“Aurora” foi gravado entre Lisboa e Barcelona, e esteve para sair no ano passado, tendo sido adiado devido à pandemia.
“Decidimos adiar o álbum, pois que direito eu tinha para falar de mim, pensar no meu umbigo, numa altura em que tentávamos sobreviver”, disse a fadista à agência Lusa, que reconheceu, neste período de confinamento, ter tido saudades do ambiente do palco, “do público, dos colegas, das pessoas que preparavam o palco, conhecer os técnicos dos espaços onde ia cantar”.
Gisela João afirmou que “têm sido tempos muito duros para a cultura”, um dos setores mais penalizados.
O tema que abre o disco, “Tábuas do Palco”, na melodia do fado menor, com arranjos de Michael League, explica essa sua forte ligação aos ambientes do espetáculo.
“A Capicua [autora do poema] compreendeu muito bem a minha forma de estar, e deu-me este poema já há algum tempo”, contou.
“Tábuas do Palco I” é assinado por Capicua, a quem não regateia elogios, apontando-a como uma das “que melhor escreve”, pela “capacidade de contar uma história” e este tema surge em três momentos do álbum, como que o tripartindo.
Gisela João explica: “O CD está conceptualmente pensado, há um primeiro momento que corresponde à porta, à entrada no espaço, conhecendo-o, há depois o palco propriamente dito, onde surgem as nossas vivências, memórias, e um terceiro momento” que termina no “Tábuas do Palco III”, também no fado menor com arranjos de League, e o poema de Capicua, autora que cantou nos seus dois álbuns anteriores, “Gisela João” (2013) e “Nua” (2016).
Gisela João assina o poema de “Canção do Coração” e a música em parceria com Justin Stanton, e também o poema de “Budapeste”, com música, igualmente sua em parceria com League.
Esta foi “uma experiência nova”, que lhe deu um “melhor conhecimento do fado”.
No tocante às palavras, a fadista prefere falar em poemas e não em letras.
Os outros autores que canta são a dupla João Monge/António Zambujo, Carlos Paredes, José Fialho Gouveia, Maro, Hernâni Correia, Marco Pombinho e Jorge Cruz.
A fadista disse à Lusa que o processo de conceção do álbum começa por “juntar todas os poemas, muitos, mesmo”, seguindo-se a escolha, trabalhar as músicas, depois os tons em que os vai cantar, até “ter a ideia da história que o álbum vai contar”.
“Tenho que me sentir naqueles temas, enquanto pessoa, ver como vai soar, se sou capaz de servir o propósito daquela canção, reconhecer os silêncios, saber dosear os tempos, não dar um nota alta onde não é preciso, nem tudo deve ser interpretado nesse tom, há versos que ganham muito mais num tom menor, e os silêncios não podem ser excessivos ou em excesso, tudo deve ter uma conta certa”, argumentou Gisela João referindo que “o mais importante é a canção” ela é que vai sobreviver, “ela é que importante”.
“Aurora”, disse, “será talvez o [álbum] mais intimista” que fez, e acrescentou: “Gosto tanto do nome Aurora e o que ele significa, primeira luz da manhã, renovação, rejuvenescimento que se um dia tiver uma filha vou chamar-lhe Aurora”.
Gisela João afirmou que faz o seu próprio caminho, e reconheceu que este álbum “é mais tecnológico, e havia que passar para esses instrumentos, esse sentimento de que é feito o fado”, o que constituiu um desafio.
Entre outros temas que compõem o álbum, Gisela João referiu-se a “Não fico para dormir”, de José Fialho Gouveia, com música composta por Magda Giannikou e Michael League. “A música foi feita durante um jantar, mudámos até o piano para a cozinha, e tem tudo a ver com a área da cultura, com o que faço, a minha família, quem está comigo, a minha casa, sabem que venho, estou, mas não vou ficar. Não sou só deles, tenho outra coisa à qual pertenço, que é a Arte”.
Outro tema referenciado, “Vai”, de Maro e Michael League, “é uma canção de amor, mesmo quando ele está a desaparecer”. “A capacidade, ainda amando o outro, e por isso mesmo, libertá-lo e deixá-lo partir, por muito que isso nos custa, mas é mais uma demonstração desse amor, e este tema fala disso”, disse Gisela João.
Sobre o álbum, o escritor Gonçalo M. Tavares afirma que “há abandono, melancolia e perda amorosa, desistências e mudanças decisivas, mas também a vibração feminina que dá uma resistência diferente às letras do fado”.
O escritor faz notar que “as ‘tábuas do palco’, de Gisela João – tema que percorre todo o disco – por vezes salvam um corpo inteiro, outras vezes sacrificam-no. Mas as tábuas do palco são sempre essenciais. Do chão, quem canta espera sempre muito – espera tudo ou quase tudo”.
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