Nos bastidores da Revolução
Se a partir de certo ponto da História nos tínhamos rendido às alegrias do copianço, porquê agora o frenesi com a república, quando até a Espanha se voltara a agarrar às saias do rei? Pois bem, porque os franciús, que eram “muito à frente”, eram uma das duas excepções republicanas numa Europa de reinos e os tugas eram uns dos seus mais embasbacados e sabujos stalkers. Tanto que havia quem dissesse, de monóculo entalado no olho, que Portugal não passava de um país “traduzido do francês em calão”. Ora se os ditos franciús, que desde a Revolução já tinham experimentado de tudo – monarquia, república, império –, tinham resolvido assentar arraiais na república, e se na checklist dos republicanos portugueses estava já um “Regicídio: check”, porque não seguir‐lhes as pisadas? Mas pairava uma pergunta: O que é que ainda ali fazia o puto D. Manuel, que nem reinar sabia?
Afonso Costa, de seu modesto nome maçónico “irmão Platão”, continuava empolgado com a vitória do Partido Republicano em Lisboa: quanto mais merda o imberbe príncipe‐rei fizesse, melhor. O pobre rapazinho, de dezoito anos apenas, ainda atordoado pelo assassinato do pai e do irmão que o atirara para aquela embrulhada, demitia João Franco, chamava uma junta de Salvação Nacional e dava em ser brando, tolerante e suave, qual amaciador Soflan. Isto num tempo em que a roupa, de tão encardida, pedia uma barrela vigorosa, e os republicanos não paravam de o mandar ir dar banho ao cão. Entretanto o pequeno só rezava para que os tugas olhassem para Espanha e vissem o bordel em que aquilo se transformara na Primeira República, a ponto de nuestros hermanos, com o concurso para rei de Espanha praticamente cancelado por falta de comparência, se terem visto obrigados a chamar à pressa um rei estrangeiro.
Por cá, o nosso Afonso Costa não parava quieto. Era um homem empreendedor, determinado, garboso e vaidoso, um espertalhão que não punha pé em ramo verde, nem pé fora de casa sem se enfiar numa casaca, arrebitar as pontas do bigode e empoleirar um chapéu alto no topo do cocuruto. Formara‐se em Direito em Coimbra, era um advogado bem‐sucedido, um professor universitário respeitado e tinha um paleio que alto lá com ele. Queria, acima de tudo, o bem da humanidade, e sonhava já com o dia da solução final:
“Só haverá um futuro feliz para a humanidade, quando for enforcado o último rei nas tripas do último papa.”
Doesse a quem doesse (de preferência a realistas e papistas), havia de ser ele a libertar o povo português do odioso jugo monárquico‐clerical. Separando o Estado da Igreja – missão para a qual se achava especialmente vocacionado, até porque era o único com tomates para a levar a cabo –, a religião católica não duraria mais de uma ou duas gerações e o povo poderia, enfim, respirar e tomar em mãos o seu destino.
Mas havia que ir por partes: triturar a Igreja, “esmagar a Infame”, sem dúvida (não era a Igreja a grande dealer do ópio que mantinha o povo resignado, ignorante e esparvoado?), mas dar voz ao povaréu, no estado em que se encontrava? Aí era preciso ir com calma. Não ia ser a arraia‐miúda, que pouco mais sabia do que contar ovelhas, plantar batatas, sujar‐se de fuligem nas fábricas, balbuciar rezas e pescar umas quantas sardinhas, a decidir, pelo voto, os superiores destinos da nação. Ou pelo menos não antes de ser devidamente esclarecida por uma vanguarda esclarecida.
Quanto às mulheres, era melhor para todos que permanecessem no recato do lar, não fossem os padrecos confessá‐las na hora de ir a votos. Não que não existissem mulheres com voz e com estudos, mulheres lutadoras, respeitáveis e até respeitadas, mas pô‐las a votar, elegê‐las para o que quer que fosse? Era bom que esperassem mais uns aninhos para que, então sim, pudessem escolher pelo voto... um homem que mandasse nelas.
