Facto: Portugal tem capacidade para produzir mais do dobro da energia que consome. Por motivos económicos, no entanto, importa parte de Espanha (para onde também exporta). Mira Amaral, que antes de ser ministro da Indústria e Energia foi engenheiro de redes da EDP, acredita que este é um bom negócio, desde que o país faça o trabalho de casa e esteja preparado para funcionar sozinho em caso de emergência.

Se para alguns, incluindo o ex-secretário de Estado da Energia do PS, João Galamba, a recuperação foi "relativamente rápida, tendo em conta situações análogas noutros países", para outros, como Mira Amaral, as dez horas (em alguns casos mais, noutros menos) que levou a restabelecer a situação foram "uma vergonha", sobretudo porque Portugal tem recursos de geração de energia parados.

Enquanto os primeiros-ministros português e espanhol anunciam avaliações independentes para saber o que falhou - um mecanismo que, aliás, é obrigatório quando ocorram incidentes graves desta natureza que envolvam Estados-membros da União Europeia (o Regulamento (UE) 2019/941 prevê até seis meses para apresentar os resultados de uma investigação) -, Mira Amaral diz que o mais importante é garantir que o caso não se repita.

Para isso, pede mais centrais "black start", ou seja, centrais com capacidade de entrar em operação sem estarem dependentes da rede. Em Portugal, actualmente, existem apenas duas, a da Tapada do Outeiro (que apenas funcionou à sexta tentativa) e a de Castelo de Bode.

A ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, avançou entretanto que a REN já fez uma consulta pública para pôr em funcionamento mais duas centrais deste tipo, uma no Alqueva, outra no Baixo Sabor, com um custo anual de 5 milhões de euros e 2,9 milhões de euros, respectivamente. E o contrato com a central da Tapada do Outeiro foi estendido até 2026 e estão a decorrer negociações para ser prorrogado até 2030, disse em entrevista ao Observador .

Em três anos (2021-2023), a compra e venda de eletricidade a Espanha registou um saldo negativo de 3.279 milhões de euros, quase tanto como os fundos injectados pelo Estado na TAP.

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Segundo a REN, hoje está previsto um consumo de eletricidade de 142 GWh com um pico de 6 887 MW para as 20h00. Até às 6h30, a produção renovável representou 87% da produção nacional. O preço médio diário é de 20.54€/MWh, de acordo com o OMIE, que gere o mercado grossista de eletricidade para Espanha e Portugal.

O apagão de segunda-feira é inédito nestas proporções. Pode voltar a acontecer?

Pode voltar a acontecer, temos é de estar preparados, coisa que não acontece.

Consegue perceber a explicação do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, sobre os 15 megawatts perdidos em cinco segundos?

Não percebi o que aconteceu na rede espanhola, houve qualquer problema que ainda não está explicado, mas isso não é irrelevante para explicar o que aconteceu na rede portuguesa.

A partir do momento em que os espanhóis tiveram um problema, não sei qual exactamente, desligaram-se da rede portuguesa, portanto, ficámos sozinhos.

No momento em que isso aconteceu estávamos a importar de Espanha cerca de 33%-34% do nosso consumo. Ficámos, por isso, sem essa produção, o que gerou um défice de produção em relação ao consumo em Portugal.

O deslastre significa cortar uma parte dos consumos em Portugal. Que foi o que aconteceu.

Se mais de 65% da energia consumida estava a ser produzida em Portugal, por que motivo o país ficou sem electricidade?

Porque a rede eléctrica tem de ter a cada instante equilíbrio entre a produção e o consumo. Quando perde uma parte importante da produção, há um desequilíbrio, fica com um excesso de consumo em relação à produção.

Isso significa que os geradores começaram a abrandar, a frequência da rede começou a baixar e fomos para o apagão geral completo em Portugal.

Aí, o que se faz é como quando um navio se está a afundar, atira-se carga ao mar. No caso, o deslastre significa cortar uma parte dos consumos em Portugal. Que foi o que aconteceu.

Não havia hipótese de reduzir a potência, por exemplo, em vez de cortar a energia? Ou fazer cortes mais selectivos?

Era preciso que os geradores que temos na rede portuguesa e que não estavam a trabalhar fossem imediatamente chamados a entrar em serviço para se restabelecer os níveis de consumo que tínhamos previamente. E isso é que falhou.

Porquê?

Falhou por uma razão muito simples, os geradores precisam da rede a que estão ligados para fazer o seu arranque, mas a energia já tinha sido cortada. É por isso que é preciso ter geradores com o sistema "black start", que permite o arranque em situações e que a rede está às escuras, em que não há energia eléctrica na rede.

Em Portugal, só dois geradores têm tecnologia "black start", o da Central Termoeléctrica da Tapada do Outeiro - que fui eu que lancei quando era ministro da Indústria e Energia -, e o da Central Hidroeléctrica de Castelo do Bode. 

Entretanto, esteve-se à espera que houvesse novamente interligação com Espanha e que os espanhóis fizessem a ligação para gerar alguma tensão na rede, sobretudo junto à fronteira, para que os nossos geradores pudessem começar a entrar em rede.

