Um
Um Quest não pode confiar em ninguém neste mundo — exceto num Quest. Portanto, quando um Quest, particularmente a Mamã Quest, me manda enroscar-me como um Twizzler enrolado num pretzel dentro de um armário tão pequeno que seria ilegal meter um cão numa casota do mesmo tamanho, eu confio que ela tem uma boa razão para me ter dado essa ordem. Ou que, pelo menos, seja lá o que for que vou roubar vai valer a pena.
Se eu fosse uma pessoa normal, as minhas pernas estariam em coma neste momento. Mas suponho que o treino intenso de flexibilidade a que a minha mãe me tem submetido vem mesmo a jeito para trabalhos como este.
Eu estava encafuada aqui dentro, na parte mais isolada da mansão, há cerca de três horas, a ver o meu Insta anónimo. Nos últimos meses, espreitar para contas sobre a vida em residências universitárias tornou-se mais viciante do que as séries coreanas na Netflix.
Quando a bateria do meu telemóvel chegou aos vinte por cento, à meia-noite, tive de parar. A mãe tinha-me avisado que não devia usar o telemóvel para coisas irrelevantes — se não recebesse a mensagem dela, estava lixada. Portanto, em vez disso, pus-me a tamborilar impacientemente com os meus dedos enluvados até o ecrã do telemóvel se iluminar.
ATTN: Rosalyn Quest, Convite para Gambito
Mas não era a mensagem da mãe — um e-mail? Um daqueles cursos de verão de ginástica ter-me-ia finalmente respondido? Ou aquele de claques de competição? Há uns dias, a meio da noite, quando a nossa casa me parecia muito solitária e a ideia de passar umas semanas num campus universitário movimentado com pessoal da minha idade era extremamente apelativa, enviei e-mails a vários cursos de verão de universidades para alunos do secundário. Ainda não tinha tido nenhuma resposta. Começava a preocupar-me que tivessem descoberto que os documentos necessários para a inscrição tinham sido freneticamente falsificados por mim.
Apareceu uma notificação de mensagem antes de eu ter tempo de desbloquear o ecrã. Dessa vez, era da mãe. Quase como se ela tivesse adivinhado o que eu me preparava para ler e estivesse a enxotar-me a mão com uma palmada virtual.
É a tua vez.
O e-mail teria de esperar.
Entreabri a porta do armário e enfiei os dedos por baixo, aliviando o peso das dobradiças para elas não chiarem. Um truque simples, mas que conhecia desde que ainda não sabia escrever o meu nome. Espreitei rapidamente para fora.
O corredor estava deserto. Segundo a operação de reconhecimento da mãe, esta ala costumava estar vazia; ela e as outras criadas passavam a maior parte do tempo a limpar o pó a jarrões na galeria particular na outra ala. Aqui, havia menos medidas de segurança.
Avancei pé ante pé pelos quartos da mansão, com camas de dossel intocadas, estantes quase sem livros e consolas vazias. O silêncio devia ser perturba- dor, mas eu estava habituada a casas solitárias. Se pestanejasse durante muito tempo, poderia pensar que estava de regresso à nossa casa em Andros.
As plantas da casa, que eu tinha memorizado, levaram-me por uma zona de estar no primeiro andar, em que uma cómoda pejada de retratos emoldurados me chamou a atenção. Nenhuma das outras divisões tinha algo tão... pessoal.
Peguei na moldura mais afastada. Um grupo sorridente de jovens universitários a posar nos degraus de um edifício de tijolos vermelhos. No canto inferior, a preto e numa letra bem desenhada: Primeiro Ano.
Recordações. Relações. Eu podia roubar a fotografia, mas não podia levar recordações e relações. Se as queria, teria de as obter. Longe de casa. Longe da mãe.
Um som baixo fez com que me imobilizasse.
Pousei a fotografia e baixei-me atrás de um sofá. Acocorada, desenrolei a minha arma preferida. A família Quest não é fã de armas de fogo — não são sorrateiras. A mãe traz sempre uma navalha, e, segundo ela, em tempos, a avó teve uma coleção de seringas com sedativos de ação rápida que ela conseguia aplicar como especiarias usadas por um chef de um restaurante cinco estrelas.
Como eu suspeitava que não teria estômago para enfiar uma lâmina — ou uma agulha — na carne de alguém, tinha optado pela pulseira do meteorito. O comprimento dos elos é fácil de enrolar à volta do pulso e o peso do metal do tamanho de uma cereja na ponta adere a um anel com íman no meu dedo médio. Passa despercebido com mais facilidade em controlos de segurança do que um instrumento cortante, e, nas minhas mãos, igualmente eficaz, embora não tão final como uma faca.
