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No dia do seu casamento, Isabel Juliana teve um ataque de pânico à beira da cerimónia. Estava há largos minutos pronta, no seu soberbo vestido de noiva em tule, com as rendas, os bordados, a saia volumosa e uma extensa cauda. Levava o exuberante cabelo castanho muito bem penteado e apanhado com ganchinhos escondidos. E usava um véu a cobrir-lhe a cabeça.
Passara a última hora a chorar no quarto de vestir, rodeada pelas duas criadas, Engrácia Joaquina e Maria Joaquina, enquanto a costureira dava os derradeiros retoques no seu lindo vestido branco, com a ajuda de uma jovem tímida e assustadiça que tremia a cada ordem seca da mulher. Já para a noiva, a costureira era só delicadezas e, como atribuiu as lágrimas aos nervos, foi apaziguando-a, dizendo que ia correr tudo pelo melhor. Pois bem, não ia!
Isabel Juliana revelava-se determinada e senhora de uma coragem notável, de tal modo que às vezes fazia esquecer que não passava de uma menina de 14 anos. Era o dia 11 de Abril, a Primavera ainda agora chegara e ela só faria quinze em Dezembro.
Estava-se em 1768. Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e omnipotente ministro do senhor D. José, punha e dispunha do reino e dos vassalos de Sua Majestade com uma amplitude muito lata. Extremamente lata, na verdade. E era a este homem, todo-poderoso e que ninguém ousava contrariar, que Isabel Juliana de Sousa Coutinho Paim — uma criança magrinha de olhos escuros — fazia frente.
Ela mantinha-se de pé, sem se mexer, em cima de um pequeno estrado, um quadrado de madeira da altura de um degrau, que facilitava o trabalho à costureira enquanto esta andava à roda dela com linhas, agulhas e alfinetes. Justamente, pensou Isabel Juliana, muito direita, olhando a parede com a vista turva de tanto chorar, o que lhe interessava se o vestido ficava perfeito? De resto, parecia-lhe que ficara pronto há bastante tempo e que a mulher já nada tinha a fazer, senão fingir melhoramentos para agradar a menina.
— Saiam todas — ordenou, de súbito, Isabel Juliana.
A costureira interrompeu o que fazia, ergueu os olhos por cima dos óculos, e protestou:
— Não posso sair agora, Dona Isabel Juliana. Temos de acabar isto o quanto antes.
— Está terminado. Saiam todas, já. Preciso de ficar sozinha.
A costureira consternada, a sua ajudante, as duas criadas, saíram. Isabel Juliana ficou, como se hipnotizada, a olhar a porta que se fechou. Mas logo um medo terrível tomou conta dela. O coração acelerou e toda ela tremia e transpirava. Teve até dificuldade em respirar. Por instantes, acreditou que morria. Antes morresse..., pensou.
A porta abriu-se de rompante e D. Maria Antónia de São Boaventura Monteiro Paim entrou no quarto como um furacão. A avó surpreendeu Isabel Juliana sentada no estrado, afundada no vestido de noiva, toda dobrada, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a testa deitada na palma das mãos. Ela levantou a cabeça, lívida, e a avó teve a sensação de ver um fantasma.
— O que se passa consigo, menina?
A neta fitou-a com os olhos marejados de profunda tristeza.
— Eu não quero casar, avó — implorou.
— Disparate, menina! Levante-se, que vai ficar toda amarrotada — ordenou-lhe no seu tom seco e frio.
E ela levantou-se logo, ainda que desconcertada com a reacção da avó ao seu derradeiro e lancinante pedido de ajuda. D. Maria Antónia, simplesmente, ignorou-o. E tinha boas razões para isso. Andavam naquele braço-de-ferro há meses e não havia mais nada a debater sobre o assunto. Isabel Juliana teria de casar nesse mesmo dia com José Francisco de Carvalho e Melo Daun, filho segundo do conde de Oeiras, de 14 anos completados há dez dias.
A avó respirou fundo e acabou de lhe compor o vestido com gestos práticos e enérgicos. D. Maria Antónia parecia ter uma camada de gelo, não se lhe via uma emoção, mas essa aparente insensibilidade era uma defesa. Debaixo daquela carapaça de inflexível devota havia medo.
