O gosto pelos crepúsculos

Durante muito tempo, o outro nome que dei ao Sexo foi Amor. Mas o nome que devia ter dado ao Sexo era Apetite. Um muito forte apetite. Um monumental distúrbio alimentar. Uma bulimia com fases de voracidade, de nojo, de vómitos, e seguia para bingo. Ingere-se, ingere-se e, como não se digere, deita-se fora e depois é o vazio, vem a fome, tem-se fome da fome e voltamos a encher a pança.

Luísa Sobral vem ao É Desta Que Leio Isto. Quer ler "Apenas Miúdos", de Patti Smith? Junte-se à conversa

Luísa Sobral junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 14 de setembro, pelas 21h.

Habituada a recomendar leituras nas suas redes sociais, traz um livro para o clube É Desta Que Leio Isto — e não deixa a música de fora: "Apenas Miúdos", de Patti Smith.

"Apenas Miúdos", de Patti Smith

Este é o primeiro livro de Patti Smith em prosa. É um livro de memórias — que começa no Verão em que Coltrane morreu, do Verão do amor livre e de todos os motins, do Verão em que conheceu a figura central deste livro — o lendário fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. Mas é também um retrato de época — dos dias do Chelsea Hotel e de Nova Iorque no fim dos anos 1960 — e uma comovente história de juventude e amizade.

Just Kids é uma fábula em que encontramos poesia, rock’n’roll, sexo e arte que começa numa história de amor e acaba numa elegia.

Sobre Luísa Sobral:

Luísa Sobral é considerada uma das cantoras-compositoras mais importantes da nova geração de músicos portugueses. Estreou-se em 2011 com ‘The Cherry on My Cake’. Seguem-se ‘There’s A Flower In My Bedroom’ (2013), com convidados como Jamie Cullum, António Zambujo e Mário Laginha, ‘Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa’ (2014), destinado ao público infantil, e ‘Luísa’ (2016), gravado em Los Angeles. ‘Rosa’, o quinto álbum de originais, chegou em 2018.

"A sua faceta de compositora vai-se destacando ao longo dos anos, chegando a compor para artistas como Ana Moura, António Zambujo, Gisela João, Sara Correia, Mayra Andrade, entre muitos outros. Em 2017, assina ‘Amar Pelos Dois’, que entrega ao irmão, Salvador Sobral, para interpretar. A parceria fraterna revela-se um estrondoso sucesso: Portugal conquista a sua primeira vitória de sempre na Eurovisão", pode ler-se na sua biografia.

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Trambolhão garantido. Um dia, acabou-se. O nojo. O distanciamento. A irritação. A vendeta. A despedida. O homem passa a ser apenas aquele que quer enterrar as garras. Tem raiva. Merece ser morto. Corto-lhe a cabeça.

Para mim, o sexo não era a consumação do amor ou uma das suas expressões, era sempre um ritual de mortificação. Tinha um prazer clínico em sentir-me suja. E era preciso que o ultraje fosse acompanhado de palavras. As palavras atacavam-me em pleno coração. E depois as palavras já não bastavam. E os gestos eram sempre os mesmos. Tão sujos com este como com aquele. Foi assim, sem alento, sem inspiração, que me pus a desejar a velhice. Só a velhice poderia atentar à minha integridade física. Como uma segunda pele que lacerasse a minha. A minha juventude conspurcava-se de um modo totalmente irreversível.

Aos vinte anos vivi histórias com um homem que tinha oitenta, promessa de uma derrocada inesquecível. Este homem tinha sobre mim um ascendente. Trabalhava para ele. E ele tinha de me ensinar um ofício. Pensava absorver o seu talento como uma esponja, sugar a substancial medula do génio criador. Aprender a fazer rir, aprender a viver. Só aprendi a morrer um pouco mais. Na realidade, ele é que absorvia a vida em mim. Estávamos os dois em transfusão. Eu, de morte; ele, de vida. E cada qual vivia uma experiência contranatura. Havia naquilo qualquer coisa de monstruoso. Aliás, ele não compreendeu quando me fui embora. Chamava amor ao que eu entendia ser uma doença. Já não era uma questão de palavras. Eu oscilava. Pensamentos de sexo ou de morte. Depois o sexo e a morte sobrepuseram-se para formarem uma única e mesma imagem.

