1993
O ano começou com as primeiras obras da Expo 98, Cavaco Silva deu luz verde para a construção da Barragem do Alqueva e abriu ao público o Centro Cultural de Belém. O CDS assume-se como partido de direita e acrescenta ao seu nome a designação de Partido Popular (CDS-PP). No semanário Expresso, é publicada uma caricatura do Papa com um preservativo no nariz. No “Aquaparque da morte”, em Lisboa, duas crianças desaparecidas no intervalo de 48 horas são encontradas mortas no interior das tubagens de renovação de águas, provocando o encerramento das instalações deste parque aquático até hoje. Mário Soares percorreu o país, naquela que viria a ser uma das presidências abertas mais marcantes; e de uma viagem entre Vila Franca de Xira e Loures fica para a história a frase: “Ó senhor guarda, desapareça, não queremos polícias aqui”.
Para delírio de uma geração, os Backstreet Boys e as Spice Girls cunhavam os termos girl e boy band. Em Portugal, as coletâneas de canções venderam-se mais do que os singles, num ano em que ficam para a história da música os lançamentos dos álbuns “Siamese Dream”, dos Smashing Pumpkins, “Enter the Wu-Tang”, dos Wu-Tang Clan, e a estreia dos Radiohead, com “Pablo Honey”, e de Björk, com “Debut”. Já os Nirvana gravavam, no final do ano, o especial MTV Unplugged. Em Lisboa, o Estádio de Alvalade foi palco não só para os U2 e para os Metallica, como para o espetáculo Portugal ao Vivo, com várias bandas portuguesas já consagradas, como Madredeus, Xutos & Pontapés, Sétima Legião e Delfins. No Porto, o Coliseu recebeu Bob Dylan e o Estádio das Antas os Depeche Mode.
Em 1993, na vila que lhe dá nome, nascia também o Festival Paredes de Coura. Sem falhar uma edição e a caminho da 25ª, o autoproclamado ‘habitat natural da música’ leva todos os anos milhares de melómanos às margens da praia do Tabuão. E tudo começou com o objetivo de “se passar um bom bocado entre amigos”, como nos contou João Carvalho, um dos fundadores e atual diretor do festival.
O início da 'fábrica de sonhos'
“O festival mudou definitivamente a nossa vida”, diz-nos João Carvalho, referindo-se também a José Barreiro, Filipe Lopes e Vítor Pereira. Os quatro amigos, que colocaram a vila minhota no mapa, faziam tudo. “Desde montar os palcos até fazer as refeições para as bandas”. E cada cartaz colado, cada vedação montada valeu a pena. “Tenho a certeza absoluta que todos nós seríamos mais infelizes se não tivéssemos tido esta ideia”, conta o promotor.
João não gosta de usar a palavra “festival” ao falar da primeira edição. Com data única, 20 de agosto de 1993, o cartaz era composto exclusivamente por bandas portuguesas, entre elas os “Ecos da Cave" e os "Cosmic City Blues".
O convite chegou por telefone, conta José Costa baterista dos Ecos da Cave. Do outro lado estava “um tal de João Carvalho, que, entretanto, se tornou um amigo para toda a vida”. “Perguntou se tínhamos disponibilidade numa certa data de agosto para tocar num festival em Paredes de Coura. Lembro-me que a minha preocupação era saber onde ficava Paredes de Coura”, ri-se ao recordar. E lá foram. À semelhança de outros eventos que surgiram na altura, “Paredes de Coura tinha o problema das primeiras vezes, sobretudo porque acontecia no meio do nada”. Recorda uma reunião, na tarde do evento, entre músicos e a organização, onde decidiram a ordem das atuações. Já a performance “não foi assim tão fixe”. Hoje destaca a coragem e a crença que os organizadores tiveram ao longo dos anos. Regressou mais tarde ao festival como road manager de Sloppy Joe e como manager de Dealema.
Já o convite dos Cosmic City Blues chegou por carta. Jorge Coelho, guitarrista dos vilacondenses, recorda “vários concertos absurdos num sítio particularmente bonito”. Jorge andou sempre “bastante colado ao festival”. Tocou nas primeiras nove edições, entre os palcos principais e o Jazz na Relva. Na sua opinião, “o festival continua a ser diferente dos outros pela sua identidade. Principalmente como as pessoas veem os concertos, é mais um festival de rock que um evento social”.
“Deixou um bichinho” que alimentaram
Se na segunda edição o objetivo já era “o de melhorar a primeira”, na terceira já era o de “promover Paredes de Coura”. À quarta edição fica a certeza de que “o festival tinha pernas para andar e que já não havia volta atrás”.
Em 1996 apostaram no cartaz de três dias, decidiram avançar para as primeiras contratações internacionais e a entrada deixou de ser gratuita. “Para te sentires constantemente motivado tens de olhar para trás e pensar que queres fazer melhor no futuro. Já tínhamos conseguido trazer as bandas portuguesas que queríamos, era altura de partir para a internacionalização”. E assim foi.
Mas não deixou de ser controversa entre os fundadores a decisão de cobrarem bilheteira. João confessa que era um dos que estava contra em ter um bilhete pago, receava que as pessoas deixassem de ir a Paredes de Coura. “Mas a verdade é que foi o melhor que nós fizemos”, acaba por confessar. “Para um festival consolidar-se e para crescer tem mesmo de ter bilhete. Hoje era impensável ter um festival desta dimensão se não tivéssemos passado por estas fases todas”.
