‘Queer’ é a palavra usada para “todas as vivências fora do heteronormativo [que estabelece como norma a heterossexualidade e a instituição de duas categorias distintas: o masculino e o feminino]”, segundo o dicionário Priberam. “É um conceito antigo, que começou por ser algo pejorativo e foi depois acolhido pelas ciências académicas e pelo próprio universo artístico como uma coisa de empoderamento”, recordou André Murraças em declarações à Lusa, numa visita à Casa Fernando Pessoa.
O encenador, que se tem dedicado à pesquisa do património LGBTQIA+ português, lembrou que os museus “têm como missão mostrar a diversidade das vidas, através da obra artística, e muitas vezes não mostram estas vivências, ou artistas que tiveram que viver vidas escondidas”.
“Nós até achamos que estes conceitos são coisas recentes, mas na verdade são coisas que existem desde sempre. Basta ir aos romanos ou aos gregos para vermos, na mitologia e nas estátuas que os representam, uma série de histórias entre pessoas do mesmo sexo, ou deuses do mesmo sexo”, referiu.
A ideia com o projeto “O Museu fora do armário” foi “destacar algumas peças que falem destas coisas”, em colaboração com museus, acedendo às reservas, arquivos ou às exposições permanentes.
O projeto arranca na Casa Fernando Pessoa, onde no sábado é inaugurada a exposição “Livros queer na biblioteca de Fernando Pessoa”.
A biblioteca particular do poeta, que era um leitor voraz e tinha o hábito de rasurar e anotar as obras, tendo até em algumas escrito poemas, é composta por 1.300 títulos e esteve na base da criação da Casa Fernando Pessoa.
Da coleção de livros de Fernando Pessoa, André Murraças selecionou alguns, publicados entre 1855 e 1933.
“É muito curioso ver [nesses livros] personagens como os dândis, homossexuais, bissexuais, aquilo que hoje chamaríamos de não binários, livros que nos contam histórias de comunidades de pessoas do mesmo sexo que vivem sozinhas. É muito curioso pensarmos que estas coisas existem, ou que ele [Fernando Pessoa] teve acesso a esta vivência há 100/150 anos”, disse.
Com esta exposição pretende-se também que o visitante “tente olhar para as coisas uma segunda vez, com um olhar um bocadinho diferente, e com uma abertura para descobrir que se calhar não é só aquilo que se está ver num primeiro contexto, e que há muito mais”.
Numa sociedade em que “ainda há muito preconceito”, André Murraças considera que “faz falta este tipo de projetos, para explicar que muitas vezes esse preconceito é apenas falta de informação e de conhecimento, e é um medo desnecessário”.
Embora ainda haja muito preconceito, “a sociedade está muito diferente agora”. “Sobretudo nas gerações novas há muita abertura, mas é uma luta que continua”, disse.
Para aqueles que pensam e defendem que a homossexualidade, a transexualidade ou a ‘fluidez de género’ são questões de ‘moda’ de agora, esta exposição quer demonstrar o contrário.
Entre os livros selecionados estão, por exemplo, “Nova Sapho” (1912), de Visconde Villa-Moura, “que, apesar de ter um final trágico, dá uma série de personagens que vivem em comunidade, e são todos bissexuais”.
“[As personagens] são apresentadas como pessoas cultas, que viajam, cosmopolitas. É muito interessante porque vem no seguimento de caricaturas [de homossexuais] de [Rafael] Bordallo Pinheiro nos jornais, dos livros pornográficos, e é uma coisa completamente oposta”, recordou.
“A confissão de Lúcio” (1914), de Mário de Sá-Carneiro, “uma novela fantástica, tem um trio amoroso: um homem, que será o alter-ego de Sá-Carneiro, que está apaixonado por um rapaz que tem um casamento com uma mulher que nunca aparece”, também está entre as obras selecionadas, tal como “Antinous”, um poema em inglês de Fernando Pessoa datado de 1918 e um dos três opúsculos que publicou em vida.
Antinous (Antínoo em português) era o companheiro de Adriano, “um dos grandes imperadores e conquistadores do mundo”, e o poema de Pessoa “mostra o afeto entre estas duas pessoas”.
André Murraças destacou também da biblioteca de Pessoa “Octávio” (1916), de Victoriano Braga, “talvez uma das primeiras peças portuguesas com um protagonista homossexual”, que “não é um texto muito correto hoje em dia”, visto ser “bastante misógino, um pouco desagradável, uma visão aristocrática da sociedade, mas não deixa de ser muito interessante”.
Por ter tido uma educação anglófona, Fernando Pessoa lia muito em inglês, por isso foram também escolhidos livros que não são em português e “têm uma variedade de temas que transportam para estas transgressões fora da heteronormatividade”, como “Leaves of Grass” (1855), de Walt Whitman, que inclui uma secção de poemas nos quais o autor descreve o seu amor por outro homem.
No sábado haverá leituras encenadas de “A confissão de Lúcio” e “Antinous”, de entrada livre, às 16:00. Para 07 de novembro e 12 de dezembro estão agendadas leituras encenadas de outras obras selecionadas para a exposição.
Na Casa Fernando Pessoa, o projeto “O Museu fora do armário” surge como exposição, mas “irá assumir formas diferentes dependendo do museu para onde for”.
O próximo será o Museu de Lisboa — Palácio Pimenta, em novembro, com “uma visita dentro da coleção permanente, que chama a atenção para coisas que lá estão e que têm uma história queer, e que as pessoas se calhar não sabem”.
Em 2025, o projeto de André Murraças chega ao Teatro Romano e haverá uma colaboração com o Museu Calouste Gulbenkian.
Para já são tudo instituições situadas em Lisboa, mas a ideia “é ir a todo o país, porque todos os museus têm qualquer coisa ‘escondida’ que merece dar uma segunda vista de olhos e fazer esse trabalho de mediação para o público visitar”.
“O objetivo é que os museus também tenham essa perspetiva e queiram potenciar os arquivos e as exposições para caminhos alternativos. Visitas e itinerários que sejam mais abrangentes. E, por outro lado, também há um trabalho de mediação com o público e com os visitantes, e que é urgente fazer porque os museus têm um poder muito grande na sociedade. Há que aproveitar esse poder”, reforçou André Murraças.
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