ECRÃ VERMELHO

Wilson está a ter uma manhã aziaga. Cortou-se ao fazer a barba e está a limpar um fio de sangue no queixo com um Kleenex quando Sandi mete a cabeça pela porta para o repreender por deixar o tampo da sanita para cima e a pasta dentífrica destapada. Derrama sumo na gravata e tem de a trocar. Antes de se conseguir escapulir para ir trabalhar, é repreendido várias vezes mais: ela encontrou garrafas de cerveja no lixo em vez de estarem na reciclagem e ele esqueceu-se de passar a taça de gelado por água antes de a meter na máquina da loiça. Há outra repreensão, mas entra por um ouvido e sai pelo outro sem ele reter uma só palavra. Resumindo, uma chatice. Tornou-se uma pessoa esquecida e ficou um pouco desleixado nos últimos tempos ou foi Sandi que se tornou mais picuinhas nos últimos seis ou oito meses? Não sabe e é muito cedo para tais considerações.

Porém, assim que está no carro e a recuar pela rampa de acesso, tem uma ideia animadora. Se o mau karma existe, é possível que tenha expiado o seu para aquele dia e partir de agora...

— Acabaram-se as chatices! — exclama e serve-se de um cigarro do maço que está no porta-luvas.

Esta ideia otimista perdura por quinze minutos. É então que recebe um telefonema e o mandam ir para a 34th Avenue em Queens. Dizem-lhe para se encontrar com os agentes, o que nunca é bom karma...

Cinco horas depois, quando deveria estar a pensar no almoço, Wilson está a olhar pelo vidro espelhado para uma pequena sala de interrogatório. Lá dentro, uma mesa e duas cadeiras. Numa cadeira está sentado um homem chamado Leonard Crocker. Está algemado a uma argola do seu lado da mesa. Veste uma camisola interior de manga cava por fora de umas calças de trabalho caqui. A camisa está agora num saco de plástico com uma etiqueta e vai a caminho do laboratório forense. Quando chegar a sua vez de ser analisada (vai demorar algum tempo porque há sempre trabalho em atraso), será determinado o tipo de san- gue das manchas e será feita uma correspondência de ADN. Mera formalidade. Crocker já confessou o homicídio. Não tarda e trocará a camisola interior e as calças caqui pela farda da prisão.

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Wilson passa a correia com a identificação pela cabeça. Quando entra para a sala, esboça um sorriso.

— Bom dia, senhor Crocker. Lembra-se de mim?

Leonard Crocker parece completamente descontraído, com as algemas e tudo.

— É o inspetor.

— Isso mesmo! — Wilson senta-se. — Quer que o trate por Len, Lennie ou Leonard?

— Lennie. É assim que sou conhecido na loja de artigos de canalização.

— Então, tratá-lo-ei por Lennie. Se concordar, vamos ter aqui uma espécie de conversa preliminar. Informaram-no sobre os seus direitos, não foi?

Lennie sorri com uma expressão de quem percebe que a pergunta tem rasteira.

— Primeiro os agentes que compareceram no local, depois o senhor. Fui eu que os chamei, sabe? Os agentes.

— Bestial! Só para recapitular, tudo o que disser...

— Pode ser utilizado contra mim.

Wilson faz um sorriso mais largo.

— Isso mesmo! E em relação à representação legal? Como está a sua memória sobre isso? Porque a nossa conversa está a ser gravada, sabe?

— Posso ter um advogado quando quiser. Se não puder pagar a um, vocês providenciam-me um. Está na lei.

— Perfeito. Então, quer um? Basta dizer. — E poderei ir almoçar, pensa Wilson.

— Não me importo de falar consigo, inspetor, mas precisarei de um advogado no julgamento, certo?

— A menos que pretenda fazer a sua própria defesa. Mas quem faz a sua própria defesa...

Lennie levanta um dedo e inclina a cabeça, num gesto mais próprio de um académico do que de um canalizador.