A situação no que dizia respeito à instrução do povo não era, de facto, brilhante: sete em cada dez tugas eram analfabetos; havia professores a darem três erros de ortografia por palavra; só havia escolas, quase todas masculinas, de vinte em vinte quilómetros, e duas em cada dez paróquias continuavam sem escola. E se havia liceus em todas as capitais de distrito, fora delas, népia.
Foram precisos dois anos a trabalhar e a conspirar no duro para que Afonso Costa e o directório republicano, animados com o apoio que tinham entre a burguesia das grandes cidades e contando com os carbonários, o braço armado do Partido, montassem a armadilha perfeita para acabar com os séculos de atraso a que o trono e o altar tinham vindo a condenar o povo.
Entre 3 e 5 de Outubro de 1910, a armada estava no Tejo, mais ou menos controlada; a artilharia, relativamente a postos, o telégrafo, pronto a telegrafar a boa nova de Lisboa para o resto do país, e malta amiga já se instalara numas simpáticas barricadas montadas na Rotunda, a virar frangos na grelha e a esvaziar garrafões de tintol, enquanto não vinha o serrabulho. Entretanto, nos banhos medicinais de São Paulo, ao Cais do Sodré, o grosso dos cabecilhas republicanos, suponho que imersos em espuma e sais perfumados para poderem assomar mais cheirosamente à varanda da Câmara, esperavam que o regime caísse de podre e não resistisse muito.
Em Lisboa, colunas militares em marcha nocturna procediam a manobras que presumo arriscadas, mas em que não me vou meter; ao largo, os navios de guerra Adamastor e São Rafael deslocavam‐se, pé ante pé, para a frente do Palácio das Necessidades, enquanto umas poucas centenas de militares e civis armados seguiam para a Rotunda. Marinheiros; operários, maçons e carbonários, todos sabiam a senha – “passe cidadão” –, e às cinco da madrugada de 5 de Outubro entrincheiraram‐se na Rotunda, chefiados por Machado Santos, barricando a entrada da Duque de Loulé, da Fontes Pereira de Melo e da Avenida.
Os pouco fogosos defensores de El‐rei lá iam abrindo fogo, com as baterias de Queluz, contra os da Artilharia Um. O bravo Paiva Couceiro, chamado à pressa, resolveu vir calmamente de comboio, de Cascais, e depois seguir a pé, para não quebrar a rotina diária. De improviso em improviso e de desmotivação em desmotivação, ficou o pobre General sem munições, e quando se enervou a sério, já “a guerra” estava a fechar. Houve poucos mortos (entre eles um padre, para dar o tom) e os mártires republicanos foram acidentais, mas renderam muitas ruas – o médico Miguel Bombarda foi assassinado por um doente e o Almirante Cândido dos Reis suicidou‐se quando viu a coisa malparada.
E assim pôde a Senhora República, de vitoriosa bandeira em riste, desfilar bem viva e em ousado top‐less (modelo ainda hoje invejado por muita portuguesa entradota, desejosa de uma revolução capaz de contrariar o efeito da gravidade).
Foi nesse dia que os republicanos tomaram consciência de que tinham nascido com o rabo virado para a lua. É claro que as mulheres tiveram um papel crucial em todo este acontecer, ora como inspiradas e inspiradoras figurantes – caso da desnuda Senhora República e de uma heroína popular, Amélia Santos, que se jun‐ tou, em armas, aos revolucionários da Rotunda e fez capa de jornal –, ora como briosas e atarefadas bordadeiras da bandeira que agitava a galdéria da República, caso de duas moças médicas, Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete.
Nas 48 horas que antecederam a Revolução, nos bastidores de uma sala de costura, Beatriz e Adelaide aplicaram os seus talentos a bordar as vinte primeiras bandeiras verde‐rubro, as cores do Partido Republicano, conforme as desfraldadas no malogrado “trinta e um” que tinha havido no Porto. A estética e o simbolismo do que viria a ser a bandeira nacional, debatida depois, ao longo de todo um ano, por uma comissão (como não), ainda havia de dar muita merda, com ofensas, insultos e amuos à mistura. Guerra Junqueiro, por exemplo, amuou (e não era para menos).
