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Presente

Enquanto as portas da prisão se fecham atrás de mim, questiono todas as decisões que alguma vez tomei na minha vida.

Não é aqui que quero estar neste momento. De todo. Quem quer estar numa penitenciária de segurança máxima? Aposto que ninguém. Se alguém está entre estas paredes, o mais provável é que tenha feito algumas escolhas erradas na vida ao longo do caminho.

Eu fi-las certamente.

– Nome?

Uma mulher com o uniforme azul dos guardas prisionais fita-me por detrás da divisória de vidro mesmo à entrada da prisão. Os seus olhos são baços e vítreos, e não parece ter mais vontade do que eu de estar aqui.

– Brooke Sullivan. – Pigarreio. – É suposto encontrar-me com a Dorothy Kuntz?

A mulher olha para uma prancheta com papéis à sua frente. Perscruta a lista, sem dar qualquer sinal de que me ouviu ou de que sabe seja o que for sobre o porquê de eu estar aqui. Olho para trás de mim, para a pequena sala de espera, que está vazia, exceto por um velho enrugado sentado numa das cadeiras de plástico, a ler um jornal como se estivesse sentado no autocarro. Como se não houvesse uma vedação de arame farpado a rodear-nos, pontilhada por pesadas torres de vigia.

Após o que me parecem ser vários minutos, um zumbido ecoa pelo espaço – suficientemente alto para me fazer saltar e dar um passo atrás. Uma porta à minha direita, com grades verticais vermelhas, abre-se lentamente, revelando um longo corredor mal iluminado.

Olho para o corredor, os pés presos ao chão.

– É para… é para entrar?

A mulher ergue os seus olhos baços para mim.

– Sim, vá. Passa pelo controlo de segurança ao fundo do corredor.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Acena na direção do corredor escuro, e um calafrio percorre-me ao atravessar hesitantemente a porta gradeada, que se fecha e tranca novamente com um baque sonoro. Nunca estive aqui. A minha entrevista de emprego foi por telefone, e o diretor estava tão desesperado por me contratar que nem sentiu a necessidade de me conhecer primeiro – bastaram-lhe o meu currículo e as cartas de recomendação. Assinei um contrato de um ano e enviei-o por fax na semana passada.

E agora estou aqui. Pelo próximo ano da minha vida.

Isto é um erro. Jamais deveria ter vindo.

Olho para trás, para as grades vermelhas de metal que se fecharam já atrás de mim. Ainda não é tarde de mais. Apesar de ter assinado um contrato, de certeza que me podia livrar dele. Ainda podia dar meia-volta e deixar este lugar. Ao contrário dos residentes desta prisão, eu não tenho de estar aqui.

Não queria este emprego. Queria qualquer outro menos este. Mas candidatei-me a todos os empregos a uma distância de sessenta minutos de viagem da vila de Raker, no interior de Nova Iorque, e esta prisão foi o único sítio que me ligou de volta para uma entrevista. Era a minha última opção e senti-me sortuda por a obter.

Por isso, continuo a andar.

Está um homem no controlo de segurança ao fundo do corredor, a guardar uma segunda porta gradeada. Ronda os quarenta anos, com o cabelo cortado à escovinha, ao estilo militar, e veste o mesmo impecável uniforme azul que a mulher de olhos mortos da receção. Olho para o crachá de identificação preso ao seu bolso do peito: guarda prisional Steven Benton.

– Olá! – cumprimento, numa voz que reconheço ser demasiado alegre, mas não consigo evitar. – Chamo-me Brooke Sullivan e é o meu primeiro dia a trabalhar aqui.

A expressão de Benton não se altera enquanto os seus olhos negros me percorrem. Retorço-me, repensando em todas as escolhas de moda que fiz esta manhã. Vindo trabalhar para uma prisão de segurança máxima masculina, calculei que seria melhor não me vestir de uma forma que pudesse ser interpretada como sugestiva. Trago, pois, umas calças formais pretas largas, combinadas com uma blusa preta de manga comprida. Estão quase vinte e sete graus lá fora, um dos últimos dias quentes do verão, e começo a arrepender-me de me ter vestido toda de preto, mas pareceu-me a melhor forma de não atrair atenções para mim. O meu cabelo escuro está preso atrás num simples rabo de cavalo. A única maquilhagem que trago é um pouco de corretor para esconder as olheiras sob os meus olhos e um laivo de batom que é quase da mesma cor dos meus lábios.

– Da próxima vez – diz ele –, nada de saltos altos.