O marido faltara-lhe há vinte anos e a responsabilidade da sobrevivência da família caíra-lhe inteiramente nos braços. Tivera os seus momentos de pânico, era certo, mas o tempo apaziguara a insegurança, dera-lhe experiência, tornara-a mais confiante. Ao final da tarde, rezava sempre o terço no oratório da casa e, à noite, no silêncio trevoso do quarto, conferenciava com o falecido marido, aconselhava-se com o seu Rodrigo. Estes dois hábitos ajudavam-na muito a manter o controlo e a serenidade para tomar as decisões mais difíceis.
Normalmente, D. Maria Antónia cobria-se de rigoroso luto e de muitas cautelas. Ficava no seu canto, tratava da sua vida, não dava nas vistas. Era sensato uma pessoa ser discreta naquela época de grandes perseguições. Ainda estava no espírito de todos os acontecimentos que cobriram de sangue a recente história do reino. E, por mais anos que passassem, não seriam esquecidos. Por ordem do rei D. José — que era o mesmo que dizer por ordem do seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo —, D. Leonor Tomásia de Távora fora decapitada no patíbulo; o marido, os filhos e o genro tinham sido despedaçados a golpes de maço; o duque de Aveiro tivera a mesma sorte e o resto da família e outras dezenas de fidalgos estavam há anos enterrados vivos nas enxovias das prisões do Estado. Os padres da Companhia de Jesus tinham sido presos e expulsos do reino com aviso para não voltarem. Todos eles, nobres e padres, foram considerados traidores e acusados de uma conspiração para matar o rei.
D. José voltava clandestino de um encontro nocturno com a amante, D. Teresa de Távora, quando foi surpreendido por uma emboscada. Desse atentado, a única prova concreta era um ferimento horrível no braço de Sua Majestade e os estragos das balas na carruagem do seu criado, o sargento-mor Pedro Teixeira. Quanto aos supostos conspiradores, que foram presos, julgados e executados, nunca se provou verdadeiramente a sua culpa. O que se provou sim foi que a autoridade de Sebastião José de Carvalho e Melo era mais poderosa do que qualquer lei e capaz de manipular o processo que os condenou.
Esta enxurrada de acontecimentos funestos e traumatizantes decorrera nos últimos anos, já depois do arrasador terramoto que destruíra Lisboa, Cascais, o Algarve e muitas outras regiões do reino.
Tinham passado doze anos e quatro meses desde a catástrofe, mas as ruas da capital continuavam cheias de buracos, de lama e de montes de entulho no lugar das casas de antigamente. O lixo amontoava-se ao ar livre e cães esfomeados e raivosos deambulavam em matilha pelos escombros da cidade.
A rua não era segura à noite, pertencia aos vândalos e aos salteadores. Não obstante, a lei e a ordem tinham voltado a fazer o seu caminho, depois da anarquia dos dias seguintes ao terramoto. Nesses primeiros tempos, os ladrões apanhados a saquear eram logo pendurados pelo pescoço na primeira árvore. Sem contemplações.
A tranquilidade impusera-se enfim, mas a doutrina do garrote manteve-se, porque servia os interesses do ministro do rei. Ainda recentemente se queimavam pessoas no Rossio e mesmo a morte horrível dos Távora — inimigos do conde de Oeiras — ecoara por essa Europa fora, não tanto pelo horror da barbárie do Estado, mas por os supliciados serem pessoas de primeiríssima qualidade. Isso sim, chocara a gente fidalga de todo o continente. Era um péssimo exemplo que podia ser copiado e mostrava que, por aqueles dias, ninguém estava a salvo em parte alguma.
Era, portanto, do mais elementar bom senso evitar protagonismos excessivos, que pudessem atrair as atenções, especialmente do conde de Oeiras, que via conspirações em todo o lado e não confiava em ninguém.
Mas a grave e circunspecta D. Maria Antónia não era imune à vaidade e ao apelo da fama e do louvor e, em má hora, decidira dedicar-se à tradução de A História da Igreja no Japão, do jesuíta João Crasset. A tradução, de grande apuro e superior qualidade, recebera merecidos elogios dos eclesiásticos. A obra não passara despercebida a ninguém e acabara por se tornar notável, assim como a sua autora. Ora, sabendo-se que o conde de Oeiras culpava os padres da Companhia de Jesus de todos os males do mundo, fora realmente de uma imprudência tremenda escrever três grossos volumes laudatórios sobre a estadia dos jesuítas no Japão.
