Quando soube que iria escrever sobre os 15 anos da Anatomia de Grey tive de me preparar psicologicamente. Não é fácil reviver um tiroteio num hospital, a queda de um avião e, muito menos, ver Lexie e Mark morrer outra vez — já para não mencionar que me iria revoltar novamente com o facto de a April e o Avery não terem ficado juntos.
“Preciso de um gelado de três bolas” foi o que disse a minha voz interior quando me sentei para começar a escrever um texto sobre uma das melhores séries de sempre. Sim, uma das melhores séries sempre. Se não o fosse, não continuaria a render milhões em audiências e a ser nomeada para prémios, passados 15 anos. Só o episódio de despedida do Karev foi visto por 6,7 milhões de espetadores norte-americanos. Alguns, como eu, devem ter ficado um bocado desiludidos - não, ele não morreu -, mas pronto. É a vida. Uma série é boa quando se pode dizer que ficámos desiludidos, não é verdade? (Que o digam os milhões de fãs de Guerra dos Tronos).
Como já deu para reparar, quem vos escreve é uma fã da Anatomia de Grey. Não acredito que esteja pronta para assistir num parto de alguém num elevador, mas qual Miranda Bailey — mulher assertiva que não tem qualquer problema em mostrar a sua forma de pensar, mas igualmente justa —, sinto que estou mais do que preparada para procurar mostrar o porquê de esta série continuar a ser um sucesso pelo mundo fora.
A Anatomia de Grey tem de parar de ser reduzida a uma série "onde todos dormem com todos"
Já me aconteceu, por mais do que uma vez, estar a falar sobre a Anatomia de Grey e ouvir o típico comentário "nessa série todos dormem com todos" ou outras observações mais sugestivas. Sim, a série fala sobre sexo e admita-se: no início, se não se vissem os episódios todos, podia perder-se um pouco o fio à meada — mas, a série não se resume a isso.
Ellen Pompeo, a atriz que faz de Meredith, numa entrevista com a grande Taraji P. Hanson, admitiu que "nos primeiros dez anos" a série teve "sérios problemas culturais" e que depois da décima temporada tiveram de inserir "algumas mudanças grandes, em frente e atrás da câmara". O objetivo era "começar um novo capítulo". E conseguiram, mas vamos por partes.
Duas grandes mudanças internas aconteceram. A primeira foi a contratação de Debby Allen, que atualmente é diretora e produtora executiva da série e interpreta a Dra. Catherine Fox, a mãe de Avery e a mulher de Webber. A segunda alteração, e talvez a mais importante, ocorreu com a despedida de Patrick Dempsey, ou como será eternamente conhecido, Derek "McDreamy".
Sem personagem principal masculina, Pompeo sabia que o estúdio e o canal acreditavam que a série não poderia continuar sem um protagonista masculino. E tinha razão. "A tinta do seu contrato de saída [Patrick Dempsey] ainda não tinha secado e já me estavam a empurrar para um novo homem", disse ao Hollywood Reporter."Eu nem conseguia acreditar o quão rápido o canal tinha sentido que era necessário colocar um pénis aqui [na série]", confessa.
Face a esta situação, qual Meredith Grey, Ellen sabia que ela era o sol e não ia deixar-se ser eclipsada — para quem não percebeu a referência, encontra-se abaixo. — "Eu tinha a missão de provar que [a série] podia continuar".
E assim o fez, mas não apenas como atriz. Também começou a trabalhar na direção e produção da série e todas estas mudanças tiveram um resultado que não podia ter sido mais positivo. "Nós temos tido a possibilidade de contar histórias que estão a ter impacto social em áreas que desesperadamente estavam a precisar". Entre essas destaca-se: o feminismo, os direitos da comunidade LGBTQ +, a violência doméstica, a violação ou a violência policial contra os afro-americanos.
É uma série que não tem problema em incomodar o espetador. E não, não é pelas partes médicas
Não me interpretem mal, claro que existiram cenas médicas que me fizeram impressão, nomeadamente, no episódio da queda do avião. Quando se coseu a mão do Derek a sangue frio, completamente em carne viva; quando se vê a perna aberta da Arizona, que depois teve de ser amputada; ou quando o braço deslocado da Cristina é colocado no sítio e seguem-se um som e o um grito arrepiantes. Aliás, foram cenas que me incomodaram de tal maneira que nunca mais revi esses episódios.
