Prólogo

«Não há heróis, mas sim gado que vai para o matadouro e para os talhantes nos estados-maiores generais.»*

10 DE SETEMBRO DE 1976
Čtyřkoly, Checoslováquia

A cerca de 30 quilómetros de Praga, numa vila ribeirinha sem distinção, Karel encontra-se numa divisão com paredes sem graça e com uma lareira fria e apagada. Ele não sabe porque está ali.

A casa, de aspeto vulgar, permanece vazia durante a maior parte do tempo, mas os vizinhos tendem a manter-se à distância. Por vezes, eles veem pessoas a espreitar nas imediações da casa; os Tatra 630 pretos, distribuídos pelo governo, que estão estacionados no exterior indicam que essas pessoas não estão a fazer coisa boa. O melhor será ir pelo caminho mais longo quando se passeia o cão ou se sai para beber uma cerveja. Do lado de lá do rio há um bar com esplanada. Como se se tratasse de um episódio tirado da mitologia grega, um barqueiro com uma estaca pode levar quem queira atravessar o rio.

Aquele dia fresco de setembro durante o qual corre uma brisa constitui um agradável alívio ao agosto escaldante de Nova Iorque. Mas, enquanto Karel ajeita o colarinho do seu blazer Brooks Brothers, ocorre-lhe que não vê o passaporte desde que atravessaram a fronteira. Isso não pode ser bom sinal.

Karel está a fazer conversa de circunstância quando um outro homem bem vestido entra na sala. O seu fato é escuro; não é par- ticularmente sofisticado, mas tem um bom corte, e a gravata está presa com um nó de Windsor completo. O homem tem um aspeto antiquado, é certo, mas aparenta ser limpo e sério. Não há dúvida de que se trata de um funcionário do governo. O cabelo, com entradas, está penteado para trás com pomada. Tal como Karel, ele aparenta ter 40 e poucos anos – é extraordinariamente novo para general do KGB. O seu nome é Oleg Kalugin. É espião e foi ali para interrogar outro espião.

– Desculpe o atraso. Fala russo? – pergunta Kalugin ao entrar na sala.

– Percebo tudo, mas não falo muito bem – diz Karel. – Na América não há ninguém com quem falar russo.

Kalugin pára do lado da mesa onde se encontra Karel e vira-se para o olhar de frente. Karel Koecher permanece sentado, mas tira as medidas à silhueta compacta de Kalugin, que lhe surge enquadrada pela luz de uma janela aberta. Karel não o sabe, mas Kalugin desafiara as ordens do Centro de Moscovo para estar hoje aqui. Tanto quanto sabe Yuri Andropov, chefe do KGB, os serviços secretos checoslovacos estão a conduzir este interrogatório sozinhos.

Sentado muito direito, com o peito para fora, e parecendo confiante (até presunçoso), Kalugin não se mostra preocupado com as consequências da sua insubordinação. Na verdade, parece ser óbvio que Kalugin tem os seus próprios motivos para estar ali. Contudo, não só esses motivos não são evidentes, como ele não os revela.

Tal como Karel, Kalugin fala fluentemente um ror de línguas. Ao continuar em inglês, o seu modo de falar cuidado e indistinto lembra Cary Grant – embora, no seu caso, o inglês seja pesado, pedante e destituído de vivacidade. Kalugin puxa uma cadeira da mesa, gira-a para ficar de frente para Karel, senta-se e dá início a uma saudação rígida que responde a algumas questões, antes de levantar um conjunto de novas perguntas.

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«Estou feliz por o receber em nome da amizade checo-soviética. Estou de visita a convite dos nossos amigos checoslovacos e, devo dizê-lo, enquanto representante de um serviço amigável e de colaboração, estou feliz por o conhecer», diz Kalugin. «Ouvi e li muito sobre si e espero que a minha presença ajude a esclarecer as dúvidas que partilhamos, além dos nossos interesses em comum. Tenho algumas questões relacionadas com a sua segurança pessoal, já que a nossa principal prioridade é sempre o êxito dos nossos, seja onde for que trabalhem.»

De novo, Karel olha por cima do ombro de Kalugin para a janela aberta. Lá fora está a chuviscar. Karel ajusta os óculos de aço inoxidável. O seu fato cinzento-claro, com calças folgadas, e a sua gravata chamativa e demasiado larga parecem exóticos naquele ambiente monocromático e desconsolado. Os olhos de Kalugin são atraídos pelas riscas na gravata de Karel, como se não vissem cores há perto de uma década. São uma cambada de filisteus, pensa Karel enquanto vira a cadeira e penteia o bigode grisalho. Olha Kalugin nos olhos, mas permanece calado.