Mas regressemos por uns segundos aos negligenciados, conquanto decisivos, bastidores da revolução:
Lisboa, Sala de Costura, 3 a 4 de Outubro.
Tropas: Beatriz Ângelo e Adelaide Cabete;
Armas: tesoura, linha e dedal;
Hino:
Ai chega, chega, chega, chega, ó minha agulha,
Afasta, afasta, afasta, afasta, ó meu dedal
Brejeira não sejas trafulha
Ó não! És a mais bela fresca agulha em Portugal!
Pensavam as jovens médicas nos irmãos barricados na Rotunda, prontos a morrer gloriosamente pela República e pela Liberdade, mas pouco dispostos a alombar com o trabalho de sapa e a arriscar os dedos e os olhos na tarefa insana que tinham em mãos e que havia de resultar no bordado mais importante da História (depois do astucioso borda e desborda de Penélope e até ao astuto crochet de Joana Vasconcelos).
Quem também não dormiu nada bem naquelas vésperas, embora não andasse a costurar para fora, foi D. Manuel II. Antevendo que algo de terrível se ia passar, o pequeno escondeu a espingarda debaixo do colchão e acabou por acordar estremunhado com o ruído de um tiro disparado de um navio, cuja bala se viera alojar na parede da sala. Após alguma indecisão, foi coisa de instantes até que o último dos Braganças reinantes fizesse as malas e abalasse para casa dos condes de Mafra, com D. Amélia ainda num caco com a morte do marido e do filho e, agora, com tudo aquilo. E lá partiram, pela fresca, da Ericeira rumo a Inglaterra, à boleia dos bifes, sempre prontos a embarcar reis tugas. D. Amélia ainda chegou a voltar uns bons anos depois, mas já de carreta.
Por fim, a boa notícia: mais um feriado – 5 de Outubro de 1910, Dia da República. E depois do fim, as más notícias: adeus feriados religiosos, cancelados por decreto uma semana depois. Agora haveria só cinco dias de “folga nacional”: o 5 de Outubro, evidentemente; o 1.º de Janeiro, Dia da Fraternidade Universal; o 31 de Janeiro, em memória do malogrado “trinta e um” republicano no Porto, em 1891; o 1.º de Dezembro, de bueno recuerdo, Dia da Independência e da Bandeira; e o 25 de Dezembro, rebatizado como Dia da (profana) Família.
Setecentos e setenta e sete anos depois da vitória de D. Afonso Henriques em Zamora (a 5 de Outubro de 1143, talvez pelas 11 da manhã), no mesmo exacto dia do mesmo exacto mês e vamos crer que pela mesma exacta hora, José Relvas, Afonso Costa e o resto da boys band republicana proclamavam solenemente a instauração da República em Portugal da varanda da Câmara Municipal de Lisboa... para as três ou quatro pessoas que estavam lá em baixo, na Praça do Município (é ver a fotografia de Joshua Benoliel, que, esse sim, como competente fotojornalista, estava lá):
“Viva a República Portuguesa! Enfim! Redimida, Gloriosa, Vitoriosa! A Pátria a caminho do futuro, viva o Povo Português!” E cantaram A Portuguesa, à grande e à francesa, enchendo os pulmões de Modernidade e Liberdade e refrescando a goela com uma eventual flûte de champagne, que em breve se compraria com Escudos e já não com Réis.
Este acto solene repetir‐se‐ia na varanda dos Paços do Concelho todos os dias 5 de Outubro, entre gritos eufóricos de “Viva a República” e “Viva a Ordem e o Trabalho”, mas já com os lá de cima instalados no poder e com povo que se visse a aclamá‐los cá em baixo. Finalmente o povo – para quem, mas não exactamente por quem, a revolução tinha sido feita!
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