Os passos aproximavam-se. Afinal, sempre havia segurança.
Quando me levantei para enrolar a corrente à volta do pescoço de alguém, contive uma gargalhada. Uma gata linda saltou para a parte de cima do sofá. Uma siamesa com pelo da cor da areia, que parecia ter enfiado as patas e esfregado o focinho em cinzas. Piscou-me os olhos de um azul vibrante e, de seguida, saltou para a carpete e ronronou, esfregando-se entre os meus pés. Voltei a enrolar a pulseira à volta do pulso e cocei-lhe a parte de trás das orelhas. Ela pôs-se a miar e deitou-se de costas. Acabei de a deixar muito feliz. Quando eu era pequena, fartava-me de ver vlogues sobre a adoção de animais de estimação enquanto a minha mãe estava ausente em trabalhos mais demorados. Isso foi antes de me capacitar de que nada que não tenha o sangue dos Quests a correr-lhe nas veias alguma vez poria o pé na nossa casa — incluindo animais.
Os gatos siameses são populares porque são lindos de morrer, mas também se sentem sozinhos com muita facilidade. Sem companhia, tendem a morrer cedo. Eu tinha o pressentimento de que o proprietário desta casa isolada não pensava muito em arranjar um amiguinho para a sua gata.
Quando continuei a andar, a gata seguiu-me, a agitar a cauda, toda contente. Empurrei-a para a afastar. Por muito gira que fosse, arranjar uma parceira felina não fazia parte do plano. Virei-me e desatei a correr. Umas portas de vidro separavam o corredor seguinte do anterior. Fechei-as antes de a gata poder passar. Ela miou num tom suficientemente baixo para me partir o coração antes de disparar como uma seta na direção oposta.
Livre dela, voltei a abrir as portas para o caso de algum segurança passar por ali e reparar na diferença.
A minha planta mental da casa conduziu-me a uma divisão com as cortinas abertas. As estrelas e a lua do Quénia emprestavam luz suficiente para ver como o quarto era convencional. Mobília em bom estado. Arte de bom gosto nas paredes. Uma cama na qual nunca ninguém tinha dormido. Outro quarto para fantasmas.
Um jarrão solitário estava pousado em cima da mesa de cabeceira. Porcelana do período Qianlong, de cerca de 1740. Valor estimado: irrelevante. O único preço que importava era a quantia que o nosso cliente oferecia para o tirar da coleção do seu rival. Há uma semana, este jarrão tinha estado exposto na galeria privada no outro lado da mansão.
Até a minha mãe começar a trabalhar aqui como criada.
Ela chamou a este trabalho o Quebra-Cabeças. Peça a peça, trouxe, à socapa, para dentro da casa uma réplica em pedaços, que encaixou uns nos outros. Para alguém tão habilidoso como a minha mãe, trocar o verdadeiro pela falsificação era uma brincadeira de crianças. Infelizmente, o proprietário preocupava-se — com razão — com roubos. Os seguranças revistavam o pessoal todos os dias quando eles se iam embora. A mãe podia mudar o jarrão de lugar dentro da casa, mas não ia conseguir tirá-lo de lá.
Essa era a minha missão.
Arrastei de baixo da cama a mala que a mãe tinha deixado lá. O interior almofadado era perfeito para amortecer choques. Uma dica de profissional: se não tem uma maneira de tirar o seu produto de algum sítio sem o danificar, não se dê ao trabalho.
Algo chocalhou dentro do jarrão quando peguei nele. Quando o inclinei, uma fieira de diamantes caiu na palma da minha mão. Revirei os olhos. A mãe tem tantas pulseiras de diamantes que poderia ser avistada de Marte se as usasse todas. Quando eu perguntava porquê, ela respondia simplesmente: I?orque nato! Um ponteiro laser tinha sido colocado no lado da mala. Dirigi o feixe de luz para o sensor de movimento que se encontrava num dos lados da janela. Um facto interessante sobre os sensores de movimento é que se pode desativar a maioria com um ponteiro laser de cinco dólares comprado na Amazon. Eles só detetam movimento quando alguma coisa interfere com o feixe de luz que os liga entre si, portanto, assegurei-me de que pareceria que aquele feixe de luz sempre estivera ali, mantendo o meu laser apontado diretamente ao sensor enquanto me esgueirava. As coisas simples são as que resultam melhor. Eu teria tido mais dificuldade se eles tivessem fechado a janela com a ajuda de uns pregos. Um pouco mais de dificuldade.
