A Área Metropolitana do Porto (AMP) promove desde o final de setembro quatro roteiros pelos patrimónios dos concelhos que a constituem. Os trajetos, divididos em quatro guias — ”Ofícios e Indústrias", "Barroco", "Património dos Caminhos de Santiago" e "Artes e Arquitetura" — permitem conhecer os 17 municípios sob diferentes perspetivas, tão diversas, mas tão reveladoras do que é ser o grande Porto.

Pegando em dois desses livros (Património dos Caminhos de Santiago e Ofícios e Indústrias), fomos então, em duas tardes, à procura desse tal outro Porto que não é somente a cidade, mas toda a região, da Póvoa de Varzim a Oliveira de Azeméis. Partindo do centro do Porto, o primeiro destino é logo ao lado: Leça do Balio, Matosinhos.

A fé dos homens e a voz das pedras

No silêncio tumular do Mosteiro de Leça do Balio, a luz escorre da enorme rosácea sobre a porta principal. É a primeira paragem de uma volta pelos roteiros organizada pela AMP. Numa capela ao lado do altar, houve apenas a voz do historiador Joel Cleto, que, apontando para as figuras numa placa de bronze já escuro, vai descrevendo a cena em que Maria, mãe de Jesus, emprenha pelo ouvido — o esquerdo, fazendo fé na gravura.

O mosteiro, exemplo do gótico na região, é o ponto de partida numa tarde quente de setembro, para o património dos caminhos de Santiago no grande Porto. Aqui, a história do lugar vai encontrando a história desse alegado Tiago, discípulo de Jesus, que ao norte da península há de ter vindo para espalhar a religião católica.

Com origem no século X, ainda antes de Portugal o ser, surge na doação de D. Teresa à Ordem dos Cavaleiros Hospitalários de S. João de Jerusalém — a Ordem de Malta. O edifício atual surge depois, já no século XIV, mandado construir por D. Estevão Vasques de Pimentel.

Que sentido teria, porém, a Ordem do Hospital vir para Leça, quando a fronteira do Condado Portucalense andava lá para baixo, no Mondego? Não teria nenhum, não fosse passar pelo Mosteiro um caminho sagrado — o de Santiago.

No museu, recentemente aberto, está lá essa história. Está a memória do lugar, entre lendas e gravuras apagadas. Há cenas de milagres, de vieiras de matizados. Matizadinhos, na verdade, esclarece Joel Cleto, ou não viesse daí o topónimo da terra: Matosinhos.

De Leça, a camioneta segue para o topo norte da Área Metropolitana do Porto: Póvoa de Varzim. Óscar vem no autocarro. Pelo caminho, conta as histórias que tem com este mesmo património de Santiago. Fez o caminho de Santiago pela primeira vez em 2010, de bicicleta. Voltou lá mais duas vezes. Desempregado em 2011, pôs-se pelo caminho francês e acabou-o em duas semanas.

Hoje, conta a experiência no Albergue de Peregrinos do Porto, que dirige. Começou curto em 2016. Hoje, é um lugar concorrido, explica. Já por lá passaram mais de 10 mil pessoas, de uns 160 países.

A experiência permite-lhe dizer, por exemplo, que a idade dos peregrinos varia como variam as estações do ano. Os que têm entre 50 e 80 anos, vêm na fresca amena ali de março a julho. O quente do verão é para os mais jovens.

Voltando a setembro, regressam os velhos — reformados, pessoas com mais recursos — até ao final de novembro, explica.

Vêm polacos, espanhóis, italianos e ingleses. Vêm brasileiros, que chegam a ser mais que os portugueses.

O sol torra. Um peregrino faz à volta de 25 quilómetros por dia. Chegado a São Pedro de Rates, na Póvoa, a igreja, datada de 1100, é pouso obrigatório. Para recolher o fresco da pedra e pedir ao altar as forças para o resto do caminho.

São Pedro de Rates, diz a tradição, foi o primeiro bispo de Braga e primaz das Espanhas por nomeação direta do seu mestre — o próprio apóstolo Santiago.

Quem o conta é José Flores, arqueólogo da câmara municipal da Póvoa de Varzim. Lá dentro, monumento imperfeito, porque inacabado, veem-se as hesitações do que não chegou a ser. Os arcos que não deram a volta, as colunas que não subiram. A Igreja de São Pedro de Rates foi mandada construir pelo conde Dom Henrique e é um exemplo do românico, ainda antes de Portugal.

Foi feita em cima de uma outra que lhe ocupava o lugar, onde esteve o túmulo desse São Pedro de Rates.

