UM

Aqui e não aqui. Vermelho e preto. Num momento ali, no seguinte desaparecida. O seu rosto no vidro. Desaparecendo na luz dos faróis dos carros, reaparecendo no escuro do exterior. Desaparecida de novo. A janela guardava-lhe o rosto só para si. Ótimo, podia ficar com ele. Devolvido, a janela também não o queria.

O reflexo de Red trespassava-a com o olhar, mas o vidro e a escuridão não a mostravam exatamente como era, esbatendo os pormenores. As principais feições estavam lá: o brilho demasiado pálido da pele e os olhos azul-escuros muito afastados que não eram só dela. São tão parecidas, costumava ouvir, mais do que gostaria. Agora, não gostava nada de o ouvir, nem sequer de o pensar. Por isso, desviou os olhos do seu rosto, do rosto delas, ignorando ambos. Mas era mais difícil ignorar alguma coisa quando se estava a tentar ignorá-la.

Red desviou o olhar, fitando antes os carros na faixa ao lado, lá em baixo. Algo não batia certo; os carros pareciam demasiado pequenos vistos ali de cima, pela janela, mas Red não se sentia maior. Viu um auto‑ móvel azul de cinco portas aproximar-se para ultrapassar e ajudou‑o com os olhos, empurrando-o para a frente. Aí vais tu, pá. À frente daquela lata de metal com nove metros e quarenta e quatro centímetros de comprimento, a galgar a autoestrada a toda a velocidade. O que era estranho, quando se pensava naquela palavra; um automóvel não era um galgo...

— Red? — A voz à sua frente interrompeu‑lhe os pensamentos de galgos e automóveis. Maddy estava a olhar para ela através das luzes fracas do interior, com a pele enrugada à volta dos seus olhos cor de areia molhada. Deu um pontapé ligeiro a Red por baixo da mesa, acertando-lhe na canela. — Esqueceste-te de que estávamos a meio de um jogo?

— Não — disse Red, mas, sim, esquecera-se. A que estavam a jogar, afinal?

— Às Vinte Perguntas — disse Maddy, lendo a mente de Red. Bem, conheciam-se desde sempre; Red apenas tinha um avanço de sete meses sobre Maddy e não fizera grande coisa com ele. Talvez Maddy tivesse aprendido a ler a sua mente em todo aquele tempo, mais de dezassete anos. Red esperava realmente que não. Havia coisas dentro da sua mente que mais ninguém poderia alguma vez ver. Ninguém. Nem sequer Maddy. Especialmente não Maddy.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

— Iá, eu sei — disse Red, deixando vaguear o olhar para o outro lado da autocaravana, para a porta e o sofá-cama, nesse momento sofá, onde ela e Maddy dormiriam nessa noite. Red não conseguia lembrar-se... de que lado da cama gostava Maddy de dormir? Porque ela não conseguiria dormir se não ficasse no lado esquerdo, e, no preciso momento em que estava a tentar ler a mente de Maddy quanto a essa questão, avistou uma tabuleta verde lá fora na noite, voando sobre o para-brisas.

— Aquela tabuleta dizia Rockingham. Não vamos sair desta estrada daqui a pouco? — disse Red, não suficientemente alto para que alguém a ouvisse na parte da frente da autocaravana, onde teria sido mais útil. Talvez estivesse enganada, e, de qualquer maneira, era preferível não dizer nada. Seguiam por aquela mesma estrada há uma hora, com a I-73 a tornar-se a I-74 e depois a US 220 sem grande alarde.

— Red Kenny, concentra-te. — Maddy estalou os dedos, com um indício de sorriso no rosto. No entanto, o rosto de Maddy nunca se enrugava, nem com o sorriso mais rasgado. Pele como natas, macia e mais límpida do que tinha o direito de ser. Fazia que as sardas no rosto de Red se destacassem ainda mais, lado a lado, nas fotografias. Literalmente lado a lado: eram quase exatamente da mesma altura, até ao cabelo mais espetado, embora o de Red fosse louro-escuro e o de Maddy mais a atirar para o castanho-claro, uma ou duas tonalidades a separá-los. Red trazia sempre o cabelo preso, com uma franja que cortara ela própria com a tesoura da cozinha. O de Maddy estava solto e bem penteado, com as pontas macias como as de Red nunca estavam. — Sou eu a fazer as perguntas. Tu pensas na pessoa, no lugar ou na coisa — lembrou Maddy.

Red acenou lentamente com a cabeça. Bem, mesmo que Maddy também gostasse de dormir no lado esquerdo da cama, pelo menos não ficariam nas camas do beliche.