D. Constança, condessa de Alva, irmã de D. Maria Antónia, morreu, e a viúva teve a terrível sensação de que todos a iam abandonando. Dois filhos estavam para fora, no estrangeiro. O pai de Isabel Juliana era embaixador de Portugal na corte do rei Luís XV. D. Vicente Roque de Sousa Coutinho Monteiro Paim pavoneava-se por Versalhes, que era, achava ele, o seu habitat natural. D. Vicente pelava-se por Paris e faria qualquer loucura para manter o seu adorado posto diplomático e a sua confortável e despreocupada vidinha de luxo.
A mãe de Isabel Juliana, D. Teresa Rita Vital da Câmara, morrera durante o parto e dessa tragédia salvara-se a menina de olho vivo, pequenina, mas determinada. A criança ficara entregue aos cuidados da avó e praticamente esquecida pelo pai, que não vinha de Paris há anos e enviava presentes pelo correio para aliviar a consciência.
D. Francisco de Sousa Coutinho, gémeo de D. Vicente, encontrava-se em Angola, para onde fora nomeado governador e, tendo deixado a sua mulher em Chaves, mandara igualmente dois filhos para casa de D. Maria Antónia. O mais velho, Rodrigo de Sousa Coutinho, era inseparável de Isabel Juliana. Embora tivesse nascido em Chaves no ano do terramoto, onde então o pai comandava tropas, ele e o irmão moravam com a prima em casa da avó, na Rua Formosa, desde 1761. Rodrigo tinha ainda 12 anos. Faria 13 em Agosto.
Eram vizinhos de Sebastião José de Carvalho e Melo, ou melhor, do palácio dos Carvalhos, que ficava no outro lado da rua, um pouco mais abaixo, no passeio em frente à praça do chafariz, onde os aguadeiros galegos iam encher os seus barris. Mas, por força das circunstâncias do terramoto de 1755, o conde de Oeiras já não morava na casa de família na Rua Formosa, que fora arrendada à Purry, Mellish e Vismes por um valor muito vantajoso, o qual só se explicava por ele ser o ministro que tudo decidia e a firma inglesa querer continuar a ser favorecida com o monopólio no lucrativo comércio do pau-brasil.
Traumatizado com o terramoto, D. José ganhara fobia às paredes de pedra e mudara-se do palácio real para um acampamento de luxo, no Alto da Ajuda, de onde não tencionava sair nunca mais. Face a esta decisão do rei, o ministro sentiu-se obrigado a deixar a casa da Rua Formosa e a mudar-se para junto do amo. Contrariado, mas fingindo-se entusiasmado por morar ao lado do rei, Sebastião José de Carvalho e Melo lá se resignou à nova moda da corte portuguesa de viver em barracas.
O rei ofereceu-lhe uma construção de madeira pouco confortável, que passou a ser conhecida como a casa do Pátio das Damas. Com o tempo, essa barraca foi sendo alargada e, então, sim, tornou-se uma casa com muitos quartos e com os gabinetes da secretaria de Estado contíguos à residência. Ali moravam o conde de Oeiras, a mulher, os filhos e os dois irmãos mais próximos do ministro: Paulo de Carvalho, presidente da Santa Inquisição, e Francisco de Mendonça Furtado, que ingressara no governo com a pasta da Marinha e do Ultramar depois de regressar do Brasil em 1759. No Pátio das Damas havia ainda instalações para os criados de casa e para o esquadrão de dragões que guardava o ministro.
O poderoso ministro, no entanto, não descurava a administração das outras propriedades que lhe pertenciam e, assim como se ocupava do monumental palácio de Oeiras, também voltava sempre à Rua Formosa, onde só arrendara uma parte da casa da família.