— ...tem um idiota como cliente.

Wilson ri e concorda com a cabeça.

— Tem direito a prémio! — Então, mostra um ar mais sério, entrelaça os dedos por baixo do queixo e olha Lennie nos olhos. — Porque não vamos direitos ao assunto? O senhor matou a sua mulher hoje de manhã, não matou? Esfaqueou-a três vezes na barriga até ela se esvair em sangue. Foi isso o que disse aos agentes, não foi? E a mim.

Lennie abana a cabeça.

— Se bem se lembra, o que de facto disse foi: «Fui eu.»

— O que quer dizer que matou a sua mulher, Arlene Crocker.

— Ela não era a minha mulher.

Wilson tira o seu bloco de notas do bolso de dentro do casaco e consulta-o.

— A Arlene Crocker não é a sua esposa?

— Hoje não. Há já um ano que não. — Pondera. — Talvez há mais tempo. Não sei bem ao certo.

— Está a dizer que matou uma desconhecida? Uma pessoa que, por acaso, é parecida com a mulher com quem foi casado nove anos?

— Sim.

Lennie está a olhar pacientemente para Wilson, como quem diz «acabarás por fazer as perguntas certas, mas eu não te vou ajudar».

— Quer dizer que... quando determinarmos o tipo sanguíneo e fizermos a correspondência de ADN entre o sangue que está no chão da sua cozinha e o que tem na sua camisa, não corresponderá ao da falecida?

— Oh, provavelmente corresponderá. — Lennie acena com a cabeça de forma sagaz. — Tenho quase a certeza de que sim. Embora espere que os vossos técnicos encontrem... hum... — Procura a palavra certa. — Componentes peculiares. Acho que não encontrarão nenhum, mas seria sensato verificar. Estou a contar ir para a prisão por matar aquela coisa, mas preferiria não ir.

Agora Wilson compreende. Crocker já está a pensar numa alegação de insanidade.

— O que é que está a dizer-me, Lennie? Que a sua mulher foi possuída? Ajude-me a compreender.

Lennie pensa na resposta.

— Acho que não se pode dizer que fosse exatamente possuída. Quando uma pessoa é possuída, e corrija-me se estiver errado, inspetor, um espírito, talvez um demónio, aparece e assume o controlo da pessoa, mas essa pessoa continua lá, feita refém. É esse o seu entendimento?

Livro: "Mais Sombrio"

Autor: Stephen King

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 23 de maio de 2024

Preço: € 22,20

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Wilson viu O Exorcista e mais uns quantos filmes do género, por isso concorda com a cabeça.

— Basicamente. Mas não foi isso o que aconteceu à sua mulher?

— Não. Ela morreu quando aquilo entrou. É o que acontece a todos.

— Todos? Todos quem?

— Não muitos até agora, em comparação com a população do planeta, vamos agora em oito mil milhões, pode verificar no Google, mas são cada vez mais. Eles assumem o controlo, inspetor. É o disfarce perfeito. Nós somos o disfarce perfeito.

Wilson finge ponderar. O que realmente está a pensar é que este interrogatório será inútil para o Ministério Público. Adivinha-se muita algaraviada — dois psiquiatras de acusação, mais o psiquiatra de defesa de Crocker. Não seria de admirar se Crocker já tivesse um na lista de contactos.

— Extraterrestres?

Crocker faz uma expressão que dá a entender que ele finalmente compreendeu.

— Isso mesmo. Extraterrestres. Não sei se vêm do Espaço ou de algum universo paralelo. As opiniões dividem-se na Internet. Eu acho que vêm do Espaço. Faz sentido porque... — Inclina-se para a frente, circunspecto. — A velocidade da luz, sabe?

— O que é que tem?

Não é que Wilson queira saber. Está a perder o interesse. O que lhe interessa é uma sanduíche de presunto e peru do restaurante ao fundo da rua. E no fim, um Marlboro.