Deixei-o.

Os anos foram passando.

E eu nunca deixei de repisar este momento da minha vida que ainda me rói como um desgosto. Quando penso nesse homem, sangro. Mas não é a ponta acerada de uma agressão na carne o que sinto, é uma vaga de fundo que me arrasta para o abismo.

E, no entanto, que tenho eu a censurar-lhe?

Livro: "O Sexo das Mulheres"

Autor: Anne Akrich

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 7 de setembro de 2023

Preço: € 17,70

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Dei comigo em casa dele para aprender. Mas a lição que recebi foi diferente da que eu esperava. Uma rapariga de vinte anos não tem nada a fazer sexualmente com um velho de oitenta. Por mais inteligente, divertido, brilhante que ele seja. Nada. Já que há uma proibição do incesto, devia haver uma proibição da velhice. O incesto tem a carga da congenitalidade, da consanguinidade, da deterioração genética sobre o grupo. A velhice, quando se atravessa na vida, traz a carga de uma capa de morte sobre o grupo, a velhice deveria transmitir antes de se extinguir e não extinguir antes de morrer. Risco? A não-reprodução. A extinção da espécie.

Entretanto vou dizendo a mim própria que seria primordial descobrir a verdade do sentimento que encontrei nessa altura. Senti-o porque o disse. Amo-te. E se não for capaz de reencontrar essa verdade, a do passado, se tiver de me mostrar desleal em relação àquela que pronunciou essas palavras, então a minha identidade sairá ainda mais abalada, ficarei ainda mais disforme. Por isso me esforço por tentar reencontrar a verdade desse instante e por me agarrar a ele.

Esta deslealdade de uma pessoa para consigo chega, porém, muito cedo. Os nossos gostos mudam. Durante muito tempo pensei que bastava fazer amor uma vez com uma pessoa para saber que tínhamos um cartão digital com todas as nossas preferências inscritas em nós. E a seguir ficava resolvido. Tínhamos dado a volta e bastava desempenhar de novo sob outra forma o papel que os deuses nos tivessem atribuído. Nas minhas abluções quotidianas prestava sempre homenagem aos gostos que me tinham sido confiados e dos quais era depositária. No entanto, gostava de uma coisa, e depois de outra, deixava de gostar dessa para depois a domar de novo, não explorava determinado gosto, estava sempre a descobrir novos antes de os renegar, de os esconder, tanto e tão bem que percebi que não era um único selo que me ficava marcado a ferro em brasa, mas uma sucessão de desejos que esculpiam a geografia da minha sexualidade. Os nossos gostos sobrepõem-se, sedimentam-se, contradizem-se por vezes.

Os homens a quem se diz Aquele momento que partilhámos há uns anos, não o queria, eles não podem compreender. Pensam que desnaturamos a sua história. Veem aí a influência do puritanismo contemporâneo. Supõem-se os únicos detentores da verdade da história que viveram, uma história singular. Ela viveu a história como ele a viveu, e se hoje tem dela uma versão diferente, é por ter sido influenciada. Não há ser que não se agarre desesperadamente ao instante em que lhe foi dita uma palavra de amor. O amor, inexpugnável asilo. Mesmo que o assaltemos, nunca se dará por vencido. Uma vez pronunciadas as palavras, já não se faz marcha-atrás. Amamos. Amámos. E não nos teremos enganado. Amámos. Só as palavras de amor importam.

Se, vinte anos depois, o homem ouve dizerem-lhe Disse-o sem pensar, era mais cómodo para mim, foi a maneira de fingir reciprocidade, não é capaz de acreditar nisso.

— Ora, como podes tu dizer semelhante coisa?

Se começamos a dizer Nunca gostei disso, se lermos o passado com as lentes do presente, se substituirmos ontem por hoje, adulteramos a experiência, subvertemo-la, transformamos uma recordação num acontecimento. A verdade é o momento tal como o vivemos quando o vivemos.

Triste revelação para as mulheres que percebem que todo o prazer veio do desejo de morte.