Juan Gabriel Vásquez falava em entrevista à Lusa, a propósito da edição em Portugal do seu primeiro romance, o quarto publicado em Portugal pela Alfaguara, depois de “O Barulho das Coisas ao Cair”, “As Reputações” e “A Forma das Ruínas”, distinguido em 2018 com o Prémio Casino da Póvoa das Correntes d'Escritas.

A história do romance é contada a partir dos anos 1980/1990, quando um jornalista escreve um livro, que se reporta às décadas de 1930 e 1940, sobre uma judia chegada à Colômbia em fuga da Alemanha nazi, pouco antes da Segunda Guerra Mundial.

Um conflito familiar causado pela crítica arrasadora que o pai do jornalista faz ao seu livro, leva o jovem autor a uma indagação que o conduz à descoberta do passado histórico colombiano de perseguição a alemães refugiados, com a elaboração de “listas negras”, incentivos a denúncias, aprisionamentos em hotéis e represálias antialemãs, que incluíam o despojamento dessas famílias de todos os bens, conduzindo-as à ruína.

Juan Gabriel Vásquez explica que este romance nasceu – como sucederia mais tarde noutros romances – de uma experiência, de um encontro que, em 1999, teve com uma mulher alemã judia (que chegara à Colômbia em 1938), de nome Ruth de Frank, que lhe contou a história da sua juventude.

O pai desta mulher era judeu e escapou de Hitler levando a família para a Colômbia, mas, a dada altura, acabou por ser preso num campo de prisioneiros neste país da América Latina, porque o governo colombiano, alinhado com o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt, perseguia os nazis e propagandistas nazis. Só que, “de repente, todo o alemão era suspeito, por razões absurdas, incluindo judeus”.

A ideia de usar o romance como uma ferramenta de exploração da nossa realidade sempre me interessou.

“Nesse momento soube que tinha um romance. Era uma situação contraditória, de mal entendidos em que a história se metia nas vidas privadas dos indivíduos”, disse.

Esta passou a ser a sua forma de escrever, partindo de casos reais, de episódios históricos envolvidos em alguma obscuridade, esbatendo fronteiras entre a realidade e a ficção.

“Sempre me interessou a exploração da realidade que seja histórica, que seja parte da memória comum de uma sociedade, nunca posso evitar utilizar a minha própria biografia e as minhas preocupações, mas a ideia de usar o romance como uma ferramenta de exploração da nossa realidade sempre me interessou”, afirmou o escritor.

Juan Gabriel Vasquez em entrevista
Juan Gabriel Vasquez em entrevista O escritor colombiano, Juan Gabriel Vasquez, posa durante a entrevista à Agência Lusa em Lisboa, 19 de fevereiro de 2020. TIAGO PETINGA/LUSA créditos: Lusa

Sobre o tema específico tratado em “Os Informadores”, que surge da experiência direta com a mulher que inspiraria a personagem Sara Guterman, Juan Gabriel Vásquez diz que lhe colocou várias “questões na cabeça: como se passa esta contradição de um judeu escapar da história europeia, para, quando está na Colômbia, ser perseguido por ser alemão?, como cai um país numa espécie de ambiente de delatores e delatados, de informadores e informados?, como se contamina uma sociedade com uma guerra que ocorre do outro lado do mar?”.

O romance ilumina estas zonas de sombra da condição humana, mas fá-lo de forma ambígua e contraditória, que não traz respostas claras.

“Todas estas eram perguntas que me interessavam muito e o romance vai propondo outras perguntas ao longo do processo de escrita, relacionadas com o poder da palavra, a obrigação da memória, o direito ao esquecimento”.

Mas para estas perguntas não encontra respostas, até porque essa não é a função de um romance: “O romance para mim ilumina estas zonas de sombra da condição humana, mas fá-lo de forma ambígua e contraditória, que não traz respostas claras”.

Sobre se -- ao trazer à luz um episódio obscurecido –- pretendeu que o seu livro tivesse um papel crítico em relação à História da Colômbia, Juan Gabriel Vásquez respondeu que o considerava antes um “questionamento, uma tentativa de recordar coisas que a história oficial colombiana esqueceu”.

Se deixarmos de recordar um episódio, esse episódio desaparece e é isso que fazem as histórias oficiais dos países: obrigar a recordar umas coisas e obrigar a esquecer outras.

