Amnésica e castrada. Sem memória nem ovários. Foi assim que acordei numa cama de hospital desta cidade há sete anos, assistida por uma enfermeira com um sorriso amável que me chamou por um nome que eu não sabia se era o meu: Laila. Não me soou a nada nessa altura. Apenas uma palavra bonita, mas sem ressonância. Depois passei a responder com espontaneidade ao chamamento, e a reconhecer-me numa mulher com o nome de Laila. É árduo o caminho, não de me reconstituir, tarefa que sei ser impossível, mas pelo menos de construir o esqueleto de uma nova identidade a partir das reminiscências que vou tendo de um passado que me foi cirurgicamente suprimido.

O momento em que acordei nessa cama de hospital foi o momento zero de uma nova biografia. Como qualquer vítima de amnésia em estado de lucidez, eu sentia nas profundezas da minha consciência o significado do que era ser-se humano. Ainda que eu não soubesse quem, sabia que tinha sido e continuava a ser alguém, que tinha tido um passado e que o futuro se abria à minha frente. Isto é o mais importante: a última coisa que devemos deixar que nos roubem é o sentido de que somos. No limite derradeiro, não importa quem ou o quê. Eles tiraram-nos a memória e a identidade, mas não a consciência. Conscientes de nós e das fronteiras entre nós e o mundo, somos e seremos quem imaginarmos ser.

Tinha a linguagem intacta. Perguntava à enfermeira todas aquelas perguntas básicas que encapsulam o reduto de uma humanidade ainda não perdida: «quem sou eu?», «onde estou?», «de onde vim?», «para onde vou?» Ela não me dava quaisquer respostas conclusivas, apenas sorria e dizia coisas aconchegantes, como se me estivesse a preparar para uma nova cirurgia. As outras camas no quarto estavam vazias. Uma janela fazia entrar uma luz quente e calmante que se diria fazer parte de um dispositivo de iluminação pós-operatória para sarar as feridas. Quando, ao segundo dia, me levantei, fui a cambalear até à janela, e só quando espreitei lá para fora soube que estava a uma certa altura do chão, talvez a uns cinco andares desde o solo. Em baixo estendia-se o jardim das traseiras do hospital, onde se dispunham várias filas paralelas de canteiros de flores coloridas. Havia uma grande harmonia geométrica naquela paisagem flórea. Para lá do jardim, viam-se, também elas dispostas em fiadas paralelas, moradias grandes, cada uma pintada de várias cores fortes, como se quisessem competir com a coloração das flores de diferentes espécies que cresciam nos jardins que as circundavam. Podia dizer-se que havia um contraste entre a ordem geométrica em que as casas e os canteiros estavam dispostos, e a desordem das cores, quer das casas, quer das flores. Eu não sabia que cidade multicolor era aquela, e a enfermeira de sorriso amável, que foi a minha única companhia durante os quatro dias da minha conva- lescença no hospital, nunca respondeu à minha pergunta insistente – «onde estou?» Penso, aliás, que essa pergunta foi aquela que eu coloquei mais vezes. Talvez por me parecer ser a mais fácil de ser respondida. Mas a enfermeira nada me dizia. Chegava a parecer que ela estava a jogar um jogo qualquer comigo, ou que me preparava secretamente uma surpresa.

Nesses quatro dias eu nunca consegui saber o que tinha acontecido. Agarrava-me apenas ao meu sentido de pertença mais básico: eu tinha o meu corpo e a minha mente como espaços em branco, puros, com as suas cicatrizes que selavam um perigo ultrapassado, e tinha de os proteger face ao caos de tudo o que me rodeava. Deitada na cama, abraçava o meu corpo, tentava protegê-lo, não de alguma ameaça em concreto, mas da própria realidade que por ora se me apresentava estranha. Mas logo percebia que esses abraços, ao invés de me fazerem sentir protegida, apenas acentuavam o meu desamparo. Com a ponta dos dedos acariciava as linhas rugosas das cicatrizes e perguntava-me o que elas escondiam.Ter-me-iam removido um órgão? Ou mais do que um? Teria sido uma remoção ou uma metamorfose? Sentia ambas as coisas: que dentro de mim se tinham operado remoções e transformações orgânicas. Ainda não sabia que me tinham retirado os ovários e já sentia que me faltava qualquer coisa essencial. Antes de me saber efectivamente infértil, já sentia a esterilidade do meu corpo só de o tocar. Naquela cama de hospital eu abraçava-me compulsivamente só para sentir que me fora removido ou transformado algo que eu não tinha sequer o direito de conhecer. Ainda hoje não consigo abarcar a magnitude das cirurgias a que fui sujeita.

