Impossível não falar dos números. Três álbuns (e outro a caminho), 13 EPs, 25 singles e 20 videoclips. Oito vezes disco de platina com a sua estreia, onze vezes com cada disco subsequente. Quase 40 milhões de cópias vendidas por todo o mundo. Dois mil milhões (!) de streams em uma única canção, recorde absoluto do Spotify. 113 prémios ganhos ao longo da carreira – em dezenas de galas e categorias distintas – e 319 nomeações para prémios. Senhoras e senhores, Ed Sheeran desperta o matemático que há em nós, e passado poucos minutos volta a deitá-lo abaixo: é impossível acompanhar a sua estaleca no que a vender e a promover a sua música diz respeito.

Há talvez uma razão para que Sheeran seja tão popular entre tanta gente. As suas canções são simples (sem serem simplistas); a melodia que lhes imprime coloca-se à dianteira, e é acompanhada por um caloroso ritmo que o músico britânico vai arrancando com palmas, com o bater da mão na guitarra acústica, com os loops dos quais usa e abusa ao longo dos seus concertos; e – e isto é muito importante – Ed Sheeran não parece uma estrela pop (e é-o, ou não encheria estádios), parece um qualquer tipo retirado a um pub inglês, parece um tipo afável conhecido numas férias de verão que até sabia tocar umas coisas à guitarra. Pertence à working class, a classe trabalhadora alheia aos desígnios do capitalismo em estado selvagem. Pertence ao grupo de amigos que tínhamos e temos, que se junta às sextas e sábados para beber uns copos e falar da vida.

Não é porém da vida, no sentido existencialista da coisa, que Sheeran fala. Fala de romance, de garotas perdidas, de garotas achadas, dos momentos em que um beijo diz mais que mil palavras. Fala dos mares de Tenerife, do fogo, da forma do corpo alheio. Fala e, no entanto, mal se ouve; no primeiro dos dois concertos que deu no Estádio da Luz, o músico britânico começou com 'Castle on the Hill' perante um mar de gritos agudos que não deixaram perceber sequer que versos ali se encontravam.

Os gritos foram só a prova de que Sheeran goza neste momento de um estatuto invejável: é capaz de levar 50 ou 60 mil pessoas a perder um sábado em filas e filas só para o ver mais de perto. A ele, sozinho, armado com a sua guitarra acústica e com uma série de pedais de efeitos e de loops, quase um espetáculo dentro do anti-espetáculo. Anti-, porque Sheeran não recorre aos artífices das estrelas pop habituais. Nada de explosões, nada de dançarinos em palco, nada de bateristas ou baixistas em êxtase. Só ele e as suas canções, entre baladas mais ou menos radiofónicas e uma folk de um certo travo indie – e somos levados a pensar que quem o odeia amá-lo-ia se não tivesse milhões de fãs, e sim meras centenas.

Mesmo que se tenha enganado por diversas vezes em relação ao último ano no qual atuou em Lisboa (foi em 2014 e não em 2012, conforme referiu), o britânico deu um concerto imaculado que, naturalmente, beneficiou do facto de andar a ser “ensaiado” ao longo dos últimos dois anos nos quais tem andado em digressão, a apresentar “Divide”, álbum editado em 2017. O uso dos loops – e isto foi tão extraordinário que somos obrigados a repeti-lo – permitiu-lhe andar a correr de um lado ao outro do palco, permitiu-lhe segurar apenas no microfone e arriscar um ou outro rap (até porque ele possui uma costela grime, que é essencialmente o rap versão britânica), permitiu-lhe procurar um público que o ajudasse a manobrar este barco na direção certa, e que muitas vezes agiu como um farol, tamanha a quantidade de luzes que se ia erguendo entre temas, transformando o Estádio da Luz numa Via Láctea.

A conexão com o público é essencial. Um “obrigado” merece os aplausos da praxe, o apelo à gritaria rebenta com recordes de decibéis emitidos, um apelo semelhante ao silêncio é... quebrado num segundo, porque o público português não é como o japonês, «calado», como nos revelou Sheeran. «Quero que saiam daqui sem voz», exclamou, e não será de todo tolo imaginar que, neste domingo, muitos serão aqueles que só funcionarão a chá de camomila e mebocaína. Até porque (e isto será claramente falso; é daquelas coisas que se dizem quando se é uma estrela pop educada), para Sheeran, os portugueses mostraram ser «o público mais ruidoso de toda a Europa»...

Num alinhamento que não divergiu daquele seguido nas suas últimas atuações ao vivo, e que inclui naturalmente todos os êxitos que já compôs e mais alguns, Ed Sheeran mostrou pensar como um remixer. O instrumental de uma canção desaguava nos versos de outra, sem pausas ou sem pensar muito, o que mostrou uma perícia não muito diferente daquela de um DJ – e, apesar do seu modus operandi ser a guitarra acústica, Sheeran é claramente mais influenciado pela música eletrónica que pelo rock n' roll ou seus derivados. Para o final, reservou as essenciais 'Thinking Out Loud' e 'Photograph', antes de terminar com 'Sing' e regressar para um encore onde 'Shape of You' foi rainha e senhora. Não porque decidiu voltar ao palco com uma camisola da seleção nacional de futebol, mas sim porque era inevitável – estamos, no fim de contas, a falar de uma das grandes canções pop desta década. Às vezes basta isso para nos apaixonarmos: uma única canção.

Numa tarde-noite que mais pareceu um mini-festival de música – e não é habitual vermos concertos em grandes estádios, ou sequer vermos concertos com tantas bandas de abertura – foi o norte-americano Ben Kweller, todo ele Texas (sotaque, boné de camionista, country-rock com mais ou menos distorção) a abrir as hostilidades perante um público que ainda só se encontrava à espera do prato principal, e que animou com Zara Larsson, conhecida por ter emprestado a sua voz a 'This One's For You', de David Guetta, o hino oficial do Euro 2016 (e foram muitos os que gritaram “Por-Tu-Gal!” ao reconhecê-la). James Bay, que veio à Luz apresentar o mais recente “Electric Light” (2018), foi recebido em euforia, com milhares de pessoas a prestar máxima atenção às suas canções românticas, construídas a partir de guitarra e piano. O segundo assalto do Ed Sheeran Fest está marcado para este domingo, também a partir das 16h00.