«Talvez eu acabe por repetir algumas coisas porque cheguei tarde», continua Kalugin. «Bem, não há problema; espero que isto não seja demasiado desagradável. Como está? E como está de saúde?»

«Bem», responde Karel, prudente. «Veremos ao fim da tarde.»

A visão de Karel já não é o que era, e o clã Koecher tem um historial de diabetes. Quando era miúdo, Karel teve infeções nos ouvidos tão graves que o ajudaram a ser dispensado do serviço militar. Contudo, em adulto é viciado em desporto. Em Nova Iorque corre no reservatório do Central Park quase todos os dias, e gosta de levantar pesos no Y da Rua 92.

«Pelo que percebi, foi-lhe difícil aceitar viver ao estilo americano», continua Kalugin. «É vital que sejamos pacientes e que crie- mos relações duradouras, especialmente quando se trata de trabalhar com pessoas estrangeiras. Antes de vir, analisei os materiais e a sua situação. Corrija-me se eu estiver errado, mas começou a trabalhar para a CIA em 1973. Antes disso, obteve o seu doutoramento, por volta de 1970, e depois trabalhou na Rádio Europa Livre?»

Não foi bem assim, explica Karel, dando de novo conta, de forma resumida, do seu currículo: uma bolsa da Universidade do Indiana em 1966, depois trabalho de doutoramento em Columbia, a Rádio Europa Livre até 1969, cidadania americana em 1971 e uns quantos trabalhos como professor universitário. «Isto foi até 1972 ou 1973. E depois consegui entrar para a CIA», diz ele, com ligeira impaciência.

Livro: "O Último Espião da Guerra Fria"

Autor: Benjamin Cunningham

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 14 de setembro de 2023

Preço: € 18,80

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«Sim, foi no Pentágono que teve provavelmente o seu primeiro emprego sério, e isso foi em 1973, certo?»

«Sim, 1973.»

Kalugin quer mais. Karel trabalhava para o Departamento de Defesa ou para a CIA ou quê? Ele quer pormenores.

Karel explica que foi a uma entrevista de emprego no Pentágono, mas esta revelou ser parte de um processo de seleção para se trabalhar para a CIA. O trabalho durara apenas umas poucas semanas. Oficialmente, o governo dos Estados Unidos da América ainda afirma que ele trabalha para o Departamento de Defesa, mas trata-se apenas de uma fachada.

«Recorda-se do gabinete?» Kalugin faz-lhe perguntas sobre as visitas de Karel ao Pentágono.

«Era um espaço pequeno.»

«Não, estou a falar do número dos gabinetes. Lembra-se deles? Ou do andar?»

«Terceiro, acho.»

«Em que zona? Em que ala do edifício ficava, lembra-se?» «Não me lembro. Estive lá pouco tempo.»

Depois de insistir durante algum tempo em questões acerca da organização do edifício, Kalugin muda de tema e pergunta o que Karel ali fazia: «Hum, muito bem, qual era o seu objetivo?»

«Eu traduzia alguns materiais do jornal. Artigos de jornal e, por vezes, também gravações.»

«Russos?»

«E checos», diz Karel.

As primeiras gravações eram toscas, continua Karel. Eram de checos a falar numa sala na Alemanha de Leste. Eles tinham acabado de ir ao lado ocidental para fazerem compras em Frankfurt, onde adquiriram todo o tipo de coisas. Os checos não paravam de falar da quantidade de escolhas que havia. As vozes iam desaparecendo ou iam ficando distorcidas e a gravação era pouco clara. Havia eco; não se conseguia perceber todas as palavras, mas percebia-se o suficiente para que fosse inteligível. De qualquer modo, estes assuntos não eram propriamente questões de segurança nacional.

«As gravações em russo eram de escutas telefónicas feitas na América Latina», continua Karel. «O mais provável era que eles apenas quisessem saber se eu conseguia traduzir bem.»

«Era uma operação grande? Havia muitas pessoas envolvidas?»

«Havia muitas pessoas, mas eu estava sozinho numa sala pequena.»

«Quem eram os seus vizinhos? Lembra-se de quem eles eram? Eram americanos?»

«Nunca falei muito com eles, mas eram americanos, sim.» «Não havia lá outros soviéticos ou checos. Estava lá sozinho?» «Sim, sozinho.»