Em cerca de sessenta segundos, já tinha saído dali, estava no parapeito da janela, como uma Rapariga-Aranha. Entalei a mala entre as coxas e preparava-me para fechar a janela quando algo irrompeu no quarto.
Algo desesperado por sair.
A gata passou por mim com um salto, lançando-se para o relvado. Aterrou, bem, como um gato. Graças a Deus, eu ainda tinha o laser apontado ao sensor, ou aquilo não teria sido lá muito bom para mim.
A gata miava ininterruptamente, a implorar-me que descesse e fosse brincar com ela. Era persistente, disso não havia dúvida.
Depois de fechar a janela, escalei a parede de tijolos até à câmara que estava posicionada de frente para o relvado. Tinha dez segundos para impedir que se deslocasse na minha direção. Não havia tempo para subtilezas. Arranquei o maior dos dois cabos que a ligavam à parede. A câmara parou a meio do seu semicírculo, paralisada até alguém vir consertá-la. Esperava que isso só acontecesse quando eu já estivesse bem longe.
A gata continuava a miar como uma desalmada.
— Está bem, já vou — disse eu.
E agora estava a falar com gatos. Mas a câmara, que apenas gravava a imagem — a mãe tinha obtido os números de série das câmaras para podermos procurar as suas especificações antecipadamente —, não poderia ouvir-me.
Saltei para o chão. A gata voltou a esfregar-se nas minhas pernas. Como podia resistir-lhe? Com a mão que tinha livre, agarrei-a e deixei-a encostar-se toda derretida ao meu peito.
Dirigi-me rapidamente para os corta-relvas industriais que aguardavam em fila, prontos para a manhã seguinte. O pequeno compartimento de um metro e vinte por sessenta centímetros que havia por baixo do assento do condutor, logo acima do motor e atrás dos sacos de fertilizante, ia ser a minha suite nas próximas horas.
Olhei para o horizonte, onde ondas de relva da savana e de árvores combretáceas se encontravam com o céu salpicado de estrelas. Em momentos como este, compreendia por que razão a minha família estava apaixonada por esta profissão itinerante há três gerações.
Mas não eram sempre noites estreladas e brisas frescas.
— Sabes que não te posso levar comigo. — A gata fez um som semelhante a um estalido quando a cocei acima da cauda. — Pelo menos tens uma vista bonita, não tens?
Ela miou, e talvez eu estivesse a passar-me, mas pareceu-me língua de gato para: «Estás a falar a sério?» Pousei-a e empurrei para o lado os sacos de fertilizante antes de me enroscar dentro daquele espaço, mantendo a mala contra o peito. Tudo cheirava a gasolina e a moto. Mas que assim fosse. A mãe dir-me-ia para pensar num portátil novo. Em tranças de quinhentos dólares. Em ténis feitos à medida que ninguém a não ser ela e a titi alguma vez me veriam usar. Puxei os sacos de fertilizante para o seu lugar, mas a gata insinuou-se por uma abertura minúscula entre dois deles. Instalou-se em cima do meu peito, ainda a ronronar e a miar.
— Queres que eu também te roube, é isso?
Lambeu-me a face. OK, ela podia ficar. Durante algum tempo. Perguntei a mim mesma quanto tempo é que o seu dono demoraria a dar pela falta dela se eu a roubasse.
Do meu esconderijo, entrevi um lampejo de luz. Não, de duas luzes? Andava alguém a patrulhar o relvado. Tinham chegado mais cedo... Será que alguma coisa tinha feito disparar um alarme? Teriam reparado na câmara de videovigilância?
O ronronar da gata soava como uma ventoinha elétrica. Eu queria silenciá-la, mas como se manda calar um gato?
Estendi a mão para desenrolar a minha pulseira. Parecia que eles estavam a aproximar-se de mim. Como raios é que ia atirar-me para fora deste sítio suficientemente depressa para poder saltar-lhes em cima?
Bolas.
— Nala... — Um homem deu uns estalidos com a língua. Umas bolinhas chocalharam num frasco. — Onde é que estás, malandrinha?
Bolas a dobrar.
Tentei empurrar a Nala para fora do esconderijo, mas ela voltava a saltar para cima da mala, a ronronar sem parar e a miar.
Mas então lembrei-me de outra coisa sobre os gatos siameses. Também são a raça de gato mais ruidosa.
— Consigo ouvi-la — disse a voz de outro homem. — Como é que ela veio cá para fora?