Sebastião José de Carvalho e Melo preocupava-se muito com o seu segundo filho, José Francisco, uma alma pura e ingénua, bom rapaz, talvez até bom demais, que em nada se parecia com a têmpera de aço do pai, o qual, em novo, pintara a manta à frente de um bando de boémios desordeiros chamado Capotes Brancos que se aventurava à noite pelas ruas estreitas, escuras e mal-afamadas de Lisboa.
Ele e o seu bando de jovens aventureiros cheios de sonhos e bravata embebedavam-se na taberna dos Dragões, no Bairro Alto, e travavam violentas contendas com outros bandos de espadachins. O próprio infante D. Francisco, irmão do rei D. João V, liderava um bando de fidalgos exímios de espada, que cruzavam ferro como ninguém.
Só mesmo os Capotes Brancos se atreviam a andar pelas ruas e pelos lugares frequentados pelo bando dos Capotes Pretos. Os primeiros eram da pequena fidalguia, sem títulos sonantes, e os segundos da mais alta nobreza, com os melhores e os mais considerados brasões do reino.
Mas o pequeno José Francisco nunca seria arruaceiro nem um líder de homens corajoso e capaz de fazer o que tivesse de ser feito sem contemplações, isso percebia o pai claramente, vendo que o filho não tinha vocação para o ferro ou para o cacete. E muito menos tinha aquela aura carismática dos homens que arrastavam atrás de si multidões incondicionais.
José Francisco frequentava o Real Colégio dos Nobres, imponente edifício na Cotovia, a meio caminho entre o Rato e o Bairro Alto. Outrora o noviciado da Companhia de Jesus, o edifício fora confiscado aquando do extermínio da ordem e dos jesuítas em Portugal.
O colégio cumpria agora o seu segundo ano lectivo, tendo sido financiado em grande parte com os bens apreendidos à rica casa dos Aveiro. O duque desse título, D. José de Mascarenhas, condenado à morte pelo atentado contra El-Rei D. José, havia sido despedaçado a golpes de maço no patíbulo de Belém. O carrasco, diligente e escrupuloso, partira-lhe os ossos todos do corpo, infligindo-lhe um sofrimento horroroso antes de acabar de o matar com um golpe em cheio na cara, que lhe deixou o rosto numa papa disforme. Tudo isto era obra do conde de Oeiras: a perseguição movida aos mais poderosos nobres que lhe faziam oposição; a farsa do julgamento dos Távora e do duque de Aveiro pelo tribunal da Junta da Inconfidência, que conduziu à memorável e horrorosa execução colectiva dessa família; a expulsão dos jesuítas e a apreensão do seu extraordinário património; o fim dos estabelecimentos de ensino religiosos e a fundação do Colégio dos Nobres. Era tudo orquestrado pelo grande maestro do reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro todo-poderoso, que ia compondo a realidade e inventando a narrativa que a justificava conforme servia os seus interesses. E já ninguém se atrevia a desafiá-lo ou a contestar o que quer que ele fizesse.
Para entrar no Real Colégio dos Nobres era necessária uma petição ao rei que, se assim o entendesse, faria do candidato moço fidalgo, condição mínima para ser admitido. Além disso, o rapaz teria de saber ler e escrever, ter entre sete e 13 anos e um pai dono de uma boa fortuna, pois era necessário pagar os 120 mil réis de pensão anual. Embora houvesse vaga para 100 alunos, somente foram preenchidas 24. Os rapazes que reuniram as condições para frequentar o colégio eram a elite que haveria de herdar e perpetuar o nome das grandes e nobres famílias.
Eram estes os colegas do ingénuo José Francisco. Estudava na companhia dos filhos dos mais ilustres fidalgos, alguns deles perseguidos pelo seu pai, mas aqueles olhos infantis só viam colegas de escola e amigos. E, no entanto, ali estava D. Pedro José de Almeida Portugal, filho do marquês de Alorna que apodrecia na prisão da Junqueira, enquanto a mãe e a irmã permaneciam encarceradas no convento de Chelas; e D. Alexandre de Sousa Holstein, filho de D. Manuel de Sousa, que morrera na Junqueira, e irmão de dois jovens encarcerados no Castelo de S. Filipe de Setúbal.