Mas seria apenas no ano seguinte, em 1997 que a primeira grande banda internacional era confirmada: os norte-americanos Rollins Band, projeto liderado por Henry Rollins, a voz dos Black Flag. João Carvalho assume que “Paredes de Coura gosta de ser um festival de tendências”. “Gostamos de mostrar nomes em primeira mão e hoje olhando para trás estamos satisfeitos com o resultado”. O anfiteatro natural de Paredes de Coura foi palco para as primeiras vezes dos Coldplay, Queen of the Stone Age ou Arcade Fire em solo nacional – e a lista não se fica por aqui.
Ao longo das edições somam-se histórias. Como a vez que o Neil Hannon, vocalista dos Divine Comedy, “acabou a noite a servir cervejas a toda a gente num bar”. E criam-se laços. “O Erlend Øye, dos King of Convenience, ainda hoje põe likes na nossa página do festival e insistiu para voltar com o seu projeto a solo” (e voltou!).
Mas nem tudo foi fácil. “Houve edições que correram bastante mal. Umas com patrocínio, outras sem patrocínio. Umas com sol, outras com chuva torrencial”. Isso “deu uma estaleca ao festival”, diz João Carvalho. O espírito de entreajuda e as dificuldades que estiveram na génese do festival levam àquilo que o evento é hoje, na opinião do promotor, “um festival de afetos”. Nasceu do querer e é “a vitória do esforço e da perseverança”, sem esconder a dificuldade “de afirmar um festival desta dimensão” em Paredes de Coura.
Dimensão essa que trás outra barreira: o alojamento. “Se Paredes de Coura tivesse dez mil camas, elas esgotavam. Não se tem noção da quantidade de casas, centenas, que são alugadas nesta altura do ano. Qualquer freguesia, das dezanove do concelho, tem casas alugadas com gente que vem para o festival”. Também as bandas manifestam essa vontade de ficar pela vila, “Seasick Steve disse inclusive que não se importava de ter cá uma casa”.
Se em 1996 o desafio era o de “chegar às bandas internacionais”, hoje é o de melhorar, a cada edição, as infraestruturas do recinto. Antes era “excitante a primeira banda estrangeira” agora “é excitante adivinhar o sorriso na cara das pessoas” quando chegam ao campismo. Inovar é uma necessidade para a organização do festival que este ano promete uma nova (e maior) zona de chuveiros e de casas de banho, com ligação à rede de esgoto, e o “anfiteatro a respirar mais a música e a natureza”.
Saber receber é outra das bandeiras da vila e do festival. Razão pela qual a música começa bem antes das portas do recinto abrirem – e de forma gratuita. O ‘Sobe à Vila’ nasce da vontade de querer “prolongar a estadia em Paredes de Coura”, convidado os festivaleiros a chegar mais cedo. Mas também para “ajudar o comércio local, que felizmente hoje já passa por melhores dias, mas há uns anos atrás com a crise passava por algumas dificuldades”.
A própria vila anseia pelo começo do festival. “Vou a qualquer lugar e as pessoas dizem-me ‘está quase’, ‘finalmente’ ou ‘está chegar’”, conta o organizador que mantém casa na vila. “Estão ansiosos, não só pelo negócio mas até pela simpatia das pessoas. Outro dia a senhora da fruta dizia-me: ‘estou desejosa que chegue o festival, porque as pessoas são mais compreensivas até do que aquelas que eu tenho de lidar o ano todo’.
E o público de ‘Coura’? “Nós temos um público especial”, não hesita em dizer João Carvalho.
“O festival é o exemplo perfeito do anular do fatalismo da geografia”
Vítor Pereira, outro dos fundadores do festival, hoje Presidente da Câmara de Paredes de Coura, ressalva a importância económica do evento no território. Sobretudo para a restauração e para a hotelaria, "seria quase impossível pensar num verão sem existir o festival”, justifica.
Outro aspeto importante, mas difícil de quantificar, é a força simbólica que o festival, “um laboratório de sonhos”, trouxe ao território. Por um lado, “foi graças ao festival que Paredes de Coura se impôs e teve mais visibilidade mediática”. Por outro, “o festival é o exemplo perfeito do anular do fatalismo da geografia. Veio mostrar que os discursos do fatalismo e do determinismo geográfico não têm razão de existir”, ressalta o autarca.
Sonhos? Os sonhos foram sendo concretizados
“Numa altura, era o de trazer Nick Cave, e trouxemo-lo. Depois foi o de trazer os Queen of The Stone Age, e trouxemo-los [três vezes]”.
Então o que fica? Fica a vontade de fazer casa vez melhor. “Os meus sócios até costumam dizer que sou bom a vender o que temos, porque digo sempre que é a melhor edição de sempre. Mas honestamente acho sempre que devíamos ter feito melhor, mas também acho que fazemos tudo para fazer o melhor”, remata João Carvalho.
A 25.ª edição do Festival Vodafone Paredes de Coura decorre de 16 a 19 de agosto. No ano em que celebra um quarto de século, o festival vai assistir a concertos de artistas como Future Islands, Mão Morta, King Krule, Young Fathers, Benjamin Clementine, At the Drive-In, entre muitos outros. Os passes para o festival custam 90 euros, com bilhetes diários disponíveis por 45 euros.
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