
Não é por acaso que o nascimento se dá na véspera de Santo António: na primeira ilustração, um rapaz com a cara de António Serpa Pimentel, então ministro das Finanças, pede dinheiro — e o Santo António é Fontes Pereira de Melo, o chefe do governo, que tem ao colo um menino com a cara do rei D. Luís. Perto, há um homem que passa: tem barba e coça a cabeça com ar desconcertado enquanto dá dinheiro. Escrito nas suas calças vem a identificação "Seu Zé Povinho".
Depois da primeira aparição, o Zé Povinho é mote para continuar a olhar para a atualidade da época ao lado dos restantes santos populares e de outras figuras.
"Mais do que uma ideologia, o Zé Povinho é uma figura de cidadania e contra as injustiças", disse à agência Lusa João Alpuim Botelho, diretor do Museu Bordalo.
"O que torna a figura do Zé Povinho absolutamente genial e faz com que ela sobreviva ao longo destes 150 anos é que ele criou a figura como quem nos põe um espelho à frente da cara e diz: ‘estás a ver, eles estão a fazer aquela negociata, ou uma lei contra a liberdade de imprensa', e é sempre uma maneira de provocar o Zé Povinho ou o levar a reagir, portanto é uma mensagem de cidadania", argumentou o responsável.
O diretor do museu acrescentou: "É uma mensagem para estarmos sempre atentos, a Democracia tem de se construir todos os dias, temos de estar sempre atentos, podem vir outras forças políticas que derrubem a democracia, e essa é a grande mensagem do Zé Povinho, a Democracia constrói-se com o nosso esforço, o nosso trabalho, e uma das coisas com que o Bordalo se preocupa com o Zé Povinho é que é preguiçoso e analfabeto, não se preocupa em aprender a ler, e é através do trabalho e do ensino que o Zé Povinho é capaz de tornar a sua vida melhor".
João Alpuim Botelho referiu-se à figura do Zé Povinho como “uma criação genial” de Bordalo Pinheiro por “ser praticamente intemporal e se aplicar a várias situações”.
“Ele critica os políticos, mas cada situação dos políticos, não diz ‘os políticos são todos iguais’ ou ‘os políticos são todos corruptos’, como os populismos que ouvimos hoje em dia. O Zé Povinho, pela mão do Bordalo, critica situações concretas”, afirmou.
A figura do Zé Povinho foi imediatamente apropriada, nomeadamente por outros artistas que “ainda em vida do Bordalo o desenharam e continuou depois da sua morte”. Bordalo Pinheiro era “muito generoso como pessoa, e teria muito interesse e gosto em ver a sua figura a ser usada por outros”.
Da Monarquia Constitucional à atualidade
O Zé Povinho surgiu na Monarquia Constitucional, passou a I República, o Estado Novo - “tendo sido muito censurado” -, “explodiu com o 25 de Abril, e continua a ser usado”.
“Com o advento da República [1910], o Zé Povinho, que era essencialmente republicano e contra a monarquia, aparece numa série de jornais como monárquico a lutar contra a República”, relatou o diretor do museu.
Alpuim Botelho realçou a forte ligação do Zé Povinho à causa republicana, associado sempre à personagem a “Cartilha Maternal”, de João de Deus, recordando que a instrução era um dos postulados do republicanismo.
Nos dias de hoje, esta figura é ainda muito usada, tanto para caricaturar situações — como no caso do Carnaval de Torres Vedras, que na última edição retratava Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, vestidos de carrascos, a "espremer" o Zé Povinho — ou mesmo na boca de políticos e do povo para demonstrar o que está mal.
Assim, ainda é usado como metáfora para o cidadão comum, muitas vezes num tom irónico ou crítico, representado como a pessoa simples que sofre com as decisões dos que estão no poder.
Desta forma, continua a ser um símbolo de resistência passiva, associada à esperteza e ao sarcasmo popular. Aparece ocasionalmente em manifestações ou memes, sobretudo quando o povo sente que está a ser injustiçado ou enganado.
Para além da carga crítica, o Zé Povinho também é usado como ícone folclórico e decorativo — por exemplo, em louça das Caldas da Rainha. Nestes contextos, perde um pouco da sua vertente crítica e passar a ser apenas um símbolo da portugalidade.
Como celebrar a data?
- No âmbito do 150.º aniversário do Zé Povinho, o Museu Bordalo Pinheiro inaugura, em 21 de julho, a sua nova exposição permanente, que incluirá uma sala dedicada exclusivamente ao Zé Povinho.
- Em novembro, é inaugurada uma exposição temporária constituída por 'Zés Povinhos', desde o século XIX até à atualidade, com curadoria do 'designer' Jorge Silva.
- O site do Museu Bordalo, a partira de hoje, 12 de junho, conta com uma página dedicada aos 150 anos, expondo os resultados de uma investigação, com várias galerias de imagens com Zés Povinhos, desde o século XIX, passando pela 1.ª República, pelo 25 de Abril e até à atualidade.
- Para quem prefere andar pelas ruas, há a possibilidade de fazer a visita temática "Passear na Lisboa de Bordallo". Uma atividade para jovens, adultos e famílias. Para as escolas, também há uma proposta de percurso.
- A cidade de Caldas da Rainha, à qual Bordalo esteve ligado, celebra também o 150.º aniversário com uma exposição no Centro Cultural e de Congressos a partir de 28 de junho.
*Com Lusa
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