“O romance faz o que toda a literatura que admiro faz, que é resistir ao esquecimento, questionar a versão oficial da história, e, nesse sentido, é um protesto: o romance protesta por um esquecimento, pela amnésia de um país, que não recorda que sucederam estas coisas há 60/70 anos”, afirmou, frisando que sempre lhe interessou “essa possibilidade de manter vivos certos episódios incómodos que a história oficial quer esquecer”.

É por isso que na obra do escritor o grande protagonista é recorrentemente a “memória”, uma “obsessão” explicada com a necessidade de alcançar o passado, um “território oculto” ao qual só se consegue chegar através das histórias que se contam, e “para contar histórias há que recordar”.

“Se deixarmos de recordar um episódio, esse episódio desaparece e é isso que fazem as histórias oficiais dos países: obrigar a recordar umas coisas e obrigar a esquecer outras, e assim se vai montando a história sobre as nossas sociedades, que é interessada e distorcida e mentirosa”.

Há uma parte do passado que não muda e nós temos que construir sobre isso.

Juntamente com a memória vem a culpa, outro tema dominante do livro, porque é também ela parte da relação da humanidade com o passado. Uma parte “muito trágica” do ser humano é só poder avançar sobre o que está feito: “Há uma parte do passado que não muda e nós temos que construir sobre isso”.

A narrativa do romance está construída como uma malha entretecida com diferentes tempos, diferentes tipos de textos, diferentes narradores e até diferentes livros (uns dentro de outros) e, no final, tudo se compõe como um quadro, cujo pano de fundo é a história de uma família e a história da Colômbia.

“Foi muito difícil. Escrever este romance foi descobrir essa arquitetura, por isso tenho tanto carinho por este livro, custou-me muito esforço. Creio que a escrita deste romance consistiu na aprendizagem de como escrever este romance, e descobri que o narrador tem a mesma relação com o seu material que eu tenho com a realidade colombiana: é um mistério, e a narração da história que contamos é a maneira de nos irmos metendo e de fazer um pouco de luz sobre um território obscuro”, afirmou.

A Colômbia está condenada à violência porque "resiste à paz"

Juan Gabriel Vásquez encara com pessimismo o futuro da Colômbia, considerando que este país, marcado pela violência resiste à paz, como se preferisse uma guerra conhecida do que uma paz por conhecer.

Em entrevista à Lusa, o escritor afirmou que os colombianos da sua geração se têm perguntado sempre por que a violência colombiana “tem este talento para sobreviver e não para se reinventar”.

O seu romance passa-se em duas épocas e reflete a violência que marcou esses tempos: a época da Segunda Guerra Mundial e o período dominado pelos cartéis de droga. O tema serve de ponto de partida para o autor refletir sobre a história do seu país e perspetivar um futuro, em relação ao qual declara não ser “otimista”.

“O século XX começou com uma guerra civil, 50 anos depois estávamos na época que conta o romance, época de guerra entre partidos e, logo a seguir, vem o nascimento das guerrilhas, do narcotráfico, do para-militarismo, dos crimes de Estado e, durante os últimos 60 anos, a Colômbia tem vivido numa guerra que se reinventa e nós perguntamo-nos porquê”, afirma.

Para o escritor, essa é uma das razões por que a literatura colombiana está “cruzada pela violência” e este livro que escreveu é um exemplo recente, mas em cada década, há romances que tratam de explorar a violência, desde os anos 20.

Como exemplo, refere um romance de 1925, de José Eustasio Rivera, intitulado “A Voragem”, que começa com a frase “…joguei o meu coração à sorte, e ganhou-mo a violência”.

“Há pouco mais de três anos, nós, colombianos, tivemos um dos grandes êxitos da história recente do país, que foi os acordos de paz entre o Governo colombiano e a guerrilha das FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]", lembra o escritor.

No entanto, “esses acordos não eram perfeitos e havia toda uma parte da sociedade política a que não interessava a paz, que mentiu, caluniou os acordos, semeou medos na sociedade e os acordos foram rejeitados, a sociedade ficou dividida”, conta o escritor, que viveu 16 anos fora do seu país.

E embora agora tenham sido aprovados “de outra maneira”, já há novamente “sementes de violência, os problemas com a implementação dos acordos de paz abriram espaço para que uma parte da guerrilha volte às armas, para que criminosos obscuros assassinem líderes locais que tratam de levar a cabo os acordos”, lamenta o autor de “A Forma das Ruínas”.

A Colômbia “é um país que resiste à paz, é como se preferíssemos uma guerra conhecida a uma paz por conhecer”, sintetiza.

