A cozinha francesa, que poderá ser discutida em termos dietéticos, é insuperável não só nos sabores e qualidade, mas também porque é praticada pela maioria da população. “Cozinha francesa” é, só por si, um atestado de civilização, em qualquer parte do mundo, mesmo nos países, como o nosso, que têm uma culinária característica e consolidada.
Quanto aos intelectuais, é outra história. Em França, têm um estatuto que não se encontra em mais nenhum país, e uma exposição pública sem par. Aparecem na televisão tanto quanto os comentadores desportivos e as suas ideias, inevitavelmente fracturantes, são discutidas pelo público com paixão. Em mais nenhuma cultura ensaios de quinhentas páginas sobre minudências filosóficas vendem centenas de milhares de exemplares.
“Intelectual” é uma classificação vaga; engloba filósofos, comentadores políticos e escritores – pessoas que se dedicam ao “ócio” num sentido criativo e não pejorativo, ou seja, cujo trabalho é pensar. Neste conceito, o intelectual é uma classe diferente dos que vivem de rendimentos ou do trabalho numa cadeia produtiva, pois não tem capital nem produz bens transaccionáveis; dedica-se a pensar pelos outros, que têm preguiça ou falta de tempo para o fazer.
Pedindo desculpa por me citar, no livro “Pesquisa Sentimental” que publiquei em 2009, há uma personagem que diz que a classificação social contemporânea já não cabe na divisão clássica de “nobreza, clero e povo”. Agora existem os “instalados”, os “carentes” e os intelectuais: “Os instalados são os que estão por cima. Com dinheiro e poder. Os carentes são todos os outros, que sentem a falta do dinheiro e do poder. Os intelectuais são aquele grupo que analisa tudo, critica tudo e não está satisfeito com nada.”
Esta classificação do intelectual como aquele a quem nada satisfaz e protesta contra tudo aplica-se sobretudo aos franceses. Os intelectuais anglo-saxónicos, por exemplo, dedicam-se mais a construir as teorias que justificam práticas ou situações. E têm audiência apenas entre eles e num pequeno público interessado.
Aliás, é interessante lembrar que a classificação de “intelectual” como modo de vida é precisamente francesa e começou logo por ser pejorativa. Foi popularizada em 1871 por Maurice Barrès – ele próprio político, jornalista e ficcionista, logo, um intelectual – para criticar Émile Zola, a propósito do caso Dreyfus.
Só em França (e nos países francófonos europeus, Bélgica, Luxemburgo e parte da Suíça) é que nomes como Sartre, Bernard-Henri Lévy ou Houellebecq, ou ainda Tarik Ramadan, entre outros, são discutidos com alma e coração, quando tratam de assuntos tão profundos como a existência de Deus, o marxismo ou a islamização. E entre os “outros” há que contar, sem dúvida, com Michel Onfray.
Ateu, hedonista e anarquista
Michel Onfray tem a particularidade de ser particularmente prolífico; já publicou mais de cem livros, sobre praticamente tudo o que acontece ou tem significado na civilização. A sua fama, substanciada em milhões de exemplares vendidos e incontáveis discussões públicas, já chegou a Portugal, com sete livros traduzidos, entre eles o mais famoso, “Tratado de Ateologia”.
Seria extenso referir os temas a que Onfray se dedica. Basicamente considera-se ateu, hedonista e anarquista. Escreveu biografias de alguns dos seus pensadores de referência, mas para os insultar. Aliás, usa uma linguagem expressionista, quase panfletária, que não exclui a minúcia e as articulações relambóricas para chegar a conclusões simples. E cita autores, muitos autores, num conhecimento enciclopédico. Está por explicar como consegue ler e escrever tanto.
Um exemplo, tirado do “Manifesto ateísta”: Onfray quer concluir um dos argumentos mais usados pelos ateus, que Deus só existe na cabeça dos homens – não tem uma existência real, fora da mente humana – e que portanto morrerá com o desaparecimento do último homem. É uma afirmação simples, que não carece de maiores explicações, mas veja-se como ele chega lá:
“Aparentemente, o anúncio do fim de Deus foi demasiado ruidoso para que não tivesse sido verdadeiro... Clarins, anúncios teatrais, rufaram tambores em sinal de regozijo demasiado cedo. A época desmorona-se sob as informações veneradas, com a palavra autorizada de novos oráculos, e a abundância dá-se em detrimento da qualidade e da verdade: nunca tantas falsas informações foram celebradas como outras tantas verdades reveladas. Para que a morte de Deus se verificasse, seriam necessárias certezas, indícios, convicções. Ora, tudo isso falta...
Quem viu o cadáver? Além de Nietzsche, mesmo assim... à maneira do corpo de delito em Ionesco, ter-se-ia sentido a sua presença, a sua lei, ele teria invadido, empestado, causado mau cheiro, ter-se-ia corrompido pouco a pouco, dia após dia, e não teríamos deixado de assistir a uma verdadeira decomposição – também no sentido filosófico do termo. Em vez disso, o Deus invisível enquanto vivo permaneceu invisível, mesmo depois de morto. Efeito de anúncio. Continuamos à espera das provas. Mas quem poderá dá-las? Qual o novo insensato para esta tarefa impossível?
De facto, Deus não morreu nem está a morrer – contrariamente ao que pensam Nietzsche e Heine. Nem morto nem a morrer, porque não é mortal. Uma ilusão não morre, uma ilusão não falece, não se refuta um conto para crianças. (...)
Não se mata um sopro, um vento, um odor, não se mata um sonho, uma aspiração. Deus, fabricado pelos mortais à sua imagem hipostasiada, não existe senão para tornar a vida quotidiana possível, apesar do trajecto de cada um em direcção ao nada. Não se assassina um subterfúgio, não podemos matá-lo.”
Outro exemplo: a afirmação, hoje em dia corrente, de que “a civilização judaico-cristã europeia está na fase terminal”. Para Onfray, conforme disse numa entrevista ao “El País”, este facto está demonstrado na Igreja da Sagrada Família, de Gaudi, em Barcelona:
“Não fomos capazes de construir esta catedral. Começámos no século XIX. Tivemos todo o século XX para a construir. Estamos os no século XXI e ainda não está pronta. Um papa, Bento XVI, consagrou-a, mas depois demitiu-se. (Entretanto) os terroristas islâmicos prepararam um atentado contra ela. Quer dizer, o projecto consistia em fazer explodir uma igreja inacabada. Toda a História da nossa civilização está concentrada neste edifício.”
De origens humildes, que ele gosta de proclamar como prova da sua persistência e genialidade, Onfray conseguiu com muito trabalho formar-se na Universidade de Caen que, evidentemente, ele considera uma fraude educacional. Fundou então uma “Universidade Popular” gratuita, em 2002, que não tem nem sede nem currículo – na prática trata-se de uma série contínua de conferências que ocorrem em teatros, cafés e até em praças, quase sempre gravadas em vídeo para memória futura. Para os mais interessados, há inclusive um canal designado Michel Onfray TV.
Vale a pena ler Onfray? As suas ideias são inteligentes e a leitura, para quem tem tempo e dúvidas sobre o “sens de la vie”, não é de todo desinteressante. Mas ele não colhe o trigo, apenas agita a seara.
Resumindo, é o ócio, no seu melhor. Uma conquista da civilização judaico-cristã europeia que seria pena se se perdesse.
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