Primeiro foi o vozeirão – uma voz sacada aos melhores anos da soul norte-americana, uma daquelas vozes que se escuta, abre-se a boca de espanto, como é que ela é capaz de fazer aquilo?, toda uma panóplia de elogios pensados, a pele a contorcer-se perante tamanha demonstração de força. Depois foi a atitude. Lizzo chegou ao NOS Alive com a maior onda possível, espalhando espetaculares sorrisos por uma plateia que, a julgar pela indumentária, estava no Passeio Marítimo de Algés para, apenas e só, testemunhar (mais) um concerto dos Arctic Monkeys em Portugal.
Lizzo é um dos nomes mais fortes da pop atual mas, presumivelmente – até pela hora do concerto e pela sua posição no alinhamento –, poucos imaginariam que a sua estreia por terras lusas fosse algo de extraordinário. Talvez não tenha sido, talvez as nossas lentes se tenham embaciado com a magia da novidade. Isto, porém, é certo: poucas vezes nos divertimos tanto no NOS Alive como com ela. Não foi preciso recorrer a fogo de artifício, não foi preciso puxar de grandes espetáculos cénicos para deixar um público feliz. Bastou ser ela própria, mulher, negra, vítima das mais estúpidas injúrias em relação ao seu peso.
Uma série de frases motivadoras foi preenchendo o ecrã de fundo, antes da sua entrada. Destaca-se isto: “o amor é aquilo de que o mundo precisa para ser melhor”. Lizzo, por tudo o que já foi mencionado, sabe bem que o mundo pode ser, por vezes, aquela palavra começada por m. E ainda assim decidiu mandar tudo às urtigas e limitar-se a ser feliz com os seus fãs, que também os havia, que também trouxeram cartazes pedindo momentos parcos de atenção.
E mai nada
Boa parte deles teve sorte: houve um “parabéns a você”, houve uma fotografia tirada para o BeReal (depois de ela ter pedido, encarecidamente, para que não se atirassem telemóveis para o palco, numa referência às palermices que têm acontecido em concertos de outros artistas pelos EUA), houve um autógrafo, houve muitos obrigados em português e uma expressão que ficará na memória durante algum tempo – se é que não se tornará meme: ponto final!, que há-de ser a tradução que lhe foi dada para o period! inglês, expressão que tem um significado mais próximo do e mai nada.
Ponto final! Lizzo foi a estrela maior de um cartaz onde o rock até se sobrepunha, em termos de número, aos demais géneros. Linda Martini, primeiro, Idles, depois, Arctic Monkeys, ensanduíchados entre a norte-americana e Lil Nas X. Começou por nos encantar com 'Cuz I Love You', antes de puxar pelos galões de 'Juice', o palco cheio de mulheres – banda e segundas vozes – e o cenário a lembrar o funk dos anos 70.
É desses ritmos cintilantes que Lizzo mais bebe; não se pode dizer que a sua música se componha do presente, mas a frescura que dá a estes sons é notável. “Estamos prestes a tornar Lisboa em Lizzoboa!”, brincou. Fê-lo quando 'Girls' trouxe o dancehall ao Passeio Marítimo, fê-lo quando a sua guitarrista puxou ferro, e de imediato nos lembramos da conversa que tivemos com Mike Kerr, dos Royal Blood: “Quando tens boas canções e instrumentos para as tocar, é difícil rivalizar com essa energia”.
O meu corpo não é da conta que ninguém
Ao longo de uma hora e pouco, foi difícil rivalizar com ela. Das breakdancers de 'Tempo' passamos para uma mensagem gravada por Missy Elliott, a elogiar, e muito, a conterrânea. 'Rumors' contou, nos ecrãs, com os nomes de algumas das maiores artistas negras da história, casos de Tina Turner ou da “madrinha” Sister Rosetta Tharpe.
Com a frase o meu corpo não é da conta que ninguém, tomamos consciência de que este não é um concerto para todos; é-o para os que sofreram e sofrem com a discriminação alheia. Uma incursão por 'Yellow', dos Coldplay (“das minhas bandas preferidas”, admitiu), abrilhantou um espetáculo que alcançaria o seu zénite quando Lizzo saca da sua flauta e coloca milhares e milhares de pessoas, num festival de verão, a ouvir um instrumento que só tendemos a encontrar em orquestras. O fim, com a disco de 'About Damn Time', foi a cereja de ouro em cima de um bolo coberto de glitter. Ponto final! Precisávamos de algo assim para limpar os ouvidos e a alma.
Lil Nas X, que fações mais extremistas têm apelidado de “satânico”, não a corrompeu. Era também uma estreia, era também um nome sonante no cartaz do NOS Alive 2023, e só correspondeu às expetativas na medida em que já se calculava o que iria acontecer: uma debandada geral do recinto, primeiro, mal terminaram os Arctic Monkeys, e um concerto curto e repleto de backtracks, segundo, porque se há coisas que os rappers modernos têm é uma tremenda falta de confiança em entoar os seus próprios versos.
De tanga com umas botas azuis
Iniciando com vinte minutos de atraso e tendo à sua frente um nevoeiro inesperado, Lil Nas X trouxe consigo vários bailarinos e um cenário de grande concerto pop, mas ficou-se por aí a sua espetacularidade. Peruca loura, casaco felpudo ao quadrado e corpete dourado, o rapper andou por 'Montero (Call Me By Your Name)', parando para deixar passar em palco uma cobra gigante e metálica, à espera que a coreografia escondesse o facto de isto não ser um concerto, e sim uma mera presença: o seu corpo esteve ali, apreciemos o seu corpo, tudo o resto parece secundário. Quase que se apreciou mais do que o que se estava à espera quando o norte-americano rasgou as calças mesmo a meio, desculpando-se e dizendo que não tinha sido de propósito.
'Old Town Road', êxito no qual se fez passear montado num cavalo gigante, aqueceu as hostes que já só aguardavam por esse momento viral. 'Misirlou', aperfeiçoada por Dick Dale e apresentada via Black Eyed Peas, antecedeu uma inesperada “versão” de 'Something In The Way', dos Nirvana (entre aspas, pois só se escutou o refrão), e de 'Runaway', de Kanye West (e não percebemos se isto é problemático ou simplesmente genial – o queer que se apropria do tema de um homofóbico e torna-o seu). Um medley de canções alheias, onde foi um dos bailarinos a brilhar, permitiu-lhe trocar de roupa ou, melhor dizendo, tirá-la quase por completo, ficando apenas de tanga e calçando umas botas azuis. 'Down Souf Hoes' teve que ser reiniciada devido a um erro, ninguém sabia a letra de 'That's What I Want', e 'Industry Baby' fechou um espetáculo que podia, devia, ter sido bem melhor que isto. Talvez Lizzo lhe passe umas notas.
À tarde, o hip-hop tuga fez-se representar no Palco Clubbing, primeiro com Sleepytheprince (que trouxe autotune e palavras indecifráveis), depois com xtinto (que trouxe autotune e versos bem melhores). Este último, que editou “Latência” este ano, começou com a poesia de 'Katrina' e, acompanhado por banda, foi saltitando entre temas num volume altíssimo – sem no entanto nos conseguir fazer pensar em algo que não isto: para quê usar uma ferramenta (o tal autotune) que só serve para ocultar o enormíssimo talento que tem? Há-de chegar o dia em que os rappers da tuga deixem de lhe recorrer e seremos um país melhor por isso. Até lá, só o podemos lamentar.
O NOS Alive termina este sábado com concertos de Sam Smith, Queens of the Stone Age, Machine Gun Kelly e Jesus Quisto, entre outros.
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