Número dos escritórios, datas, nomes, moradas. Estará Kalugin realmente interessado em todas estas minudências? Como espera ele que Karel se lembre de pormenores destes, três anos depois? Não terá ele em conta a pressão sob a qual Karel vive todos os dias, fingindo ser alguém que não é?

Kalugin está à procura de alguma coisa; de contradições, provavelmente. Mas porquê? Karel acalma-se e responde diretamente. Simplifica. Os interrogadores andam às voltas da mesma pergunta, uma e outra vez. Quantos mais detalhes se fornecer, maiores são as chances de se dar uma escorregadela.

A dada altura entra outro tipo para ajustar a fita no gravador de bobinas. Zítek, o homem da StB que está presente durante o interrogatório mas que não diz nada, ajuda a ajustar a máquina. Quando Kalugin sai da sala por um instante, Karel faz conversa de circunstância com Zítek e com o tipo que está a mexer no gravador. Porque não? Não há razão para ficar nervoso. Ainda na noite anterior, os checos tinham-se sentado todos a beber cerveja à volta da mesma mesa.

Quando Kalugin regressa, apoia-se com os cotovelos sobre a toalha de mesa branca e aponta o microfone para Karel. A converseta pára, e recomeçam as perguntas diretas:

«Muito bem, acabámos o capítulo sobre o Pentágono. Qual é o próximo passo?»

«No passo seguinte, comecei a trabalhar na unidade da CIA, a transcrever entrevistas ao telefone. Eles sugeriram que, se eu estivesse interessado, poderia ser-lhes útil ter alguém que fizesse isso.»

«Foi então assim que entrou para a equipa. E a avaliar pelas fotografias e por outros materiais, havia uma equipa.»

Alguém andara a tirar fotografias na última festa de Natal, e Karel apoderou-se do rolo. Disse ao fotógrafo que conhecia um tipo em Nova Iorque que revelava fotografias por um valor muito baixo. Depois, fez cópias e enviou o segundo molho para Praga, tendo escrito os nomes dos seus colegas da CIA no verso.

«E era uma equipa grande», diz Karel.

«Isso significa que você assinou um documento.»
«Quer dizer um contrato?»

«Não, era o mesmo que eu já tinha. O contrato original era por dois anos, acho.»

«Isso quer dizer que era o mesmo contrato que tinha no Pentágono?»

«Sim.»

Karel não soubera o que pensar quando Zítek o surpreendera com a notícia de que regressariam à Checoslováquia. Agora que aqui está, Karel deseja que não estivesse. Tudo lhe parece estranho; hostil, até. Isso é inesperado.

«Tendo em conta as suas mensagens, você conhecia as localizações geográficas de onde havia telefones sob escuta», continua Kalugin, de pernas cruzadas.

«Estavam escritas nos caixotes onde as fitas eram guardadas.»

«E tratava-se de escutas telefónicas?»

«Sim, telefones. E havia outras pessoas que trabalhavam com gravações que tinham sido obtidas a partir de escutas feitas nas próprias divisões.»

«Onde estava então sediada a unidade?»

«Em Arlington, na Estrada da Rua Norte com a Via 50», diz Karel.

«Um edifício grande?»

«Sim, um edifício grande, com doze ou quinze andares.»

Kalugin tenta obter ainda mais detalhes. «Um edifício em vidro, portanto. Vocês ocupavam o prédio inteiro?»

«Não, apenas uma parte. Sete andares.»

«E o resto?»

«O resto pertencia a uma companhia de telefones qualquer.»

«Depois, em 1975, o seu contrato acabou.»

«Acrescentámos-lhe seis meses. Houve um prolongamento.»

«Creio que no verão de 1975 o contrato terminou.»

«Sim, o termo original do contrato era em fevereiro, mas eu prolonguei-o por seis meses.»

A sondagem de Kalugin é educada, mas incansável: «Isso quer dizer que eles não desejaram prolongar o seu contrato ou que foi você que não o quis prolongar?»

«Eu queria prolongá-lo por mais seis meses, mas eles deixaram de me querer. No final, consegui ficar antes com um contrato no Gabinete de Investigação Política.»

«Então, na sua opinião, qual dos gabinetes pode ser mais benéfico para nós?»

«Se eu conseguir trabalhar durante algum tempo no Gabinete de Investigação Política será mais vantajoso», diz Karel.