Estes dois rapazes, D. Pedro José de Almeida Portugal e D. Alexandre de Sousa Holstein, eram os únicos alunos no Colégio dos Nobres filhos de perseguidos. Todos os outros pertenciam a famílias favorecidas pelo conde de Oeiras. Umas colaboravam activamente, outras só fingiam apoiá-lo por receio de represálias. Atrás de uma civilizada urbanidade escondiam-se perigosas emoções. Havia ressentimento, ódio, pensamentos de vingança e muito medo.
Sem que se apercebesse, o pequeno José Francisco era vigiado de perto pelos professores, pelos funcionários e pela direcção do colégio. Todos velavam pela segurança do menino, para que nem sequer um joelho esfolasse. O reitor, José do Quental Lobo, tinha pesadelos só de pensar que pudesse acontecer qualquer infortúnio ao filho do ministro. Assim, ao menor sinal de conflito entre os alunos, envolvendo o jovem José Francisco, acudia logo um professor ou um padre para proteger o menino e acabar com a desordem. E estes, que eram tão duros a disciplinar as turmas, tornavam-se brandos e patéticos a pedir desculpa ao pequeno José Francisco por qualquer coisinha.
O pai deste menino de bom coração, mas fraco intelecto, preocupava-se muito com ele. Havia que precaver-lhe um futuro, uma vez que não era o morgado da família. O conde de Oeiras via que o seu rapaz mais novo evidenciava um pensamento algo lento, bastante limitado, e essa dificuldade de raciocínio não lhe augurava nada de bom.
Mas o conde de Oeiras, antecipando já os tempos duros que inevitavelmente chegariam um dia para a sua família, dizia à mulher, a condessa:
— Um dia, não estarei cá para vos proteger e nessa altura é importante que o José Francisco esteja resolvido.
— Esse tempo ainda vem longe, grraças a Deus, mas sim, é prriorritárrio — concordava D. Maria Leonor Daun, no seu sotaque austríaco muito carregado. Falava bem português, mas arrastava os erres.
Felizmente, o marido tinha um plano. Ele tinha sempre um plano.
2
O jovem Rodrigo de Sousa Coutinho, inteligência prodigiosa que embasbacava os professores, começara por estudar em casa com o seu irmão José António, a prima Isabel Juliana e o grande amigo Alexandre de Sousa Holstein. Na verdade, como o Colégio dos Nobres tardava em iniciar a actividade, as lições decorriam em casa da avó e também em casa de um professor de origem inglesa muito prestigiado, de seu nome Guilherme José Billingham.
Master Billingham tinha as suas qualidades a ensinar as matérias e os miúdos adoravam-no. Por isso, fora contratado pela avó de Rodrigo, de José António e de Isabel Juliana. Mas a apresentação não era o seu forte. O eterno casaco castanho roçado e a cabeleira desgrenhada não ajudavam. E depois os sapatos de fivela desengraxados e as meias lassas com malhas eram desconcertantes.
Os meninos cresceram juntos e sempre com a cumplicidade benfazeja de Master Billingham. Tanto que, mesmo depois de os rapazes terem ingressado no Colégio dos Nobres, o professor continuou a dar lições a Isabel Juliana em casa, uma vez que o colégio não admitia meninas.
Era daquelas amizades que ficavam para a vida. Rodrigo, o mais novo dos primos, mas, definitivamente o mais inteligente de todos, tinha o maior orgulho em ser afilhado do conde de Oeiras, o ministro em quem o rei D. José depositava total confiança para governar o reino. E o homem que aterrava a prima Isabel Juliana.
O eminente estadista perseguia há meses um desígnio que envolvia a casa dos Paim, que, aliás, ultimamente visitava amiúde. Por vezes, usava o pretexto de ir ao seu próprio palácio, vizinho, na Rua Formosa, para depois fazer uma visita de cortesia a D. Maria Antónia de São Boaventura Monteiro Paim. Não que o conde de Oeiras precisasse de pretextos para se fazer receber em qualquer salão do reino, evidentemente, mas, neste particular, o fim pretendido exigia subtileza e era de elementar bom senso ser delicado e agradável com D. Maria Antónia.