— Já te fiz sete perguntas — disse Maddy.

— Ótimo. — Red não conseguia lembrar-se da pessoa, do lugar ou da coisa em que pensara. Mas, na realidade, tinham passado o dia na estrada, partindo de casa cerca de doze horas antes. Não teriam já feito jogos suficientes na viagem? Red mal podia esperar por que aquilo acabasse para poder finalmente ir dormir, do lado esquerdo ou do direito. Só queria que acabasse. Estava previsto que chegassem a Gulf Shores por volta daquela hora no dia seguinte para se encontrarem com o resto dos seus amigos, era esse o plano.

Maddy pigarreou.

— E que respostas dei? Recorda-me — disse Red.

Maddy expirou, se quase um suspiro ou uma gargalhada seria difícil de dizer.

— Era uma pessoa, uma mulher, não uma personagem de ficção — disse, contando pelos dedos. — Alguém que conheço, mas não a Kim Kardashian nem tu.

Red olhou para cima, revistando os cantos vazios da sua mente à procura da resposta.

— Não, desculpa — disse —, esqueci-me.

OK, começamos outra vez — disse Maddy, mas nesse momento Simon cambaleou para fora da pequena casa de banho, salvando Red de mais Diversão Organizada®. A porta bateu-lhe nas costas com o solavanco da autocaravana a acelerar.

— Simon Yoo, estiveste ali dentro este tempo todo? — perguntou Maddy, enojada. — Jogámos duas vezes inteirinhas.

Simon afastou do rosto o seu cabelo preto com ondas largas e levou um dedo pouco firme aos lábios, dizendo:

— Chiu, uma senhora nunca fala dessas coisas.

— Então fecha a porta, caramba.

Ele fechou-a, mas com o pé, para indicar alguma coisa, quase se desequilibrando por causa da velocidade a que a autocaravana se precipitava pela autoestrada, mudando de faixa para ultrapassar. A saída deles não era dali a pouco tempo? Talvez Red devesse dizer alguma coisa, mas nesse momento estava a observar Simon, que avançava a custo, segurando-se à pequena bancada de cozinha por trás dela. Num movimento desajeitado, deslizou para o banco ao lado dela, batendo com os joelhos na mesa.

Red observou-o: as pupilas dos seus olhos escuros e redondos estavam muito dilatadas, e havia uma mancha húmida incriminadora na frente da sua T-shirt azul-esverdeada dos Eagles.

— Já estás bêbedo — disse ela, quase impressionada. — Pensei que só tinhas bebido, tipo, três cervejas.

Simon aproximou-se mais de Red para lhe segredar ao ouvido, e ela sentiu o cheiro acre e metálico no seu hálito. Não podia deixar de o notar; era assim que sabia quando o pai estava a mentir-lhe, Não, não bebi hoje, Red, juro.

— Chiu — disse Simon. — O Oliver trouxe tequila.

— E tu serviste-te, sem mais? — perguntou Maddy, ouvindo o que ele tinha dito.

Em resposta, Simon fechou as mãos em punho e ergueu-as, gritando:

— Férias da primavera (1), baby!

Red riu-se. E, de qualquer maneira, se ela simplesmente lhe pedisse, talvez Maddy não se importasse de dormir do lado direito da cama nessa noite ou mesmo durante o resto da semana. Ela podia simplesmente pedir-lhe.

— O Oliver não gosta de que as pessoas toquem nas coisas dele — disse Maddy em voz baixa, lançando um olhar por cima do ombro ao seu irmão, que estava sentado a uns passos por trás dela, no lugar do passageiro, a mexer no rádio enquanto conversava com Reyna, que estava ao volante. Arthur estava de pé atrás de Oliver e de Reyna e nesse momento lançou um sorriso de boca fechada ao surpreender o olhar de Red. Ou tal‑ vez fosse de facto a Simon que ele estivesse a sorrir.

— Ei, a autocaravana é minha, tenho direito a tudo o que esteja dentro dela — disse Simon e soluçou.

— A autocaravana é do teu tio. — Maddy sentiu necessidade de o corrigir.

— Não estava combinado que também conduzias hoje? — perguntou‑lhe Red. O plano era partilhar a condução igualmente entre os seis. Ela fizera o primeiro turno de duas horas, para se despachar daquilo, conduzindo de Filadélfia pela I-95 até pararem para o almoço. Arthur ficara sentado ao seu lado durante todo esse tempo, indicando-lhe o caminho calmamente, como se conseguisse adivinhar quando ela estava a perder a concentração ou quando entrava em pânico com o tamanho da autocaravana e com a maneira como tudo parecia pequeno visto ali de cima. Leitores da mente por toda a parte, claramente. Mas ela só conhecia Arthur há uns seis ou sete meses; aquele comentário era injusto.