O Gabinete de Investigação Política, que tinha sido criado há menos de dois anos, é um departamento da CIA que pede aos analistas que componham interpretações amplas que mostrem o panorama geral de correntes políticas estratégicas.

«Trabalha com uma equipa de pessoas?»

«Não, não trabalho em equipa.»

«Qual é então o contexto em que trabalha? Como o descreveria?»

«Escrevo relatórios a partir de casa.»

«Onde obtém os materiais que lhe servem de base?»

«Quando há materiais, recebo-os de Langley.»

«Com que frequência vai lá?»

«Uma vez por mês.»

«Uma vez por mês... isso não é muito regularmente.» Kalugin parece desapontado. «O que vai lá buscar?»

«Eu escrevia sobre aspetos ideológicos da liderança soviética. Por isso, queria materiais sobre os membros do politburo. Eles deram-me materiais sobre o Camarada Suslov, por exemplo. Telegramas da embaixada americana em Moscovo, o que eles tinham ouvido e onde. Onde está o Camarada Suslov? Está doente? E assim por diante.»

Mikhail Suslov, um promissor ideólogo comunista, fora o chefe de propaganda de Josef Estaline. Durante algum tempo, trabalhou como editor principal para o jornal soviético Pravda. Em 1956 – em conjunto com um elenco de luxo de gente ambiciosa, incluindo o então chefe do KGB, Yuri Andropov –, ele ajudou a orquestrar a repressão da revolução húngara. Tal como qualquer burocrata modelo onde quer que fosse, Suslov conseguiu agir no momento certo, tendo ajudado a destituir Nikita Khrushchev em 1964. Para o bem ou para o mal, quando Leonid Brezhnev ocupou o lugar de Khrushchev, Suslov tornou-se um dos três homens mais poderosos da URSS.

«Eles davam-lhe telegramas da embaixada. Isso é interessante.»

«Sim, havia telegramas sobre Suslov.»

«Sim, até por isso são interessantes.»

«Mas não eram interessantes.»

«Os camaradas não são parvos.»

«Também me parece.»

«E a propósito daquilo que você ia escrevendo, os textos eram bem recebidos? Os americanos gostavam do material?», pergunta Kalugin.

«Sim.»

«Nesse caso, eles deveriam dar-lhe mais trabalho.»

«Bem, a questão era se eles precisavam realmente de mim ou não...»

«O que lhe parece? Sinto que tendo em conta aquilo que você partilhou na última vez, eles são um pouco distantes, frios.»

«Há muita gente da deles a precisar de trabalho. Eles nasceram na América e, vendo as coisas por aí, eu sou estrangeiro», diz Karel. «Eles conseguem encontrar alguém que tenha tido uma educação parecida e que tenha nascido na América; vão preferir essa pessoa. Aqui temos de criar o nosso próprio contexto. À medida que estes contratos a curto termo vão durando mais tempo, as questões começam a intensificar-se. O que está este tipo a fazer? Porque não procura ele algum tipo de posição que ofereça uma maior segurança? Ele está a ficar velho.»

«O que sugere?»

«Não tenho muitas sugestões. O que eu sugiro, a melhor coisa, é tentar criar uma espécie de entendimento.»

«Mas como?»

«Eu posso partilhar uma ideia que seja muito interessante. Eu sugeria-lhes uma espécie de operação extraordinária. Por exemplo, encontrar-me com checos e regressar com informação falsa. Talvez pudesse mudar-me para a Alemanha. Eu poderia sugerir qualquer coisa parecida e começar a levar a cabo operações no estrangeiro, porque todas as operações da CIA são no estrangeiro.»

Kalugin está cético: «Que tipo de atividade, por exemplo? Talvez a Rádio Europa Livre? Podemos pensar nisso, mas, na minha opinião pessoal, talvez devêssemos focar-nos em algo mais estável, mais simples. Você tem amigos na sociedade americana, pessoas a quem possa recorrer para o ajudarem a encontrar um emprego?»

«Eu fiz isso cinco ou seis vezes e não tenho conseguido chegar a parte alguma.»

Kalugin muda o tema da conversa para Zbigniew Brzezinski, que dirige um instituto de investigação na Universidade Columbia. Jimmy Carter defrontará Gerald Ford nas próximas eleições, em novembro. Se ele ganhar, Brzezinski poderá desempenhar um papel preponderante numa Casa Branca comandada por Carter. Karel conhece-o bem. Quando era aluno de doutoramento em Columbia, Karel também dera seminários junto do grupo de discussão de elite de Brzezinski, alicerçado na universidade mas que se focava em questões russas.