No terceiro dia no hospital a enfermeira trouxe-me um espelho. Olhei-me e não me reconheci. Mas pior do que não me reconhecer foi perceber que também a minha cara fora sujeita a algum tipo de cirurgia. Tinha, aliás, cicatrizes e inchaços por toda a cara. Alguma coisa não estava no sítio certo ou não tinha as dimensões certas, talvez fosse a boca com os seus lábios demasiado carnudos, a testa demasiado grande, os olhos piscos. Claro que eu não me lembrava do meu rosto de antes, mas era possível que uma reminiscência subconsciente dele me levasse a ter esta percepção de desfasamento, a qual me acompanhou até hoje.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Ao quarto dia, ao fim da tarde, fui conduzida para fora dos muros do hospital. Eu caminhava envolta numa enorme fadiga. Um grupo de mulheres fardadas de branco, mas que tanto podiam ser enfermeiras como polícias, fez-me entrar num carro com elas, e em breve estávamos a atravessar uma rua flanqueada por moradias coloridas com os seus jardins de canteiros bem cuidados. Só então reparei que as moradias de dois pisos eram exactamente iguais umas às outras, sendo modelos de uma mesma série, e apenas diferiam nas cores. Atravessámos mais duas ou três ruas, que continuavam o mesmo padrão geométrico de casas e jardins, até o carro estacionar em frente de uma das moradias e nós sairmos. O primeiro piso estava pintado de violeta, e o segundo de azul-marinho. A porta acrescentava uma terceira cor: era de um amarelo que, estranhamente, combinava com as outras duas cores. Gostei daquele sítio, mas receava o que me podia acontecer: eu intuía uma qualquer ameaça escondida do outro lado da porta amarela. Uma das mulheres fardadas de branco tocou à campainha. Passado um momento a porta abriu-se, deixando ver uma mulher jovem de lenço na cabeça, que sorriu sem grande ênfase quando nos viu.

– Chama-se Laila. É a vossa nova companheira. Tratem-na bem, por favor. E claro, expliquem-lhe tudo. – A mulher fardada de branco virou as costas logo após proferir estas palavras, abandonando-me à minha sorte.

E foi aí que me dei conta de que eu não possuía nada, nem sequer uma mala com os objectos pessoais mais urgentes. Eu não tinha objectos pessoais. Nem sequer um documento de identificação. Tinha-me apenas a mim, um corpo e uma consciência predisposta a sofrer. Naquele momento desejei intensamente ter alguma coisa nas mãos, uma carteira com documentos, uma mala com roupa e livros, um diário, uma recordação, um brinquedo. Mas tinha as mãos vazias. E não sabia o que dizer.

– Sou a Ester. Sê bem-vinda à nossa casa. Estamos aqui todos para te receber – disse a mulher de lenço. Abriu mais a porta e pude ver um grupo de quatro pessoas sentadas em grandes almofadões numa sala ampla.

– Onde estou? – E desta vez tive esperança de que me respondessem.

– Ah, tinha de ser. «Onde estou, onde estou?» Eu não vos digo, esta é a pergunta que mais se repete nos primeiros dias após se acordar da anestesia. Pergunta número um nos quatro primeiros dias. O «quem sou eu» vem mais tarde. Infelizmente. Se fosse ao contrário, talvez fôssemos mais felizes. – O rapaz que disse isto, refastelado calmamente num dos almofadões, riu-se, e por fim apresentou-se: – Sou o Igor. Bem-vinda ao manicómio.

O nome «Igor» ressoou dentro de mim numa câmara de eco. Percebi que seguramente já teria conhecido alguém com esse mesmo nome, alguém de quem fora íntima talvez. Mas a ressonância interior desse nome não trazia consigo nenhuma emoção em particular.

– Vais-te habituar rápido a esta casa de malucos se fores tão desmemoriada como nós. Sou a Vlada – disse uma rapariga magra e sorridente.

– Desmemoriada ou demente – atalhou um homem mais velho, sentado ao fundo. Ao contrário dos outros, não sorria. Apresentou-se entredentes: – Cédric. Bem, pelo menos foi este o nome que me deram aqui. Prazer.

Livro: "E então, lembro-me"

Autor: Catarina Costa

Editora: Guerra & Paz

Data de Lançamento: 25 de julho de 2023

Preço: € 15,00

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– Onde estou? – perguntei de novo. O desespero começou a atingir-me. Precisava de uma resposta rápida, objectiva, conclusiva.

– É uma pergunta persistente. Ninguém pergunta «onde estou» apenas uma vez – voltou a dizer o rapaz chamado Igor, com um sorriso malicioso.

Ester tocou no meu ombro e fez um gesto para eu entrar em casa e disse-me para eu a seguir. Atravessei a sala e subi as escadas para o segundo piso, onde ficavam os quartos individuais. Avançámos por um corredor estreito com portas fechadas de um lado e do outro dispostas simetricamente. Ester abriu a terceira porta à nossa esquerda e disse:

– É o teu quarto. Dentro do armário vais encontrar roupa. Nas gavetas da cómoda estão os produtos de higiene essenciais e também um estojo de maquilhagem para o caso de gostares de usar. Bom, e outras coisas de que possas precisar. É uma questão de veres por ti mesma. O que está aqui é teu. Amanhã começas a trabalhar. Não te preocupes, virás comigo, trabalhamos as duas na mesma secção e, enfim, posso dizer-te que não é excessivamente pesado. Eu sei que deves estar confusa e cansada. Quando eu cheguei a esta casa há três anos sentia-me tão desnorteada que parecia estar num sonho. Julgava que do outro lado de cada porta fechada deste corredor estava um buraco negro pronto para me sugar.