Ao lado, um museu. Dentro, guarda a memória do que foi a igreja, do que lhe tiraram nos anos 1940. Do que lhe fizeram. Quis um cura que se guardassem os despojos — entre eles aquela que se considera ser a mais antiga estátua de Dom Afonso Henriques, peça em granito do século XII.

Dali, é descer um pouco, para Vila do Conde. De olhar altivo sobre o rio, o Convento de Santa Clara vigia o horizonte. Começou a ser construído em 1318, por D. Afonso Sanches. O tempo foi-lhe dando feições ao gosto de cada época — góticas, manuelinas, barrocas e rococó.

Estes são só três dos lugares no roteiro que segue os caminhos de Santiago. Para lá do sagrado, o profano. A memória e a lenda; a arquitetura. A pedra que mostra a importância dos sítios por onde caminham os que vão seguindo a fé até Santiago de Compostela, na Galiza. É a fé dos homens que os move, mas a voz das pedras que os guia.

O engenho, o delicado e a novidade

Nem só de fé se vestem os homens. Para os hábitos mais mundanos são necessários tecidos, ornamentados ou não. No meio de prédios altos, num ponto inóspito de Matosinhos, entre jardins maltratados e crianças que jogam à bola no meio da estrada sem carros, há uma garagem.

A presença de tal coisa pouco tem de espetacular, não fosse ela simultaneamente armazém de carros, auditório de ranchos e museu.

É o Museu do Milho e do Linho, em Padrão da Légua, Matosinhos. Inaugurado no meio dos anos 1990, por Narciso Miranda, é exemplo literal do engenho, mas também da dedicação de quem encabeça o Rancho Folclórico de Padrão da Légua, que abre as portas ao inusitado museu.

Aqui, está tudo. Está a terra onde caem as sementes do milho; os genes do linho. Estão os bois que arrastam a maquinaria por essa terra. Estão as sementes, os moinhos e os teares. E tudo funciona — embora em réplica museológica do que já foi labuta.

Destas máquinas, saiu farinha; saiu pão. Saiu linho, saiu roupa. Hoje, saem os gemidos da madeira, os roncos das pedras roçando uma na outra.

O pão alimentava as bocas; o linho os dedos e alfinetes das rendilheiras. Em Vila do Conde, próxima paragem, no Museu da Renda de Bilros, mostra-se isso mesmo. Começou por ser escola, hoje, é mais que isso.

Instalado num solar urbano, numa estreita rua do concelho, tem ainda hoje à frente a neta da primeira mestra dessa escola que foi. Lá dentro, no meio de vestidos de noivas e muitos atoalhados, Isalinda, Gorete e Ester, sentadas a um canto da exposição, dão vida à arte.

Os alfinetes alinhados, os pesos e os dedos precisos vão replicando os curtos desenhos. Ao lado, imponente, todo um arco dessas rendas. Foi feito por centena e meia de mulheres e está inscrito no livro de recordes do Guinness.

O fascínio pela renda não é novo. Reza a história, ou a lenda que dela fizeram, que quando foi D. Sebastião à guerra, era maior a preocupação com sedas, rendas e meias — que, indefeso, lá acabou por ficar o jovem rei, esse que um dia ainda há de regressar, ou assim o dizem os videntes do futuro nacional.

Em cima do museu, a arte é ensinada. Novas e velhas. Novos e velhos. A renda de bilros é para todas e todos, da menina mais pequena, ao homem mais velho. Dispostos em filas, agarrados às linhas, vão desenhando com os fios.

Fios. Importante matéria-prima na Fábrica do Teles, como chama o povo de Santo Tirso à Fábrica de Santo Thyrso. É o próximo destino do autocarro. Já foi grande empregador — fechou em 1990 quando ainda tinha 900 trabalhadores. Fundada em 1898, foi uma das mais emblemáticas fábricas de fiação e tecidos do Vale do Ave, epicentro da indústria têxtil e do vestuário nacional.

Hoje, é o quarteirão cultural e criativo da cidade. Reabilitada pela autarquia, renasceu para ser incubadora de novos projetos e ideias, mas também receber eventos. O centro interpretativo é a caixa das memórias — ao mesmo tempo que na sala ao lado se desenham as tendências de amanhã, nos ateliers para designers incubados neste pólo criativo.

E todo o roteiro dos Ofícios e das Indústrias é isto: passado e presente; passado no presente. A proposta é sair do centro da cidade e ir conhecer o mais que há no Porto fora do Porto. Juntando-lhe os outros três, a figura fica completa.

Os quatro livros, em formato físico, estarão disponíveis gratuitamente nas lojas de turismo dos municípios, ou, em formato digital, no portal PIN.