— As naves espaciais não a podem ultrapassar, se não recuam no tempo ou até podem desintegrar-se. Isso é ciência. Mas a mente no seu estado puro, inspetor... a mente pode dar o salto. Só que quando aqui chegam, precisam de corpos. O mais certo era morrerem sem um corpo. Estamos na fase preliminar da invasão, mas se os governos por todo o mundo não fizerem nada, virão aos milhares, centenas de milhares, milhões.

Crocker tem estado debruçado por cima das mãos algemadas e acorrentadas, mas agora recosta-se.

— Está tudo na Internet.

— De certeza que sim, Lennie. De certeza que a Kamala Harris é um dos invasores e só está à espera que o Amtrak Joe (1) estique o pernil para assumir o poder. — Põe-se de pé. — Acho que tem de voltar para a cela e pensar nisto antes de a acusação ser feita. Aconselho-o a arranjar um bom advogado, porque só um bom advogado conseguirá impingir isso ao júri.

— Sente-se — diz Lennie tranquilamente. — O senhor vai querer ouvir isto.

Wilson consulta o relógio e decide conceder mais cinco minutos a Leonard Crocker, talvez até dez. Talvez consiga decidir se o homem é mesmo maluco ou está a tentar enganá-lo. Deverá conseguir fazer isso. Afinal de contas, é inspetor.

— Há cinco ou seis anos, alguém descobriu o que está a acontecer. Está na dark web, inspetor, e a espalhar-se a partir daí. Como tinta na água.

— De certeza que sim. — Wilson já não sorri. — Tal como democratas que bebem sangue, clisteres de Clorox para curar a Covid, vídeos de animais a ser esmagados e pornografia infantil. O senhor matou a sua mulher, Lennie. Tem de se deixar de tangas e pensar um pouco nisso. Esfaqueou-a com um facalhão e ficou a vê-la morrer.

— Eles mudam. Tornam-se implicantes e críticos. Não se contentam em apenas estar aqui, querem dominar. Mas nós temos uma hipótese porque um génio da informática descobriu uma forma de os identificar. Se sobrevivermos, será erigida uma estátua dele em todos os países do mundo. Os alienígenas desencadeiam um comando profundo, está a ver? Automático. Infalível. Apenas algumas pessoas sabem disso agora, mas a informação está a espalhar-se. É para isso que a Internet serve, para espalhar informação.

Já para não falar de doença mental, pensa Wilson.

— Vai ser uma corrida. — Lennie tem os olhos arregalados. — Uma corrida contra o tempo.

— Ei, vamos lá com calma, sim? O senhor matou a sua mulher porque ela se tornou implicante e crítica?

Lennie sorri.

— Não seja parvo, inspetor. Muitas mulheres são implicantes, eu sei. Também há homens assim. É fácil ignorar os primeiros sinais.

Lennie abre as mãos e afasta-as tanto quanto as algemas lhe permitem, o que não é muito.

— Acho que ao ser casada consigo — aventa Wilson —, a Arlene teve muito com que implicar e criticar.

— Ela começou a implicar — diz Lennie. — Implicava por tudo e por nada. No início, apenas fiquei deprimido...

— A velha autoimagem sofreu um golpe, foi?

— Depois fiquei desconfiado.

— A minha mulher também implica — diz Wilson. — Está sempre a dizer que o meu carro é uma pocilga ambulante e vai aos arames quando me esqueço de baixar o tampo da sanita, mas estou longe de a esfaquear com um facalhão.

— Eu vi o ecrã vermelho. É só durante um ou dois segundos, para eles não verem. Mas quando o vi, tive a certeza.

— A certeza que eu tenho é que este interrogatório acabou.

Wilson vira-se para o espelho na parede à sua esquerda e passa a lateral da mão pela garganta: desliguem.

