Há 40 anos que o ritual é repetido diariamente por Carlos Domingos, pescador profissional de 61 anos, que, de botas de borracha e calças de lona, entra sozinho numa pequena embarcação ainda antes de o sol raiar e desliza pelas águas calmas da Lagoa de Santo André para conferir cada uma das 70 nassas que deixa submersas durante a noite.
Movimentos semelhantes são feitos por alguns pescadores da pequena comunidade piscatória local que, sozinhos ou em duplas, se avistam a deslizar lentamente pelo espelho de água, até regressarem, finalmente, à margem.
Quando Carlos Domingos regressa a terra, três ou quatro horas depois, o sol já brilha e sente-se o dia a aquecer.
O que parece um dia de inverno agradável para uns, não é tão bem visto por Carlos Domingos, que saiu do barco apenas com dois quilos de enguias “em mãos”, o que “é pouco” para um dia de trabalho, lamenta conformado.
“Na altura em que estamos a caminhar para a lua nova, se fizer vento forte e chuva, pode-se apanhar 30 a 40 quilos de enguia num dia e, num dia como hoje, calmo e frio, apanhei só dois quilos”, relata o pescador, que há décadas navega nas águas da Lagoa de Santo André para a pesca da enguia, seguindo as pisadas do pai, que deixou a atividade há apenas 10 anos, aos 81 anos.
A pesca da enguia na lagoa é uma atividade com “mais de 200 anos”, segundo o pescador, que recorda o tempo em que começou, ainda nos anos 70 do século passado, em que diz que “havia mais” pescado disponível e em que também a época da pesca “era maior”.
Atualmente, esclarece, o período em que se pode pescar está restringido a “cerca de cinco meses” repartidos pelo ano, assim como está estabelecido um limite máximo de redes por cada licença de pesca atribuída, o que reduz a rentabilidade da atividade.
Embora a pescaria do dia não tenha corrido bem, os meses de dezembro e de janeiro “são os melhores de todos” para apanhar enguias, afirma Carlos Domingos.
“São as melhores enguias e é a altura em que se movimentam mais, principalmente se fizer vento”, assegura o profissional.
Todo o pescado que captura tem como destino certo a cozinha de Ana Lúcia Beja, num restaurante a poucos quilómetros de distância.
A enguia capturada na Lagoa de Santo André, em plena Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha, é o ingrediente principal de um festival que envolve 12 restaurantes do concelho de Santiago do Cacém e que está a decorrer até dia 28.
Com golpes rápidos e certeiros, uns minutos antes da hora do almoço, Ana Lúcia Beja prepara algumas enguias, que deita numa cama de rodelas de cebola num tacho onde vai preparar um ensopado, servido com pão frito, um dos pratos “mais procurados” naquele restaurante durante o festival.
Embora a maioria dos pratos já fizessem parte do cardápio antes da existência do certame, que vai na 4.ª edição, o festival tem contribuído para a popularidade da enguia, afirma a cozinheira e proprietária do restaurante, que diz que a procura aumentou, com clientes provenientes de todo o país.
“A procura tem vindo a aumentar muito, temos esgotado enguias todos os anos, temos muita gente que vem do Porto, do Algarve, de todo o lado”, relata, destacando que “esta é uma das melhores alturas para comer enguias”.
Ana Maria Bandinhas, de Almada, foi uma das primeiras clientes a sentar-se à mesa, com a intenção de petiscar com os amigos vários pratos confecionados à base de enguias e não só.
“Eu frequento esta zona durante o ano e costumo comer as enguias, mas venho experimentar este restaurante pela primeira vez e vamos ‘fazer uma vaquinha’, por assim dizer, vamos experimentar vários pratos de enguia e também outros”, conta ainda antes de entrar no restaurante.
Cozida, grelhada ou frita, acompanhada de açorda, migas verdes, legumes ou, entre outros sabores tradicionais, de arroz de tomate a enguia da Lagoa de Santo André é o principal ingrediente no cardápio dos próximos 10 dias, nos estabelecimentos que integram o festival, promovido pela Câmara Municipal de Santiago do Cacém.
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