão”. Em plena era grunge, quantos não terão ficado fascinados com aquilo que um português, já então com carreira vasta, era capaz de fazer com seis cordas?

Uma delas acabou partida, esta noite no Capitólio, o que também é bastante rock n' roll. As outras brilharam ao longo de vinte canções, mais seis que no álbum original do Palma's Gang. Antes de 'Poema Flipão', somos brindados com um duelo entre guitarras, Flak e Palma cruzando olhares e mestrias; uma demão de ruído abre espaço a 'O Velho no Jardim', que depois desse supracitado problema com a corda emergiu em todo o seu esplendor. 'Eternamente Tu', um dos temas do celebrado “Bairro do Amor” (1989), leva-nos até a cometer o sacrilégio da comparação: o dedilhar inicial, associado ao groove de um baixo pós-punk, lembra-nos 'Tart Tart', dos igualmente mágicos Happy Mondays.

Pelo meio, o gangue saiu de palco e deixou Palma sozinho, munido apenas da sua guitarra acústica, como tantas vezes o fez na Rua das Portas de Santo Antão noutras décadas e sob ameaça constante de uma autoridade policial menos dada à música, para cantar 'Obrigação' e uma muito bem recebida 'Jeremias', esta última com um ligeiro auxílio de Kalú – “o homem não sabe estar parado”, brincou Jorge Palma). Voltou com 'Deixa-me Rir', que fez subir ainda mais o calor num Capitólio estranhamente quente para uma noite de outono, qual granada de mão a rebentar em alegria pura. O registo mais acelerado de 'Podem Falar' mereceu, da parte de outros convivas (o sacrilégio só se comete uma vez), menções aos Sex Pistols (a energia punk, diga-se, era quase a mesma), e um “obrigado por estarem aqui” transformou-se numa apresentação da equipa de produção que o acompanha.

'Homem Invisível' fechou o concerto propriamente dito, que ao contrário do de 1993 mereceu duplo encore. No primeiro, 'Eu Sei Lá' acabou em toada krautrock, Kalú marcando o ritmo enquanto a guitarra de Flak ia encontrando caminhos que não julgávamos sequer existirem; no segundo, duas almas desceram momentaneamente do céu à terra. Lou Reed, com uma versão de 'Walk On The Wild Side', e Zé Pedro, a quem foi dedicada – através da frase nesta guitarra está o Zé Pedro – 'Picado Pelas Abelhas'. 29 anos depois, o gangue deu um novo ar de sua graça. 50 anos depois, Jorge Palma continua em grande forma. Terminadas as celebrações, não falemos do futuro, deixemos apenas a questão: e agora?