— É subtil — diz Lennie, olhando para Wilson com uma expressão compadecida e superior. — É como aquela teoria de que se pode cozer um sapo aumentando a temperatura muito gradualmente. Eles roubam-nos. Roubam-nos a autoestima e se a pessoa for fraca... — Levanta as mãos esticando a corrente e faz o gesto de quem está a ser asfixiado. — ...matam-na.

— As mulheres, certo?

— As mulheres ou os homens. Isto não é uma coisa sexista, não fique com essa ideia.

— Não é como O Exorcista, mas como A Invasão dos Violadores. O homem que assassinou a mulher esboça um largo sorriso.

Isso mesmo!

— Mantenha essa versão, Lennie. Vamos lá ver como se safa.

*

Wilson chega a casa às 18h45. Sandi está na sala de estar a assistir ao noticiário do fim de tarde. A mesa da cozinha está posta para uma pessoa. Tem um aspeto solitário.

— Olá, querida — diz ele.

— Tens o jantar no forno. O mais certo é o frango estar seco. Disseste que chegavas a casa às cinco.

— Tive de tratar de uns assuntos.

— Tens sempre de tratar de assuntos.

Ele disse a Sandi que chegaria a casa às cinco? Para ser sincero, Wilson não se lembra. Mas lembra-se de Crocker — que provavelmente estará agora a aguardar no Metropolitan Detention Center — dizer: «É subtil.»

Tira a galinha com batatas do forno e o feijão-verde da máquina de cozer a vapor. Acha que as batatas estarão boas, mas a galinha e o feijão-verde têm um aspeto rançoso e pouco apetitoso.

— Foste buscar a roupa à lavandaria?

Ele faz um compasso de espera com um pedaço de peito de frango meio cortado. Meio serrado, para ser mais preciso.

— Que roupa?

Ela levanta-se e pára no vão da porta.

— A nossa roupa. Eu disse-te ontem à noite, Frank. Meu Deus!

— Eu...

O telefone toca. Tira-o da bolsa presa ao cinto e olha para o ecrã. Se for o seu colega, não vai atender. Mas não é. É o capitão Alvarez.

— Tenho de atender.

— Pois claro que tens — diz ela e vira-se para a sala de estar para não perder a última contagem de vítimas do coronavírus. — Francamente.

Ele pensa em ir atrás dela, para tentar acalmar os ânimos, mas é o seu chefe, por isso atende o telefonema. Ouve o que Alvarez tem para dizer, depois senta-se.

— Está a gozar? Como é que isso aconteceu?

O seu timbre de voz faz Sandi voltar para a entrada. Ao ver a posição prostrada dele — o telefone encostado ao ouvido, a cabeça baixada, um braço apoiado na coxa —, ela aproxima-se da mesa.

Wilson ouve um pouco mais, depois desliga. Leva o prato até à banca e despeja tudo no triturador de lixo.

— O fim perfeito para um dia de merda.

— O que aconteceu?

Sandi pousa-lhe uma mão no braço. É um contacto leve, mas que ele muito aprecia.

— Prendemos um gajo que matou a mulher. Eu estive no local, uma barafunda. Sangue por toda a cozinha, ela deitada em cima. Na esquadra, fiz o interrogatório preliminar. O suspeito era completamente maluco. Afirmou que ela era um extraterrestre, parte de uma força invasora.

— Oh, meu Deus.

— Suicidou-se. Estavam a passá-lo pelo detetor de metais. Ele pegou num lápis, rebentou a correia a que o lápis estava preso e espetou-o na veia jugular. O Alvarez diz que talvez tenha sido azar, mas o sargento das admissões acha que ele sabia muito bem o que estava a fazer.

— Talvez tivesse formação médica.

— Sandi, era um picheleiro.

Isto fá-la rir e Wilson também ri. Encosta a testa à dela.

— Não tem piada — diz Sandi —, mas a forma como o disseste. Picheleiro. — Ri outra vez.

— O Alvarez diz que ele não os deixou ajudá-lo. Com o sangue a jorrar, a esguichar, não os deixou ajudá-lo. Quando perdeu os sentidos, levaram-no para o Presbyterian, mas já era tarde demais. Perdera demasiado sangue.