– Oh! – Olho para os meus sapatos pretos. Ninguém me deu qualquer orientação sobre o código de vestuário, e muito menos em relação aos sapatos. – Bem, não são muito altos. E são grossos. Não são afiados nem nada. Não me parece realmente…

Os meus protestos morrem-me nos lábios enquanto Benton me olha fixamente. Nada de saltos altos. Entendido.

Benton passa a minha bolsa por um detetor de metais e a seguir passo eu por um muito maior. Gracejo nervosamente sobre como parece que estou no aeroporto, mas dá-me a sensação de que este sujeito não gosta lá muito de piadas. Da próxima vez, nada de saltos altos nem de gracejos.

– É suposto encontrar-me com a Dorothy Kuntz – digo-lhe eu. – É enfermeira aqui.

Benton resmoneia.

– Também é enfermeira?

– Técnica de enfermagem – corrijo eu. – Vou trabalhar no consultório da prisão.

Ele arqueia uma sobrancelha.

– Boa sorte com isso.

Não sei muito bem o que quer dizer ao certo.

Benton prime um botão e, mais uma vez, o zumbido ensurdecedor dispara, mesmo antes de o segundo conjunto de portas gradeadas se abrir. Indica-me um corredor que vai dar à ala médica da prisão. Há um estranho cheiro a químicos no corredor e as luzes fluorescentes do teto não param de piscar. A cada passo que dou, apavora-me que algum dos presos possa aparecer do nada e me espanque até à morte com um dos meus sapatos de salto alto.

Ao virar à esquerda ao fundo do corredor, vejo uma mulher à minha espera. Ronda os sessenta anos e tem o cabelo grisalho cortado curto e uma constituição robusta – há algo de vagamente familiar nela, mas não consigo identificar o quê. Contrariamente aos guardas, veste um pijama cirúrgico azul-marinho. Tal como todas as outras pessoas que conheci até agora nesta prisão, não sorri. Pergunto-me se será contra as regras daqui. Devia verificar o meu contrato. Os funcionários podem ser despedidos por sorrir.

– Brooke Sullivan? – pergunta ela, num tom seco que é mais grave do que eu esperava.

– Isso mesmo. É a Dorothy?

Tal como o guarda à entrada, ela olha-me de cima a baixo. E, tal como ele, parece absolutamente dececionada com o que vê.

– Nada de saltos altos – informa-me.

– Eu sei. Eu…

– Se sabe, porque os calçou?

– Quer dizer… – Sinto o rosto a arder. – Sei agora.

Relutantemente, ela aceita esta resposta e decide não me obrigar a passar a minha orientação descalça. Acena-me com a mão e eu sigo-a obedientemente pelo corredor. Todo o exterior da ala médica tem o mesmo cheiro a químicos que o resto da prisão e as mesmas luzes fluorescentes a piscar. Há um conjunto de cadeiras de plástico alinhadas contra a parede, mas estão vazias. Ela abre a porta de uma das salas.

– Esta será a sua sala de exame – comunica-me.

Espreito para o interior. A sala tem cerca de metade do tamanho das do centro de atendimento de urgência onde costumava trabalhar em Queens. Mas, fora isso, parece igual. Uma mesa de exame ao centro da divisão, um banco para eu me sentar e uma pequena secretária.

– Terei um gabinete? – interrogo.

A Dorothy abana a cabeça.

– Há ali uma secretária. Não vê?

É então suposto fazer os registos com os pacientes a olhar-me por cima do ombro?

– E quanto a um computador?

– Os registos médicos são todos em papel.

Fico estupefacta ao ouvir isso. Nunca trabalhei em nenhum lugar onde os registos médicos fossem em papel. Nem sabia que ainda era permitido. Mas suponho que as regras sejam um pouco diferentes na prisão.

Ela aponta para uma divisão ao lado da sala de exame.

– Ali é a sala dos registos. O seu crachá de identificação abri-la-á. Dar-lhe-emos um antes de sair.

Ergue o seu crachá para o leitor na parede e ouve-se um forte estalido. Abre a porta, revelando uma pequena sala empoeirada cheia de arquivadores. Montes e montes de arquivadores. Isto vai ser uma agonia.

– Têm cá algum médico a supervisionar? – pergunto eu.

Ela hesita.

Livro: "O recluso"

Autor: Freida McFadden

Editora: Alma dos Livros

Data de Lançamento: 11 de janeiro de 2024

Preço: € 19,45

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– O doutor Wittenburg cobre cerca de meia dúzia de prisões. Não o verá muito, mas está disponível por telefone.

