A arte aprendeu-a com o “ti Raimundo”, o mestre que lhe deu “os pontos”, ou seja, os desenhos e medidas para se fazer um barco, mas já de pequeno observava atentamente as técnicas e ferramentas empregues.
“Os mestres naquela altura não queriam a canalha de volta deles, mas a mim diziam: a este deixa-o estar”.
Já homem feito, foi “fazer a caldeirada” ao encontro de Manuel Raimundo, que estava a fazer um moliceiro, com o fito de recuperar uma bateira, “aproveitando só uma caverna ou duas”, e ele disse que o ajudava.
“Mandou-me serrar o pinheiro, começámos a trabalhar um de um lado e outro do outro, peguei na enxó e tirei uma fevra e depois no machado, e ele disse que eu estava a brincar, porque trabalhava tão bem como ele”, recorda, explicando que o que sabia era por já ter visto fazer aquilo em pequeno.
“Começámos a simpatizar um com o outro, a conviver e ele disse para eu me lançar, que estava ali para me ajudar e assim foi”.
Mestre Rito explica que tudo começa nos pinhais, onde se vai escolher o pinheiro com as formas mais adequadas, para depois serem cortadas as pranchas para o barco.
Atualmente a construção de um barco moliceiro tem muito trabalho de madeira, mas também de metal.
“Hoje já ninguém usa cavilhas de madeira porque os barcos estão mais parados e as cavilhas de madeira partem”, elucida.
Os barcos moliceiros precisam de manutenção, que também é feita de forma diferente: “Antigamente dava-se breu e piche, mas agora é dada uma cura com óleos e é usada tinta para não agarrar limos”.
“Quem tem um moliceiro é só por gosto ou vaidade, porque só dá prejuízo”, diz mestre Rito, esclarecendo que os barcos quando têm sete, oito ou nove anos já valem pouco ou nada.
“Começam a encharcar, a ficar pesados e já não fazem a vontade a quem boleia neles. É quase como nós. Quando somos novos somos uma coisa e, mais tarde, já somos outra”.
Tal como a serra que empunha, também a sua vida de “moliceiro” foi um vai-e-vem constante entre marés, sim, porque moliceiro designa não só o barco, como o homem que andava ao moliço, e essa foi a simbiose da sua vida e a vida dos seus antepassados.
“Andar ao moliço era uma vida ingrata, a mais trabalhosa que havia, escrava mesmo”, afirma-lhe de memória, lembrando-se de quando se levantava à hora em que houvesse maré, noites mal dormidas numa esteira à proa, com a roupa dobrada à cabeceira para pousar a cabeça e uma manta por cima.
“Passávamos a noite ao moliço à borda e, por vezes, quando estava a chover e a água a bater por baixo, nem queríamos sair à hora de comer”.
Tomava-se o café antes de começar a labuta, aquecido num fogareiro a lenha e as refeições do dia tomavam-se quando havia vagar, tendo a areia de uma das ilhas da Ria por mesa, que servia também de abrigo no temporal, ou o tabuado do barco.
“O meu pai punha a cozer os feijões, um bocado de toucinho, um bocado de chouriça, o que houvesse, mais umas couves e um bocadito de arroz e, chegados às 10 horas, se o barco já estivesse carregado, comia-se”.
Passavam-se semanas sem ir a casa, sempre na água, sobretudo quando tomavam a direção do sul, até ao Areão, à vara ou à vela, que não havia motor.
“Faziam-se muitos filhos nos barcos, porque quando os homens não tinham filhos ou moços, eram as mulheres que andavam…”
Diz mestre Rito que era a andar no moliço que se matava a fome.
“No inverno apanhávamos o moliço aqui na borda, de rola, e vendíamos a barcada aos lavradores e já dava para manter a casa um mês. No sal ganhava-se mais dinheiro, dependia da safra, mas o sal era só dois ou três meses”.
É este Moliceiro, o homem, o barco, a sua construção tradicional, que mestre Rito tão bem personifica, que se pretende salvaguardar, por ação das autarquias e da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro (CIRA).
A Direção-Geral de Património Cultural inscreveu em dezembro, como registo de salvaguarda urgente, o “Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro”, no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial.
“É mais um passo na ambição de elevar o ‘Barco Moliceiro: Arte da Carpintaria Naval da Região de Aveiro’ a património cultural imaterial da UNESCO, assumida desde o primeiro momento do projeto”, realça a Comunidade Intermunicipal, presidida por Ribau Esteves.
Foi com o intuito da sua preservação e divulgação que a Câmara da Murtosa criou o Estaleiro Museu do Monte Branco, como explica o presidente da Câmara, Joaquim Baptista.
“Temos aqui um estaleiro museu, com um centro interpretativo que queremos que seja um espaço de acolhimento com um conjunto de informação, de contextualização geográfica, social, de enquadramento e de caracterização das próprias embarcações e dos processos construtivos”, realça.
Segundo o autarca da Murtosa, trata-se de “um museu vivo, num conceito diferente de museologia, em que se poderá ver um homem a trabalhar na construção de uma embarcação, transformando uma oficina de trabalho diário em espaço de conhecimento e de partilha da própria experiência do que é o nascimento de um barco”.
Sobre o presente e o futuro do barco moliceiro, Joaquim Baptista comenta que “não se vive de saudosismos” e que “hoje, o cultivo agrícola é distinto, a hidrodinâmica da Ria alterou-se profundamente, extinguindo praticamente o moliço”.
“Não há nenhum fatalismo nisto. Há uma preocupação e por isso não só quisemos ver classificado o barco moliceiro, como também os métodos pelos quais ele é construído”, explica.
Joaquim Baptista acredita que, com o processo de classificação, mais jovens se vão interessar por dar continuidade à construção tradicional.
“Nós temos não só aqui o mestre José Rito, cuja idade já vai sendo avançada, mas temos felizmente também o mestre Marco Silva, esse muito mais novo, e irão aparecer certamente mais jovens que queiram enveredar por isto. Temos de acreditar”, conclui.
Com o mesmo espírito, outro dos impulsionadores da candidatura, o Município vizinho de Estarreja, presidido por Diamantino Sabina, está a promover um curso de formação profissional de “Atividades Marítimo-Turísticas e Construção Naval”, em parceria com o Centro de Formação Profissional das Pescas e do Mar (FOR-MAR) e com o Centro Qualifica de Estarreja.
O curso, que será ministrado no Centro de Interpretação de Construção Naval, localizado na Ribeira da Aldeia, na freguesia de Pardilhó, visa “atrair jovens para uma arte que corre risco de extinção”.
No Município de Estarreja, a arte da construção naval ainda é exercida pelos mestres construtores António Esteves, Arménio Almeida e Felisberto Amador, da freguesia de Pardilhó, “terra da Ria e berço de centenas de construtores navais de machado e enxó”.
*Miguel Souto (texto), Paulo Novais (fotos) | Lusa
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