— Desliga a televisão — diz Sandi. — Vou preparar-te uns ovos mexidos.

— E bacon?

— Faz-te mal ao colesterol, mas hoje... está bem.

Essa noite fazem amor pela primeira vez em... semanas? Não, mais. Pelo menos um mês. É bom. Quando acabam, Sandi pergunta:

— Continuas a fumar?

Passa-lhe pela cabeça mentir. Pensa no falecido canalizador a dizer: «Ela começou a implicar. Implicava por tudo e por nada.» Pensa em como aquela noite foi agradável. Como foi diferente dos últimos seis ou oito meses.

«Eles mudam», afirmara Lennie. «Tornam-se implicantes e críticos.»

Não mente. Diz que continua a fumar, mas pouco. Meio maço por dia no máximo. Espera que ela diga: «Até isso te pode matar.» Mas ela não o diz. Pelo contrário, diz:

— Tens algum cigarro à mão? Se tiveres, dá-me um, por favor.

— Tu não fumas há...

— Preciso de te dizer uma coisa. Tenho andado a adiar.

Oh, meu Deus, pensa Wilson.

Acende o candeeiro da mesa de cabeceira. As suas chaves, a carteira, o telefone e uns trocados estão espalhados no tampo da mesa. Ele guarda a arma de serviço na gaveta. Guarda-a sempre ali. Por detrás, está um maço de Marlboro e um isqueiro Bic. Passa um cigarro à mulher e pensa: Depois de tantos anos sem fumar, bastará uma baforada para a deixar KO.

— Tira um para ti.

— Não tenho cinzeiro. Quando tenho vontade de fumar um cigarro, geralmente vou para a casa de banho de hóspedes.

— Usamos o meu copo de água.

Ele dá-lhe lume e depois acende o seu cigarro. Fumam na cama, como quando casaram e pensavam que teriam dois filhos e seriam felizes para sempre. Doze anos depois, não têm filhos e Wilson sente-se um verdadeiro mortal.

— Não me vais dizer que queres o divórcio, pois não? — Está a brincar. Ou será que não?

— Não. Quero dizer-te porque tenho andado tão rabugenta e uma verdadeira peste desde a primavera.

— Está bem...

Ela tira uma baforada, mas não trava o fumo.

— Ando irregular.

— Não sei o que isso quer dizer, Sandi.

— Quer dizer que estou a entrar na menopausa, Frank. Em breve, acabou-se.

— Tens a certeza?

Ela fita-o, carrancuda, mas depois dá uma gargalhada.

— Acho que eu deveria saber, não te parece?

— Querida... só tens trinta e nove anos.

— Na minha família, começamos cedo e acabamos cedo. A minha irmã Pat passou pela mudança aos trinta e seis. Como é possível que tenhas reparado, ando com as emoções à flor da pele.

— Porque não me disseste?

— Porque primeiro tinha de aceitar a realidade. — Suspira. — Tive o último período menstrual há quatro meses e, desde então, apenas umas manchas. Como as últimas gotas de uma torneira depois de esta se fechar. — Escorre-lhe uma lágrima pela cara, apenas uma. Larga o cigarro meio fumado no copo de água e tapa os olhos com uma mão. — Sinto-me seca, Frankie. Velha, usada e sem motivos para ser amada. Tenho sido horrível contigo e lamento-o.

Ele mergulha o seu cigarro na água. Pousa o copo na mesa de cabeceira e abraça-a.

— Amo-te, Sandi. Sempre amei e sempre amarei.

— Obrigada, querido.

Ela estica-se por cima dele, encostando um seio à cara dele, e apaga a luz. Por um momento, um fugaz instante, o ecrã do telemóvel dele fica vermelho.

Sandi Wilson sorri no escuro.

(1) Alcunha por que é conhecido o presidente dos EUA, Joe Biden. (N. dos T.)