Isso deixa-me inquieta. Nas urgências, nunca estava sozinha. Mas suponho que os problemas lá eram mais agudos do que os que verei aqui. Ou, pelo menos, assim espero.

A nossa próxima paragem na visita guiada é a sala de aprovisionamento. É basicamente igual à do centro de atendimento de urgência, mas, claro, mais pequena – também com acesso via crachá de identificação. Contém ligaduras, material de sutura e vários caixotes, tubos e químicos.

– Só eu posso dispensar medicamentos – diz-me a Dorothy. – Escreve o pedido e eu dispenso a medicação ao paciente. Se houver algo que não temos, podemos fazer uma encomenda.

Esfrego as mãos suadas contra as minhas calças pretas.

– Certo, entendido. A Dorothy lança-me um olhar demorado.

– Sei que está nervosa por ir trabalhar numa prisão de segurança máxima, mas tem de saber que muitos destes homens ficarão gratos pelos seus cuidados. Desde que seja profissional, não terá qualquer problema.

– Certo…

– Não partilhe quaisquer informações pessoais. – Os seus lábios fixam-se numa linha reta. – Não lhes diga onde vive. Não lhes diga nada sobre a sua vida. Não exponha nenhuma fotografia. Tem filhos?

– Tenho um filho.

A Dorothy fita-me, surpreendida. Estava à espera de que eu dissesse que não. A maioria das pessoas fica admirada quando digo que tenho um filho. Apesar de ter vinte e oito anos, pareço muito mais nova. Embora me sinta muito mais velha.

Tenho ar de quem anda na universidade e sinto-me como se tivesse cinquenta anos. É a história da minha vida.

– Bem – diz a Dorothy. – Não fale no seu filho. Mantenha as coisas profissionais. Sempre. Não sei ao que estava habituada no o recluso 13 seu antigo emprego, mas estes homens não são seus amigos. São criminosos que cometeram transgressões extremamente graves, e muitos deles vão passar aqui o resto da vida.

– Eu sei. – Oh, se sei.

– E, acima de tudo… – Os gélidos olhos azuis de Dorothy cravam-se em mim. – Tem de se recordar de que, ainda que a maioria destes homens a venham ver por motivos legítimos, alguns deles vêm cá para conseguir drogas. Temos uma pequena quantidade de narcóticos na farmácia, mas estão reservados para ocasiões raras. Não deixe que estes homens a persuadam a receitar narcóticos para consumo abusivo ou venda.

– Com certeza…

– Além disso – acrescenta ela –, nunca aceite qualquer tipo de pagamento em troca de narcóticos. Se alguém lhe fizer uma proposta desse tipo, dirija-se imediatamente a mim.

Inspiro fundo.

– Eu jamais faria isso.

A Dorothy lança-me um olhar contundente.

– Sim, bem, foi o que a última disse. Agora, vai acabar também num sítio destes.

Por um momento, fico sem palavras. Quando o diretor me entrevistou, perguntei pela última pessoa a trabalhar aqui e ele disse-me que tinha partido por «razões pessoais». Não referiu que tinha sido presa por vender narcóticos aos reclusos.

É intimidante pensar que a última pessoa que teve este emprego antes de mim está agora encarcerada. Ouvi dizer que, uma vez dentro do sistema prisional, é difícil sair dele. Talvez o mesmo se aplique às pessoas que aqui trabalham.

A Dorothy vê a expressão no meu rosto e o seu semblante suaviza-se ligeiramente.

– Não se preocupe – diz ela. – Não é tão assustador como julga. Na verdade, é como qualquer outro emprego no ramo da medicina. Vê pacientes, ajuda-os a melhorar e depois manda-os de volta às suas vidas.

– Sim… – Esfrego a parte de trás do pescoço. – Perguntava-me só se… Vou ser eu a responsável por ver todos os reclusos da penitenciária? Ou, tipo, cubro só uma secção e…?

Os seus lábios curvam-se.

– Não, não há mais ninguém, rapariga. Vai ver toda a gente. Tem algum problema com isso?

– Não, de todo – respondo eu.

Mas é mentira.

A verdadeira razão por que estava relutante em aceitar este emprego não é por ter medo de que um dos presos me assassine com o meu próprio sapato. É por causa de um dos reclusos desta prisão. De alguém que conheci há muito tempo, que não estou ansiosa por voltar a ver.

Mas não posso dizer isso à Dorothy. Não lhe posso revelar que o homem que foi o meu primeiríssimo namorado é um dos reclusos da Penitenciária de Segurança Máxima de Raker, atualmente a cumprir pena de prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.

E que fui eu que o pus cá.