— Não faço ideia. A estúpida desta gata anda sempre a tentar fugir. Vamos metê-la num armário até o Patrão voltar — resmungou o outro tipo.
Com todo o meu ser, desejei que a Nala ficasse em silêncio. Porque é que ela não tinha simplesmente fugido quando escapou pela janela? Já podia ir longe, se quisesse. A ideia de ela ficar em pânico dentro de um armário durante dias ou semanas deu-me voltas à consciência. Se ela se mantivesse em silencio, eu levava-a comigo. Que se lixasse o que a mãe queria.
Mas não havia maneira de ela ficar em silencio. E eles estavam a aproximar-se.
Desculpa, Nala. Torci o braço para tirar o laser do bolso traseiro. Fiz incidir o pequeno ponto vermelho na mala, o que fez com que os olhos dela se dilatassem e os seus músculos se retesassem instantaneamente. Reflexos de gato: ativados. Os feixes da lanterna desviaram-se dos corta-relvas por uma fração de segundo e, sentindo-me pior do que esperava, fiz incidir o laser na parede da mansão. A Nota saiu disparada e atravessou o relvado a correr na direção do ponto de luz, diretamente até à linha de visão dos seus perseguidores.
— Já a apanhei!
Os bufos desesperados da Nala encheram a noite. Estava a dar luta, mas já tinha perdido. As luzes das lanternas desvaneceram-se. Tudo se desvaneceu, menos a minha respiração baixa.
Detestava o que tinha feito àquela gata. Mas ela já devia saber que não se pode confiar verdadeiramente em ninguém.
Dois
As primeiras palavras que saem da boca da mãe depois de um trabalho nunca são: «Estás bem, Ross?» São: «Conseguiste?»
Rolei para fora do corta-relva, aterrando diretamente aos pés da mãe. Pouco importava que estivesse quase a morrer de exaustão devido ao calor e que o cheiro a gasóleo quase me tivesse sufocado durante a última meia hora, desde que o corta-relva tinha sido posto a trabalhar. Eu estava bem. Se estava viva e com ela, estava bem. O alvo era a coisa mais importante.
— Olha só para a minha bebé, a ser exemplar e tudo — disse a mãe, abrindo a mala e examinando o prémio. Não parecia nada ela, disfarçada com o macacão de jardineira. Muito diferente do seu habitual ar polido de má da fita da ilha, mesmo quando pegou na pulseira de diamantes e a enfiou no pulso.
A mãe suspirou, a olhar para a maneira como os diamantes da pulseira dançavam à luz do sol matinal. Eu tinha de admitir, os diamantes ficavam-lhe bem. Ela tinha um tipo de beleza exótico e sofisticado. Tranças compridas e pestanas postiças de bom gosto. Ancas cheias e uma cintura fina que ela adorava acentuar — o oposto do meu corpo esguio. O seu estilo era dramático, não do tipo casaco de peles e sapatos de salto-agulha, mas o suficiente para atrair sempre olhares de admiração quando íamos a algum lugar onde ela pudesse realmente pavonear-se.
Daí a sua predileção por diamantes. Por tudo o que a pudesse fazer brilhar ainda mais.
A mãe deu-me um beijo rápido na testa. Cheirava a relva cortada e a gasóleo, mas eu devia cheirar pior.
— Exemplar como a minha mamã — repliquei, porque sabia que ela adoraria ouvir aquilo, e saltei para o banco do condutor, deixando também algum espaço para ela. Com um sorriso de contentamento, talvez mais por causa do meu cumprimento do que pelo trabalho bem-sucedido, ela ligou o corta-relva e dirigimo-nos para os limites da propriedade, onde nos esperava um jipe todo-o-terreno, água e ar condicionado suficientemente frio para me fazer trazer lágrimas aos olhos com gratidão.
Encostei a testa a saída de ar condicionado do jipe.
— Podemos ir para um lugar mais fresco na próxima vez. — Ao volante, a mãe olhou para a minha veneração do ar frio. — Talvez para o sul da Argentina. Ou para os Alpes, que me dizes?
— Acabámos literalmente de sair de um trabalho. Já para não mencionar os Boscherts. — Ouvira dizer que eles não tinham ficado nada satisfeitos com os nossos últimos trabalhos na Dinamarca e em Itália, que os tinham destro- nado da sua posição não oficial de domínio do mercado da ladroagem de alto nível na Europa. No mundo dos impérios familiares de ladroagem, apenas podia haver uma figura de topo, ou, pelo menos, uma por continente.