Se tivéssemos um plano de contingência feito, que não tínhamos, percebeu-se agora, isto tinha sido muito mais rápido. Por isso é que foi uma vergonha o número de horas que se levou para repor o serviço

Ou seja, Portugal produz energia suficiente para colmatar a falha que existiu, a energia que é importada de Espanha?

Sim, simplesmente essa geração não conseguiu entrar em rede porque não temos centrais "black start". Moral da história, não estávamos preparados para uma situação destas, andámos vários anos a importar energia de Espanha na maior, sem preocupações, sempre a pensar que não iríamos ter problemas.

Se tivéssemos um plano de contingência feito, que não tínhamos, percebeu-se agora, isto tinha sido muito mais rápido. Por isso é que foi uma vergonha o número de horas que se levou para repor o serviço.

Luís Mira Amaral, Isabel Tavares e António Garcia Pereira
Luís Mira Amaral, Isabel Tavares e António Garcia Pereira créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Quantas horas é que o país podia aguentar numa situação como a que vivemos?

Não há uma resposta para isso. O país aguenta tanto mais quanto mais preparado estiver para uma emergência destas. Isso significa que tem de ter hospitais, serviços de telecomunicações, infra-estruturas críticas com sistemas alternativos de baterias e geradores a diesel para aguentar o país numa situação de emergência.

Agora, compreenda, pôr sistemas de telecomunicações nos hospitais ou equipamentos críticos com baterias e sistemas de geração alternativos não dura para sempre, dura umas horas. Quanto mais horas demorar a recuperar o serviço, maior o risco de estes equipamentos alternativos esgotarem a sua capacidade e ficarmos sem energia.

Portugal pode imputar a Espanha os prejuízos causados ao país pela falha na sua rede eléctrica?

É uma situação de emergência da rede espanhola, não me parece que possamos fazer alguma coisa sobre isso. Quando temos interligação de redes temos de perceber que ela pode disparar e falhar. E temos de fazer o nosso trabalho de casa, que não fizemos. O que o governo português devia fazer é um inquérito sério, feito por alguma entidade internacional, sobre o estado em que estava o sistema eléctrico português.

O que está em causa é que o país tem de estar preparado para situações como esta, em que Espanha se desliga de Portugal. Portugal podia continuar a funcionar por si, mas mostrou que não sabe funcionar sozinho.

Podemos reduzir esta dependência, ou vai existir sempre?

Por razões económicas, há horas em que é mais vantajoso para o país importar energia eléctrica de Espanha do que estar a produzir em Portugal. Tem de se comparar o custo das importações versus os custos variáveis e as centrais que tinham de estar a funcionar. Não é isso que está em causa, reduzir as importações de Espanha, porque o que fazemos é correcto.

O que está em causa é que o país tem de estar preparado para situações como esta, em que Espanha se desliga de Portugal. Portugal podia continuar a funcionar por si, mas mostrou que não sabe funcionar sozinho.

Há já quem fale na necessidade de reduzir consumos, mesmo que apenas em determinadas horas. Racionar a energia faz sentido?

Isso não faz sentido nenhum. O que tem de haver em todos os sistemas é um plano de contingência para acidentes como este. E vimos que não tínhamos isso na rede eléctrica, no sistema de telecomunicações, no SIRESP [Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal].

Este é um assunto que deve estar apenas sob tutela da Energia?

A Energia agora está no ambiente, o que significa que é um sub-produto do Ambiente, não é para ser levada a sério. Obviamente que o ministério que tutela a Energia tem de fazer uma pressão política, no bom sentido, para que o sistema funcione do ponto de vista técnico.

O problema é que o ministério que tutela a Energia só se preocupa com o CO2, não se preocupa nada com estas questões técnicas, que não são despiciendas, como se viu.

O problema é que, hoje em dia, as empresas de electricidade contratam só tipos da consultoria e dos MBA, os engenheiros foram esquecidos - e são eles que gerem as redes eléctricas, os técnicos da electricidade, não são os tipos dos powerpoints

Volta o fantasma das centrais do Pego e de Sines. São necessárias ou estão definitivamente de parte (e bem)?

As infraestruturas que temos - e que estavam paradas por razões económicas, porque é mais barato importar de Espanha do que produzir cá - eram mais do que suficientes para repor o serviço, não entraram foi a tempo e horas. O país parado quase um dia tem um custo económico e de segurança que não é despiciendo. Alguém vai ter de fazer essas contas.

Qual a capacidade de produção de energia de Portugal?

Portugal tem excesso de capacidade instalada em relação ao consumo. Temos um pico máximo de consumo de cerca de 9.000 MW, temos uma capacidade instalada de cerca de 22.000 MW. Falta-nos um plano de emergência. O problema é que, hoje em dia, as empresas de electricidade contratam só tipos da consultoria e dos MBA, os engenheiros foram esquecidos - e são eles que gerem as redes eléctricas, os técnicos da electricidade, não são os tipos dos powerpoints.