— Eu e a Reyna trocámos — disse Simon —, por causa das cervejas que eu já tinha bebido. — Um sorriso maroto. Perdoava-se sempre tudo a Simon, ele era demasiado engraçado, demasiado rápido. Não se conseguia ficar zangado com ele. Bem, Maddy conseguia, se tentasse realmente.

— Ei, a Reyna é mesmo fixe, já agora — segredou Simon a Maddy, como se ela tivesse algum mérito pelo facto de a namorada do irmão ser fixe. Mas Maddy sorriu e aceitou o cumprimento, com um olhar para o par, uma imagem perfeita, mesmo de costas.

Uma pausa na conversa; aquele era o momento para Red perguntar antes de se esquecer.

— Ei, Maddy, quanto ao sofá-cama...

— Merda! — exclamou Oliver na parte da frente, um som feio. — Esta é a nossa saída, aqui mesmo. Muda de faixa, Reyna. Agora! agora.

— Não posso — disse Reyna, subitamente atarantada, olhando para os espelhos e ligando o sinal de mudança de direção.

— Eles afastam-se para te deixarem passar, somos maiores, avança — disse Oliver, inclinando-se para a frente como se fosse bem capaz de agarrar o volante ele próprio.

Um guincho, não da autocaravana, mas de Reyna, quando passou o enorme veículo para a outra faixa. Um Chevrolet furioso buzinou alto, e o tipo ao volante fez-lhes um sinal com o dedo médio espetado de fora da janela. Red fingiu que o apanhava e enfiou-o no bolso do peito da sua camisa aos quadrados azuis e amarelos, guardando-o como um tesouro para sempre.

— Vira, vira, vira — berrou Oliver, e Reyna guinou para a direita novamente, saindo da autoestrada mesmo a tempo. Outra buzinadela, dessa vez de um Tesla furioso que deixaram para trás na autoestrada.

Livro: "E só ficaram cinco"

Autor: Holly Jackson

Editora: Editorial Presença

Data de Lançamento: 25 de setembro de 2023

Preço: € 19,90

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— Podíamos simplesmente ter saído na seguinte e procurado o caminho. É para isso que serve o Google Maps — disse Reyna, abrandando a velocidade, numa voz estranha e estrangulada, como se estivesse a abrir caminho por entre dentes cerrados. Red nunca vira Reyna atarantada ou zangada, apenas sempre com um sorriso, mais rasgado de cada vez que olhava Oliver nos olhos. Como seria estar apaixonada? Red não conseguia imaginá-lo; era por isso que os observava por vezes, para aprender com o seu exemplo. Mas Red devia ter dito qualquer coisa antes sobre a saída, não devia? Tinham conseguido passar quase todo o dia sem que alguém levantasse a voz. A culpa era dela.

— Desculpa — disse Oliver e enfiou o cabelo preto farto de Reyna por trás da orelha dela para poder apertar-lhe o ombro, deixando a marca dos seus dedos. — Só quero chegar ao parque de campismo o mais depressa possível. Estamos todos cansados.

Red desviou os olhos, deixando-os a sós naquele momento, bem, tão a sós como poderiam ficar numa autocaravana de nove metros e quarenta e quatro centímetros de comprimento com seis pessoas dentro. Ao que parecia, aqueles quarenta e quatro centímetros extras eram tão importantes que não podiam ser arredondados por defeito.

O mundo no seu lado da autocaravana estava de novo às escuras. Havia árvores a ladear a estrada, mas Red quase não conseguia vê-las, não para além do seu reflexo e do outro rosto escondido por baixo dele. Também tinha de desviar os olhos disso, antes que começasse a pensar demasiado. Não ali, não naquele momento.

A carrinha à frente deles abrandou ao passar por uma tabuleta com limite de velocidade 35, e as luzes dos seus travões mancharam a estrada de vermelho. A cor que a seguia para onde quer que ela fosse e que nunca significava nada de bom. Mas a estrada avançava, e eles também.

Oh, espera lá, o que é que precisava de perguntar a Maddy?

(1) No original, Spring Break. Férias escolares norte-americanas que acontecem entre março e abril. Período habitualmente associado à realização de festas e viagens de estudantes. (NT)