Sebastião José de Carvalho e Melo cultivava a imagem de homem austero, de gostos simples. Quem o visse, era a humildade em pessoa, ele que nunca reivindicava a autoridade, senão em nome do rei, e que se afirmava avesso aos grandes luxos e comedido nas despesas. Na sua falsa modéstia, só vestia roupa nacional e desenxabida, e era de tal forma poupado que continuava a fazer-se transportar na mesma carruagem que trouxera de Viena de Áustria há vinte anos!
Dir-se-ia que era tão parcimonioso a gerir o seu dinheiro como a governar as finanças públicas. Nada mais falso, tendo em conta o património discretamente acumulado nos últimos anos. Graças aos expedientes do poder a que recorria para enriquecer, já compensara largamente os apertos financeiros da juventude, tornando-se um dos mais ricos de Portugal.
Ele criara a região demarcada do vinho do Porto, constituída só pelos melhores produtores do Douro, mas abrira uma excepção para a produção das suas vinhas de Oeiras; ele impusera o monopólio dos negócios do Grão-Pará e Maranhão a uma Companhia de que se fizera accionista com proveitos milionários; ele fomentara a indústria nacional para o país ser menos dependente da Inglaterra, como era o caso da Real Fábrica das Sedas, cujos bichos-da-seda eram alimentados com folhas de amoreira fornecidas pela sua propriedade em Oeiras; ele impediu a especulação comercial após o terramoto, mas tornou-se proprietário de vastas áreas de terrenos em Lisboa. Enquanto isso, a nobreza arruinada pelo terramoto abdicava de recuperar os seus palácios.
O estadista levou a simplicidade ao extremo de impor aos artífices da Casa do Risco das Obras Públicas, onde se planeava a reconstrução de Lisboa, que todos os novos edifícios da cidade fossem semelhantes, de linhas sóbrias e práticas, e as ruas fossem largas e quadriculadas.
Sebastião José de Carvalho e Melo pretendia passar a ideia de ser a alma monástica que na realidade não era. Ao tirano que não levantava a voz, bastava-lhe o peso da autoridade que todos lhe reconheciam. De resto, os nobres, os padres e o povo ainda tinham a memória fresca das atrocidades ordenadas pelo impiedoso ministro. E era certo que nenhum fidalgo, sacerdote ou popular quereria irritar o estadista que mandara cortar a cabeça a D. Leonor de Távora e partir todos os ossos do corpo ao marido, aos filhos, ao genro e ao cunhado dessa nobre senhora.
A velha carruagem do conde de Oeiras entrou na Rua Formosa protegida por uma escolta de dragões. Ao longe, ouviu-se a coluna a aproximar-se, pelo som dos cascos dos cavalos na calçada e dos tambores tocados pelo gigante embrulhado numa pele de urso que seguia à cabeça do cortejo. Era um espectáculo de espantar, a passagem daquela guarda montada que se fazia preceder pelo toque marcial.
A reverência e o deslumbramento calaram fundo a Rua Formosa quando a sege do ministro parou em frente à casa de D. Maria Antónia. Os populares em volta do chafariz da praça embasbacaram e, desbarretando-se, fizeram humilde e respeitosa vénia a Sua Excelência.
O conde de Oeiras desceu da carruagem logo que os lacaios lhe abriram a portinhola e baixaram o degrau. Atravessou o passeio e entrou pela porta principal do palacete sem reparar nos populares submissos. Ia pensativo, com uma ideia fixa na cabeça e, como sempre, determinado em conseguir o que pretendia.
D. Maria Antónia esperava-o no salão de visitas, o mais rico da casa. Com 68 anos, era uma mulher altiva. Mas também uma das mais cultas do reino. Exibia a soberba natural de quem herdara do pai uma fortuna descomunal. Era arrogante, severa e solenemente devota, sempre armada com a bíblia debaixo do braço e o crucifixo ao peito. Não obstante, ficava nervosa quando recebia a visita do conde de Oeiras.
O ministro seguiu um criado de libré. Subiu a escadaria central, atravessou um corredor, passou por salas que se repetiam, duplicando o luxo e o conforto de vastos sofás, até chegar ao salão principal onde se recebiam as pessoas de cerimónia. As portas abriram-se de par em par por mãos solícitas enluvadas de branco. Os criados, fardados a rigor, baixaram a cabeça à passagem do ministro, que entrou a passo largo e de braços abertos para a viúva, que lhe estendeu a mão.