«Ele trabalhou para a CIA?», pergunta Kalugin, referindo-se a Brzezinski.

«Não.»

«Mas ele cooperava com eles, certo?»

«Não.»

«Vocês têm uma relação pessoal? Amigável?» «Pessoal? Eu não diria isso.»

«Bem, eu fui aos workshops dele sobre os problemas do comunismo. Ele gostava do que eu escrevia. E depois fui para o instituto dele.»

«Você nunca teve qualquer contacto pessoal com ele?»

«Só no instituto.»

«Como aluno?»

«Não, como aluno não. Mas como professor no instituto. O instituto é pequeno, doze pessoas.»

«Se alguém pedisse referências suas ao Brzezinski, ele recomendá-lo-ia?»

«Sim.»

«Talvez você pudesse então aproximar-se mais um pouco do Brzezinski? Vocês os dois têm raízes na Europa de Leste. Você começou no instituto dele. Os assuntos acerca dos quais você se encontra a escrever parecer-lhes-iam relevantes. É que o Brzezinski não será um mero professor se o Carter for eleito. Ele não será ninguém importante, mas nunca se sabe.»

«Talvez seja consultor, mas não fará parte do governo.» «Não, do governo, não, mas digamos da segurança nacional.»

«Consultor da segurança nacional», concorda Karel.

«Sim, isso é possível. É um cargo importante. O meu, bem, o nosso, conselho seria despertar-lhe o interesse, escrever-lhe uma carta, escrever “eu sou seu aluno” e que este é o tipo de problema acerca do qual está a escrever e que poderiam trocar ideias. Ele é uma pessoa criativa. Eles gostam deste tipo de coisa.»

«Talvez seja possível enviar-lhe parte daquilo em que estou a trabalhar agora.»

«Isso parece-me realista. Porque, se ele avaliar o seu trabalho de forma positiva, isso poderia ser um grande passo para si. Isso poderia fortalecer, efetivamente, a sua reputação científica. Ao mesmo tempo, as pessoas na CIA também repararão nisso, o que poderá ser-nos útil.»

À medida que a discussão vai passando para Charles Frankel, o orientador do doutoramento de Karel em Columbia, Karel não consegue deixar de reparar na feia jarra que está sobre a lareira e no quadro reles pendurado na parede.

«Era meu professor», diz. «Ele foi secretário de Estado adjunto no tempo do Johnson.»

«Ele não esteve metido na cultura?», pergunta Kalugin.

«Sim. Departamento de Assuntos de Educação e de Cultura.» «Boas relações?»

«Sim.»

«Então temos mais esperança de que ele venha a estar no novo governo. Claro, parece que além deste seu interesse em continuar na CIA, não há mais nada que tenhamos de consolidar. Pense em tentar arranjar um lugar como cientista, sociólogo ou historiador.»

Karel duvida de que essa seja uma opção realista: «Isso seria ótimo, mas muito difícil, na minha opinião.»

«Mas é possível. É por isso que terá de desenvolver ainda mais esta sua história inicial. Você veio da Checoslováquia, atingiu uma posição, ocupa um posto. Terminou a universidade em Columbia. Consegue escrever uma tese. Eu li-a e posso dizer-lhe que é uma boa leitura.»

«A CIA quer indicar parte do meu trabalho para publicação.» Karel faz um aceno de cabeça a Zítek, que está sentado do outro lado da mesa, de frente para os outros dois. «Vai demorar algum tempo, talvez um ano, mas sairá numa revista académica.»

«Se eu estivesse no seu lugar, e isto é apenas um conselho meu», diz Kalugin, em tom de sermão, «você é um homem, não é um miúdo, e seria bom se tomasse uma posição firme. Talvez agora você não esteja tão inclinado para a academia, mas é uma opção. Você tem mulher, uma casa. É importante ocupar uma posição forte. Sabe como é, você diz à CIA “Eu agora trabalho para vocês, mas estou hesitante. Não tenho problemas em continuar o trabalho, mas gostaria que ele fosse mais estável. Não há nada completamente estável, mas o mais estável possível.”»

«Eu já falei com eles, disse-lhes que estou à procura de uma posição estável e a longo prazo.»