Afastei-me da saída do ar condicionado e pus o telemóvel a carregar. O olhar de soslaio da mãe era reprovador. Estávamos a ter uma conversa, portanto, eu devia estar a prestar-lhe atenção.
— Ainda bem que preferíamos ser apanhadas a roubar joias de fantasia a importarmo-nos com o que os Boscherts querem. — Ergueu-me uma sobrancelha perfeitamente desenhada, portanto, fiz-lhe o aceno de cabeça que ela pretendia.
A faísca de uma ideia acendeu-se na minha mente.
— Quero dizer, se te interessa que arranjemos mais trabalhos na Europa, faria sentido ter alguém lá para estabelecer contactos. Se eu frequentasse uma escola durante algum tempo, como disfarce, talvez fosse uma boa oportunidade?
Sustive a respiração. Provavelmente, havia maneiras mais diplomáticas de eu abordar outra vez o assunto de sair de casa. Em toda a minha vida, nunca tinha estado em nenhum lugar sem a mãe ou a titi, e já tinha estado em muitos lugares. Pensei que, quando fiz dezassete anos, há uns meses, quando outros miúdos das Baamas acabam o secundário, ela começasse a ser menos... sabem o que quero dizer.
Hum... talvez não. — A mãe olhava em frente, para a estrada vazia e para a erva da savana. Esperei por um esclarecimento.Por uma razão, qualquer coisa. Em vez disso, ela disse:
— Quando voltarmos, vamos descontrair e ver umas tretas quaisquer na televisão durante uma semana inteira, hum, querida?
— Parece-me fixe — afirmo, forçando um sorriso.
Satisfeita, escolheu uma playlist no telemóvel e aumentou o volume. O meu ecrã brilhou. Um e-mail. De um dos cursos de verão.
Desviei o telemóvel, afastando-o da mãe, e li:
Cara Rosalyn,
Agradecemos o teu pedido de inscrição no nosso Campo de Férias de Ginástica de Alto Nível. É com prazer que te convidamos para participar na nossa segunda sessão (1 de julho a 28 de julho) ou, se não for demasiado em cima da hora, resta-nos uma vaga na nossa primeira sessão (2 de junho a 29 de junho). O nosso curso, de renome nacional, atrai dezenas de jovens atletas talentosos todos os verões, empenhados em travar amizade com os pares na sua área. Esperamos que decidas juntar-te a nós nesta experiência única.
O e-mail prosseguia com informações sobre o alojamento, o preço da inscrição e os contactos. Quanto mais lia, mais me custava manter uma expressão impassível. Os documentos da treta e as pontuações forjadas em competições tinham resultado. Podia estar lá... dentro de uma semana, se quisesse. Estávamos a 26 de maio.
A Nala devia ter fugido aos guardas quando teve oportunidade. Agora, estava presa. Eu não ia cometer o mesmo erro.
Respondi: Adorava ir!
A mãe cantava a letra da canção que ribombava das colunas e deu-me um encontrão para eu a acompanhar. Como de costume, comprimi os lábios e fiz de conta que resistia antes de alinhar naquilo. Ela aproveitou uns versos sobre gelo no pulso para abanar a sua nova pulseira, e eu ri-me. Visto de fora, tudo estava igual. A mesma euforia pós-trabalho. Eu e ela continuávamos iguais. Mas não podia ser assim para sempre. Eu sentia que tinha acabado de deslocar a roda da minha vida do seu eixo, mesmo nas barbas dela, por assim dizer, e ela não tinha reparado.
Percorri a caixa de entrada do e-mail. Onde estava o e-mail que tinha recebido antes da mensagem da mãe? Que estranho. A não ser que não estivesse na minha conta pessoal...
A conta de e-mail da caixa negra. Como a nossa família aceitava trabalhos. Acessível apenas através da Internet oculta, cem por cento à prova de hacbers e impossível de localizar — foi assim que a mãe ma explicou quando eu tinha oito anos. Era necessário ter uma palavra-passe nem que fosse para enviar um e-mail para ela. Eu nunca recebia notificações do e-mail da caixa negra. Deveria ser impossível.
Digitei as cinco palavras-passe consecutivas da conta.
O e-mail estava lá. Ainda por abrir. A mãe ainda não o devia ter visto. Senti um nó na garganta. Estaria alguém a contactar-me pela caixa negra?
Olá, Rosalyn Quest,
Parabéns por teres merecido o nosso interesse. Estás convidada a participar no Gambito dos Ladrões deste ano.
A competição começará dentro de uma semana. Prevemos que se prolongue por um período de duas semanas. Por favor, contacta-nos para organizarmos a tua participação.
Os Organizadores
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