Dentro do quadro de crispação que se vive na União Europeia, um dos episódios menos comentados tem sido a troca de antipatias entre Emmanuel Macron e Matteo Salvini devido a diferenças em relação à crise dos imigrantes e ao défice excessivo da Itália. Macron considera Salvini um populista anti-europeu, enquanto o italiano retribui não dando a Macron a importância europeia que ele pretende. Diferenças políticas, portanto. Mas o clima pouco amistoso chegou agora a uma área que não se previa: a Arte.
Na origem está a iniciativa do Museu do Louvre de assinalar os 500 anos da morte de Leonardo da Vinci com uma grande exposição das obras do florentino, em outubro de 2019. Uma iniciativa desta magnitude leva tempo a preparar; o Louvre, que é uma instituição estatal, estava em contacto com o anterior Governo italiano de Paolo Gentiloni, e este tinha-se prontificado a emprestar quadros e inúmeros desenhos de Leonardo da Vinci localizados em Itália.
Agora, Salvini, dentro do seu programa no género “Italians First”, veio lembrar que Leonardo pertence à cultura italiana e não à francesa. Tanto faz que o Louvre tenha uma das duas obras mais universais de Leonardo, a Mona Lisa. (A outra, “A Última Ceia”, está embebida na parede onde foi pintada, no Convento de Santa Maria das Graças, em Milão.)
A vida de Leonardo decorreu em vários locais, o que provoca uma disputa surda semelhante à do “nosso” Santo António de Lisboa, que para os italianos é de Pádua.
Acontece que quando Leonardo viveu, entre 1452 e 1519, a Itália não existia. A península estava pulverizada numa série de estados independentes. O mestre nasceu em Anchiano, dentro da fronteira de Florença, mas viveu em Milão, Veneza, Roma e Bolonha, antes de se instalar em Famboise, França, a convite do rei Francisco I. Só passou lá dois anos, entre 1517 e 1519. O rei francês tinha uma verdadeira veneração por ele e há uma lenda que diz que o pintor morreu nos seus braços.
Foi entre 1506 e 1508, quando vivia em Florença, que Leonardo pintou a Mona Lisa – calcula-se que tenha terminado em 1507, mas nunca a entregou ao mecenas que a encomendara, Francesco del Giocondo, e continuou a dar-lhe retoques até ao fim da vida. Quando foi viver sob o mecenato de Francisco I, levou-a consigo. O herdeiro do quadro, o seu discípulo Salaì, vendeu-o ao rei, e a Mona Lisa passou a viver em Versailles. Depois da Revolução de 1789 passou para o Louvre, onde está até hoje. Mais acessível do que “A Última Ceia”, a pintura é vista anualmente por cerca de 8,1 milhões de visitantes.
Ora, os italianos, assim que passaram a ser italianos – em 1861, quando Mazzini e Garibaldi conseguiram unificar a península – sempre acharam que era uma injustiça a Mona Lisa estar em França. Em 1911, um nacionalista italiano, Vincenzo Peruggia, fez-se empregado do Louvre e conseguiu roubar o quadro. Vendeu-o à Galeria Uffizi de Florença, mas ao fim de duas semanas na galeria e quatro anos em Itália, a Gioconda foi devolvida ao Louvre. Peruggia, considerado um herói em Itália, apanhou seis meses de cadeia. É interessante que foi este incidente que tornou o quadro universalmente famoso; anteriormente só era valorizado pelos especialistas.
Que Leonardo da Vinci é italiano, nem os franceses disputam. A ideia do Louvre, de fazer a grande exposição dos seus 500 anos, não teve a intenção de levantar problemas com os italianos. Estava previsto que a Itália emprestaria todos os quadros “portáteis” e milhares de desenhos. (“A Última Ceia”, que é um fresco, não pode sair da parede onde está.) Há poucos quadros de Leonardo e milhares de esboços e desenhos, tanto artísticos como sobre os muitos interesses da sua vida, mas todos considerados, evidentemente, peças de arte. A troco pela cedência, a França enviaria todos os seus Rafael para a Itália, para ser esta a comemorar os cinco séculos do outro grande artista do Renascimento.
França e Itália: uma rivalidade antiga na disputa pela arte
Tudo isto ocorreu durante os governos anteriores dos dois países. A nova ministra dos Bens Culturais e Turismo de Itália, Lucia Borgonzoni, da Liga do Norte, tem um conceito nacionalista da cultura. “Não é por ser a França, aconteceria o mesmo com a Finlândia” diz ela. “Embora tenha morrido em França, Leonardo é um génio italiano e não lhes vamos dar tudo a troco de nada.” É que, segundo Lucia, há somente um quadro portátil de Rafael em França, portanto a troca não seria equitativa.
O director da Galeria Uffizi, que por acaso é alemão, concorda com a ministra, mas por razões técnicas; os três quadros que viajariam para França são muito frágeis. Quando muito, emprestaria alguns desenhos.
Em França, o Louvre tem evitado falar no assunto, mas o mal-estar é evidente, porque a exposição seria o grande acontecimento do museu em 2019. Mas, no Governo, o ministro da Cultura, Fréderic Mitterrand (sobrinho do ex-Presidente), deu uma entrevista em que falou amargamente do assunto. Lembrou ele, há muito que há uma tradição dos grandes museus emprestarem obras entre si para a organização de exposições temáticas. “Não posso acreditar que a decisão da ministra italiana seja por razões culturais; trata-se um uma crise de raiva nacionalista”.
Portanto o caldo está entornado. Sempre existiu uma rivalidade cultural entre a Itália e a França, em termos de quem é que tem mais arte e mais turismo artístico. Em museus, a França bate de longe Itália, uma vez que o único museu da península que tem um número de visitantes próximo do Louvre é o do Vaticano, um estado independente da República.
A exposição vai acontecer, com os cinco quadros que o Louvre tem (um terço das pinturas de Leonardo conhecidas), mais os que outros museus irão emprestar – com excepção dos italianos.
As obras de Leonardo estão muito dispersas. A coroa britânica possui centenas de desenhos; há outros em dois museus franceses e na Real Biblioteca de Madrid. Em Milão está a frágil e inamovível Última Ceia, e há duas peças pintadas na Galeria Uffizi de Florença. O Vaticano tem o São Jerónimo. Há peças na Galeria Nacional de Washington, no Hermitage de São Petesburgo, em Cracovia e em Munique.
Até agora os empréstimos entre museus, embora sempre complicados e dispendiosos – as peças viajam em embalagens especiais, com seguros muito caros – realizavam-se com demora, mas sem estados de espírito. O nacionalismo no comércio mundial surge como um entrave à livre circulação de mercadorias e provoca custos acrescidos ao consumidor. O nacionalismo em Arte, além de gerar historicamente peças de menor valor, impede que possa ser usufruída por um maior número de pessoas, além de impedir ver no mesmo local obras que estão dispersas por todo o mundo.
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