— Boa tarde, Dona Maria Antónia! Folgo em vê-la com tão bom aspecto.
Ela fez uma careta sorridente, agradada com o cumprimento.
— Tenho dias, Excelência, tenho dias...
A anfitriã convidou o ministro a sentar-se. Foi servido chá. Andaram ainda algum tempo à roda da saúde e da humidade que tornava tudo muito pior. Mas ele impacientava-se com tanto para fazer e sem vagar para a conversa de etiqueta.
Sebastião José de Carvalho e Melo olhou de relance a sala, para confirmar que estavam sós e de portas fechadas.
— Trago-lhe uma boa nova — anunciou.
— Não me diga! — exclamou ela, entusiasmada. — E o que vem a ser?
— Sua Majestade, El-Rei, nosso senhor, comunicou-me que é da sua vontade conceder o título de terceiro conde de Alva ao herdeiro do seu filho, Dona Maria Antónia. Neste caso, herdeira.
Ela tapou a boca com a mão, maravilhosamente espantada. Era, de facto, uma notícia muito boa!
— Então — exclamou —, quer dizer que está tudo acertado.
— Perfeitamente — disse ele. — Podemos casá-los na Primavera.
— Que seja na Primavera! — Temos acordo?
— Temos acordo.
E assim se selou o futuro de Isabel Juliana e José Francisco. O conde de Oeiras levantou-se, D. Maria Antónia levantou-se, cumprimentaram-se com gravidade. Embora extremamente satisfeito e aliviado com a conclusão do negócio, o ministro despediu-se sem um sorriso e saiu, hirto, solene, apressado.
D. Maria Antónia pôde então respirar mais à vontade. Naquele momento, ela era um misto de emoções e um poço de contradições. Nunca conseguiria relaxar à frente do homem. O homem irradiava poder e ela sentia-se intimidada. O homem era o maior inimigo dos seus adorados padres da Companhia de Jesus. O homem nunca lhe atirara à cara, nem fizera sequer a mais leve menção ou censura por ela ter traduzido a obra do jesuíta João Crasset, mas ela sabia que ele sabia da transgressão. E também sabia que ele optara por passar por cima do assunto porque queria muito casar o filho com a neta dela. Mas passar por cima do assunto não era o mesmo que esquecer e Sebastião José de Carvalho e Melo podia deixar passar, mas nunca esquecia.
De certa forma, D. Maria Antónia sentia que, com o casamento da neta, estava a comprar a sua segurança e a da sua família.
O conde de Oeiras conseguira a anuência do rei para que o título dos condes de Alva voltasse à família dela e, em contrapartida, casava o filho com a herdeira de uma das maiores fortunas de Portugal. Num país com a nobreza arruinada pelo terramoto, não era um feito de somenos.
Por serem ainda muito jovens, os esposos ficariam a morar na casa da Rua Formosa sob a asa de D. Maria Antónia. Mas se, por alguma razão, deixassem de ali viver, ela comprometia-se a pagar-lhes uma renda anual de seis mil cruzados, uma exorbitância que a obrigava a hipotecar os seus bens para garantir a anuidade prevista no contrato de casamento.
D. Maria Antónia tinha um sentimento ambíguo em relação a tudo isto. Não obstante o pavor que o homem lhe causava, havia uma certa vaidade, um certo gozo, por ter acesso ao círculo mais fechado do poder, mais próximo de Sua Majestade. Já imaginava as invejas que o anúncio do noivado iria provocar.
Ali estava ela a sorrir sozinha, deleitada com a perspectiva de ver, em breve, a neta entrar para a família do homem mais influente e mais poderoso do reino, a seguir ao rei, naturalmente. Com efeito, ainda lhe parecia irreal terem chegado enfim àquele acordo. Era um bom negócio para todos, pensou, orgulhosa de si mesma. Para todos, menos para Isabel Juliana, mas isso nem lhe passou pela cabeça.
A menina, que esperava ansiosamente o regresso de Alexandre a casa depois das aulas, estava longe de imaginar tamanho desgosto.
Isabel Juliana e Alexandre tinham um segredo.
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