Porém, quando digo que a série não tem problemas em incomodar, refiro-me ao que disse anteriormente sobre os assuntos sociais.
Começando pelo referido acidente de avião — podia ser outro tipo de acidente, aqui foi este — a série procurou mostrar como o Stress Pós Traumático pode afetar alguém de tal forma que nunca mais volta a ser a mesma.
Através de Arizona, Meredith e Cristina, personagens com personalidades completamente diferentes, tivemos diversas perspetivas sobre esta problemática. Das dores fantasma de Arizona aos estados de alienação da realidade de Cristina. Mais do que para ver, é para nos colocar a pensar sobre o assunto. E a profundidade com que este assunto foi explorado gerou em mim uma série de emoções, algumas das quais contraditórias.
Posso mesmo dizer que ficava sempre com o peito pesado cada vez que via um episódio da temporada 9 — mas também, quem não ficaria? Lembro-me de ficar irritada com Arizona pela forma fria e bruta com que tratava a Callie. “Eu sei que tiveste num acidente de avião terrível, mas isso não significa que tenhas o direito de magoar aqueles que gostam de ti”, pensava. Mas a reflexão surgia na sequência desse turbilhão sentimental, e é o que se pretende.
Outro dos vários assuntos que a série aborda é o racismo. E quando toca neste assunto, Anatomia de Grey consegue fazê-lo de forma crua, mas igualmente sensível.
Um dos episódios que mostra essa perfeita interligação acontece na temporada 14, quando um rapaz afro-americano leva um tiro de um agente da polícia, que, movido pelo preconceito, e antes mesmo de conseguir perceber que se tratava apenas de uma criança, dispara primeiro e pergunta depois.
Embora a raiva de Avery passe a mensagem do episódio de forma clara, a cena que me ficou na cabeça foi a da conversa que Bailey e Ben tiveram com o filho, Tuck.
Depois de saberem que o rapaz que levou o tiro não tinha sobrevivido, os dois decidiram que era importante ter “a conversa” com o filho. E o que é “a conversa”? Todo um conjunto de instruções sobre como agir em caso de detenção pela polícia. “Não respondas mal, não faças movimentos repentinos. Lembra-te: o teu único objetivo é chegar em casa, em segurança”, disse a Miranda ao filho.
De uma forma simples, assertiva e direta mostrou-se que o preconceito policial é ainda bastante comum nos Estados Unidos e que a cor da pele ainda obriga, por uma questão de sobrevivência, a uma inferiorização do ser perante as autoridades.
Atenção, isto não é só drama
Caro leitor, já viu o que seria se esta série fosse só tragédias? Embora elas existam com alguma fartura, porque, convenhamos, é uma série, também existem momentos mais ligeiros, mais cómicos, para ajudar a digerir a trama. O que é curioso é que esses momentos partem um pouco de todas as personagens — e em quase todos esses momentos, mesmo os mais pequeninos, conseguimos aprender alguma coisa.
Um exemplo dessa capacidade está presente numa cena de flirt meia cómica entre Owen e Cristina, onde esta acaba por dizer irritada uma das suas frases mais icónicas: “Que se lixe a beleza, eu sou brilhante! Se me queres agradar, elogia o meu cérebro”. De forma curta e eficaz, explicou-se que as mulheres podem ser elogiadas com base em outros atributos, que não a beleza. Este tema foi abordado em 2011, mas continua perfeitamente atual.
Outro exemplo é o episódio no qual o Avery e a April dormem juntos pela primeira vez. Durante aquela cena épica na casa de banho, onde é impossível não rir, aborda-se de forma rápida, mas não superficial, duas questões profundas: o impacto que a religião tem numa pessoa e o medo de falhar perante uma mãe que tem altas expectativas sobre um filho.
E é neste equilíbrio — entre abordar temas de atualidade, sem perder a sensibilidade e com um toque de humor — que se desenha a receita de uma série incontornável do pequeno ecrã. Anatomia de Grey é relacional e é isso que faz com que continue a ser vista por milhões de pessoas de todo o mundo. Não é apenas uma série "onde todos dormem com todos", mas uma série que nos mostra que todos podemos aprender e crescer uns com os outros.
Agora é esperar pela 17ª temporada (sendo que o covid-19 obrigou a suspender as gravações). Até lá, há outras 16 para rever em tempos de quarentena. Venham elas.
Comentários