Intitulada “Continuo a ser aquilo que ninguém espera”, a mostra do seu espólio vai estar patente até dia 18 de agosto na Sala de Referência da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, de acordo com informação no ‘site’ da instituição.
“O meu viver é pintar, desenhar, agatanhar ideias e procurar coisas”, escreveu Mário-Henrique Leiria (1923-1980), e é desta frase, que dá título ao primeiro núcleo da exposição, que parte este universo, pela mão do próprio, através do desenho do “Auto-retrato" e da palavra registada na nota biográfica, em carta aos tradutores Hélia de Medeiros e Joachin Peters.
“A partir daí vão surgindo composições ficcionais de genologia diversa, em simultâneo com a teorização do pensamento estético patente no ‘1.º Manifesto do Sobreporismo’”, descreve a BNP.
É deste modo que se abre caminho à aproximação das atividades da movimentação surrealista em Portugal, de que o autor se considerava um precursor, ainda antes de “qualquer aparecimento de grupos mais ou menos surrealistas surrealizantes ou surrealistas mesmo”, como escreveu na “carta a Mário Cesariny e aos outros”.
A sua produção, neste contexto, integra ‘cadavres-exquis’ feitos com o artista plástico Carlos Calvet e diálogos automáticos, bem como o “1.º Manifesto da Rua da Escola”, “contra as aves de capoeira”, redigido por Mário-Henrique Leiria, ou registos fotográficos da primeira Exposição dos Surrealistas.
O segundo núcleo expositivo, subordinado ao tema “A chateação continua”, parte da ideia de que “objetos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação, poemas, não-poemas, etc. são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer forma exclusivamente plástica”, defendida pelo poeta na “carta a Mário Cesariny e aos outros”.
Assim sendo, este núcleo mostra a coabitação entre linguagem plástica e verbal na obra de Mário-Henrique Leiria, patente na composição de colagens ou desenhos juntamente com recurso à palavra, tornando-os por vezes um só traço, como em “Maternidade”, ou na produção de composições híbridas, apesar da presença permanente da poesia, como é o caso de “Pas pour les parents”, “Climas ortopédicos” ou “Claridade dada pelo tempo”.
“Pois claro que ainda não morri” é o nucelo que dá conta do período em que Mário-Henrique Leiria esteve casado (1958-1961) e permaneceu no Brasil.
Regressado em 1970, só em 1973 vê os “Contos do gin-tonic” publicados, o que o levou a escrever uma carta, ainda hoje conservada no seu espólio, na qual se lê: “entretanto aconteceu-me uma treta: uma editora (a Estampa) pegou-me num monte de papéis e zás, publicou-me um livro (contos amargos, brutais, cruéis, trocistas, avacalhadores, sei lá)”.
Seguem-se depois os “Novos contos do gin”, republicado em 1978 com o acrescento das “Fábulas do próximo futuro”, no qual deixou uma advertência ao leitor: “espera o autor, convicto, que as Fábulas fiquem apenas por fábulas. No entanto, está a pau. Não desiste. Sempre a pau”.
Estas fábulas vão surgindo dispersas, até então, nos jornais Pé de Cabra e O Coiso.
“Imagem devolvida: poema-mito” e “Conto de Natal para crianças” são publicados em 1975, o mesmo ano em que é editado “O mundo inquietante de Josela: fragmentos”, com ilustrações de Cruzeiro Seixas.
No ano seguinte, saem os “Casos de direito galático” e, em 1979, “Lisboa ao voo do pássaro”, em coautoria com João Freire.
As peças do espólio de Mário-Henrique Leiria vão poder ser visitadas nesta exposição, dedicada ao artista que se definia como “um resto definitivamente avariado de homem em zanga permanente, com um riso discretamente amargo de vez em quando e um olho sempre disposto à troça solitária”, como escreveu, numa carta dirigida ao poeta Luís Amaro, antigo responsável pela revista Colóquio/Letras.
Mário-Henrique Leiria é o mesmo homem que, numa carta a Mário Cesariny, disse ter “escritos vários acumulados por todos os cantos mas, com grande desgosto da dignidade oficial, não é nada que se preste a tornar os homens mais felizes e mais gordos”.
Poeta, escritor, tradutor, pintor, crítico de arte e editor, Mário-Henrique Leiria envolveu-se ativamente no Grupo Surrealista Português entre 1949 e 1951.
Estreou-se individualmente em livro com os “Contos do Gin Tónico”, em 1973, mais de 20 anos depois de ter começado a participar nas manifestações públicas e coletivas do Grupo Surrealista Dissidente, do qual faziam parte outros vultos daquela corrente artística, como Mário Cesariny e António Maria Lisboa.
No ano seguinte, publicou “Novos Contos do Gin”, e estes dois volumes acabariam por fazer de Mário-Henrique Leiria um dos autores surrealistas portugueses de culto, tendo somado várias reedições.
Nascido em Cascais, em 1923, estudou na Escola Superior de Belas Artes, tendo sido expulso em 1942 por motivos políticos.
Foi preso pela PIDE e acabou por se exilar, em 1962, no Brasil, onde desenvolveu várias atividades, entre as quais a de encenador e de diretor literário da Editora Samambaia.
Em 1970, regressou a Portugal, onde colaborou em vários jornais, com pequenos contos.
Teve um final de vida difícil, a viver em casa da mãe, na pobreza e com uma doença óssea degenerativa. Morreu em 1980, aos 57 anos.
As obras completas de Mário Henrique-Leiria foram publicadas recentemente pela e-primatur, cujo último volume é um álbum a cores de capa dura com toda a sua produção iconográfica, editado em maio de 2022.
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