O escritor colombiano, Juan Gabriel Vasquez, posa durante a entrevista à Agência Lusa em Lisboa, 19 de fevereiro de 2020.TIAGO PETINGA/LUSA créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

O romance “Os Informadores” foi o primeiro do escritor colombiano, publicado em 2004, mas só este mês chegou a Portugal, editado pela Alfaguara, que já anteriormente publicara “O Barulho das Coisas ao Cair”, “As Reputações” e “A Forma das Ruínas”, este último distinguido em 2018 com o Prémio Casino da Póvoa das Correntes d'Escritas.

Nascido em 1973, em Bogotá, capital da Colômbia, Juan Gabriel Vásquez estudou Direito e, em 1996, mudou-se para Paris onde se formou em literatura, tendo feito, posteriormente, de Barcelona, a sua casa, onde viveu por mais de uma década.

Em 2012 regressou a Bogotá, onde vive atualmente.

Redes sociais servem a propagação dos populismos de direita

O escritor colombiano considera que as redes sociais são um instrumento de propagação da raiva e do medo e alerta para a forma como os populismos de direita as estão a usar para chegar ao poder.

Sem se darem conta, os usuários das redes sociais são personagens de uma história mentirosa, de um relato mentiroso que se constrói todos os dias, com os ‘tweets’ e os ‘posts’ de Facebook, que nos tiraram a certeza do que é falso e verdadeiro.

“Este é um tema que me preocupa muito, porque as redes sociais transformaram a nossa relação com a linguagem de uma maneira muito importante, que afeta a nossa democracia e o nosso comportamento como cidadãos”, afirmou o escritor em entrevista à agência Lusa, a propósito do lançamento em Portugal do romance “Os Informadores”.

Na opinião do autor, “sem se darem conta, os usuários das redes sociais são personagens de uma história mentirosa, de um relato mentiroso que se constrói todos os dias, com os ‘tweets’ e os ‘posts’ de Facebook, que nos tiraram a certeza do que é falso e verdadeiro”.

A este propósito, Juan Gabriel Vásquez recorda como recentemente, em Espanha, um partido de extrema direita, VOX, “chegou ao poder sobre calúnias e mentiras e desinformação”, e com eleitores que afirmam que não veem jornais, mas veem redes sociais, que é “onde está a verdade”.

“E assim chegam partidos extremistas ao poder”, considera, afirmando que esta é uma consequência da nova narrativa que veio com as redes sociais”.

Essa narrativa a que se refere é a da “divisão entre ‘os que estão comigo e os que estão contra mim’ e ‘os que não estão comigo são os inimigos dentro do país’”.

Os nacionalismos sempre existiram, a política identitária sempre existiu, mas nunca os movimentos populistas que chegam ao poder foram tão poderosos como agora.

“Para isso é necessário meter medo às pessoas e irritar as pessoas. A raiva e o medo são as duas emoções que alimentam o populismo. Nunca houve na história humana uma ferramenta mais eficaz para a raiva e o medo do que as redes sociais”, afirma o escritor.

Na opinião de Juan Gabriel Vásquez, esta é a razão por que se assiste nos dias de hoje ao fenómeno de ascensão de movimentos nacionalistas um pouco por todo o mundo.

“Os nacionalismos sempre existiram, a política identitária sempre existiu, mas nunca os movimentos populistas que chegam ao poder foram tão poderosos como agora”.

A rádio serviu a Hitler, a rádio serviu a Mussolini, para levar a mensagem de medo e de ódio a muita gente ao mesmo tempo. Encontro um paralelo com o que se passa agora com as redes sociais.

A este propósito, recorda como, nos anos de 1930, a revolução tecnológica que foi o surgimento da rádio ajudou ao surgimento dos populismos.

“A rádio serviu a Hitler, a rádio serviu a Mussolini, para levar a mensagem de medo e de ódio a muita gente ao mesmo tempo. Encontro um paralelo com o que se passa agora com as redes sociais”, afirmou.

Para o autor, as redes sociais “tinham de ser uma ferramenta de democracia, podiam ser usadas como forma de dar voz a pessoas que nunca se fazem ouvir, mas na realidade deixámos que as dominem as mentiras, o lado mais obscuro da politica, os ressentimentos, os medos, o ódio, e o resultado é o que estamos a assistir”.

Escrevendo sempre a partir de episódios reais, Juan Gabriel Vasquez considera que o romance tem o papel de revelar “as verdades importantes que as redes sociais estão a esconder, sobre o que somos como seres humanos e sobre como funciona a sociedade”

*Por Ana Leiria (texto) e Tiago Petinga (fotos) da agência Lusa