Talvez seja da colónia rançosa de Kalugin, mas Karel sente-se desorientado. Passaram-se oito anos desde que os soviéticos invadiram a Checoslováquia e, pondo de parte questões geopolíticas, ele ainda não consegue aceitar os fantoches que puseram no poder. E no entanto, Karel tinha de o admitir, a vida melhorara quando ele começou a trabalhar mais de perto com os russos. Eles eram mais profissionais do que os checos. Andropov enviara-lhe 20 mil dólares para o seu novo apartamento na zona de Upper East Side em Nova Iorque, a um quarteirão e meio do Museu Guggenheim e do Central Park.

«Onde vive agora, em Washington ou em Nova Iorque?», persiste Kalugin.

«Em Nova Iorque.»

«Você não queria estar em Washington? Pensava que você quereria estar lá mais vezes.»

«Não.»

«E com que frequência vai a Washington, à CIA? Uma vez de dois em dois meses?»

«Talvez uma, às vezes duas.»

«E não tem relação com os escritórios da CIA em Nova Iorque?» «Nenhuma.»

«Os nossos estavam na Rua 79», pressiona Kalugin.

«Isso não é longe da missão checoslovaca.»

«Quero dizer, na esquina entre a Terceira Avenida e a 79, mas isso já foi há muito tempo.» Kalugin soa quase melancólico. «Há o bar Berlim na Segunda ou na Terceira Avenida. Na esquina onde têm bons cachorros-quentes. A geografia é uma coisa fundamental. Se você vivesse em Washington, estaria mais perto de tudo o que é importante. Washington é o centro. Nova Iorque é um centro completamente diferente. Do ponto de vista da política de Estado e dos serviços secretos, o melhor sítio é Washington.»

Karel encolhe os ombros. Há pouco tempo, ele vivera num dormitório de Washington, D. C. Tanto quanto sabia, Falls Church não era o centro de grande coisa. A mulher de Karel ficara em Nova Iorque e, por isso, assim que surgiu a oportunidade de trabalhar remotamente, eles pegaram no dinheiro de Andropov e compraram o apartamento T1 no número 50 da Rua 89 Este. Robert Redford estaciona o seu Jaguar na garagem que fica na cave. Os subúrbios de D. C. dificilmente conseguem competir com isto.

Como Karel dissera aos seus chefes uma e outra vez, a única forma de se cair nas boas graças dos membros da sociedade ame- ricana é convencê-los de que se faz parte do clube. Ele precisa apenas que eles lhe enviem mais dinheiro. É tudo uma questão de manter as aparências.

Quando a conversa começa a murchar, Karel e Kalugin passam para uma troca de cortesias. Kalugin começa a falar de uma ida a um castelo próximo dali. «Você devia ir a Konopiště. Já lá esteve?»

O Kaiser alemão Guilherme II visitou o arquiduque Francisco Fernando em Konopiště, em junho de 1914, precisamente no mês em que o herdeiro do império austro-húngaro foi assassinado em Sarajevo. Francisco Fernando nunca ligara muito a Viena e tinha a esperança de vir a poder reinar a partir dos subúrbios de Praga. Contudo, em 1976, kaisers e arquiduques são resquícios de uma outra era.

«Não, não estive», diz Karel.

«Oh!, é um sítio lindo. Nós fomos lá ontem. Dir-se-ia que é uma pequena Suíça.»

E assim termina este encontro confrangedor. Karel retira-se para o quarto que ocupa, do outro lado da moradia. A sua mulher, Hana, espera-o. Ela pergunta-lhe como correu. Não correu bem, responde ele. Entretanto, Kalugin vai ter com os colegas de Karel dos serviços secretos checoslovacos, para reunirem. Ao chegar, diz-lhes que acredita que Karel Koecher trocou de lado; que agora Karel trabalha para os americanos, contra a Checoslováquia e a União Soviética.

Enquanto príncipe herdeiro do KGB, o que quer que Kalugin diga é uma ordem. Assim, a conclusão do relatório sobre o encontro é a de que o interrogatório «prova que Karel era e é um inimigo e um instrumento dos serviços secretos americanos».

Enquanto se prepara para regressar aos EUA, Karel recebe ordens para deixar de trabalhar para a CIA. Ele deixa a moradia com uma dura ameaça a soar-lhe aos ouvidos: não levantes ondas ou prepara-te para as consequências... que poderão chegar, inclusive, ao extermínio.

* Tradução de Lumir Nahodil in Hašek, Jaroslav, O Bom Soldado Švejk, Lisboa, Tinta-da-china, 2012. (N. da T.)