Paulina Chiziane, a primeira escritora africana a vencer o Prémio Camões, continua a celebrar este galardão junto do povo, mesmo dos que não sabem ler, ao mesmo tempo que os “que se acham mais sábios” ainda recuperaram do choque.

“Uma boa parte daqueles que se julgam os mais conhecedores, os mais sábios, sempre me olharam assim com aquele arzinho de doutor, eles no pedestal e eu sempre no chão - sempre gostei de pôr os pés no chão - e foi uma surpresa, um choque para alguns deles, mas ainda bem que foi assim, porque na verdade eu escrevo em português”, disse, em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, onde se encontra a realizar um conjunto de atividades sobre a sua obra.

A autora reconheceu que nunca imaginou existirem tantas pessoas tão interessadas em ouvi-la e em ler o que escreveu e só lamenta não ter braços para “os abraçar a todos”, os que vivem em África, Portugal, Brasil e em outros países que não falam português.

O que mais a surpreendeu foi “a celebração popular” e até de pessoas que não sabem ler, “porque as pessoas sempre olharam para o Prémio Camões como uma coisa muito distante dos africanos, sobretudo das pessoas de raça negra”.

“Sou a primeira pessoa de raça negra, negra bantu, a receber o prémio”, disse, contando que “as pessoas sempre olharam para este prémio com uma distância”, como “o prémio dos outros”.

“Se [o vencedor] não é um branco, vai ser um mulato, mas negro e ainda por cima mulher…”, afirmou, referindo-se à forma como o galardão era visto.

E prosseguiu: “Agora, em todas as caminhadas, nós encontramos aqueles durões que acham que são os donos da língua portuguesa e são os donos da sabedoria”.

África vive em pandemia desde os tempos coloniais

“Se não foi a pandemia das guerras e dos terrores, dos horrores, foram as doenças. Nós, africanos, estivemos sempre num círculo de inferno. É por isso que esta pandemia a mim não me assustou”, afirmou a escritora moçambicana à agência Lusa, em Lisboa, onde se encontra a divulgar a sua obra.

E acrescentou: “É preciso reconhecer que em África a morte é gratuita. Basta andar na rua. Basta nascer para morrer ou para sofrer. Embora estejamos independentes, ainda há muitos problemas para resolver. Somos este continente pobre, empobrecido”.

Em relação à covid-19, recordou que o continente africano se debate com inúmeros casos de malária, além de cólera ou peste. “E quando não é isso, são as guerras”.

“O meu país, aquilo que eu pude vivenciar, foram a guerra de libertação nacional, com as suas mortes, massacres e tudo, tanto portugueses como moçambicanos, matavam e morriam, não sei porquê, depois tivemos a guerra civil, que foi uma outra pandemia e durou 16 anos, depois foram aquelas guerras de apoio ao Zimbabué, África do Sul, etc”.

“E no meio de tudo isso, se não é cólera no centro do país, é a peste no norte do país, e a malária em todo o país. Agora covid… covid é mais uma”, declarou.

A escritora acredita que estas dificuldades históricas foram um dos aspetos que fez com que “a África estivesse muito tranquila. Não houve tanto pânico e nem houve assim aquele número de mortes que se diz que houve. E há muitas razões também”.

“Para além de ser o hemisfério sul, é preciso reconhecer que nós temos poucos transportes públicos e poucos lugares para estarmos muito juntos, como os estádios de futebol, temos poucos comboios, andamos mais a pé e mais expostos ao sol. Então isso também foi uma vantagem para nós. Temos uma vida mais natural. Aquilo que parecia muito mal, acabou revelando-se como sendo benéfico”, disse.

“Claro que sofremos e estamos ainda a sofrer, mas o africano está habituado a sofrer. Que pena!”.

Em relação aos países ricos, Paulina observa que, “alguns países do ocidente e alguns países da América, sentiam-se senhores do mundo, detentores de uma grande ciência. Mas a covid mostrou as limitações do ser humano e as limitações de toda a ciência e da tecnologia”.

"Deus é uma mulher e negra"

Em entrevista à agência Lusa, em Lisboa, a primeira escritora africana a vencer o Prémio Camões disse que gostaria de voltar a trabalhar com as pessoas nas prisões, ou que já estiveram na prisão, sobretudo mulheres, porque “é algo que nunca foi falado”.

O primeiro contacto, em parceria com Dionísio Bahule, resultou no novo livre da galardoada escritora: A voz do cárcere.

“Uma das lições que eu aprendi das mulheres que estão nas prisões é que elas, primeiro, não são ouvidas; e nós, que não estamos na prisão, que estamos em liberdade, às vezes inventamos campanhas para sensibilização, para o combate à violência doméstica e outros males, mas nós não ouvimos quem sofreu de uma forma direta e quem sofreu uma prisão”, contou.

A maior parte das mulheres, que Paulina ouviu, matou os maridos ou ex-companheiros. “Elas diziam: Eu sempre fui educada para ser fraca. Eu julgava que era frágil e eu julgava que era uma boa mulher, aquela mulher que não faz mal a ninguém. Fiquei surpreendida com meu poder e com a minha força. Mas descobri quem eu era no momento fatal? Meu marido é um homem forte, mas veio morrer nas minhas mãos”.

A escritora defende que se ensine a mulher “a conhecer a sua verdadeira força, porque isso vai-lhe permitir gerir essa força e não esperar que essa força aflore no momento fatal”.

“Dizia uma delas: Se eu soubesse que tenho mais força que o meu marido, hoje não estaria na prisão, teria tomado outro rumo para lutar pela vida dos meus filhos”, prosseguiu.

Chiziane gostaria que as campanhas de prevenção da violência doméstica fossem “reformuladas” e que a própria sociedade reconheça que “educar a mulher para a fraqueza não é retirar a fraqueza, porque é um momento crítico da vida dela, em que essa força sai, aquilo que se chama um certo salto mortal”.

Sobre ser uma mulher na prisão, a escritora descobriu que as diferenças de género, também aqui, são abismais.

“O marido abandona, os pais abandonam, os irmãos vão nos primeiros dias procurar saber alguma coisa sobre elas e no fim é o abandono total. Mesmo nas visitas isso é visível. As mulheres têm menos visitas que os homens”, disse.

Pelo contrário, “quando é um homem preso, a mãe está sempre presente, a esposa vai sempre, os filhos visitam. Então, a família fica muito mais despreocupada e dá mais apoio ao homem em presídio, porque a mulher fica completamente abandonada e depois com este lamento”.

Na "hora de sair da prisão, para a maior parte das mulheres, é um sofrimento terrível, porque realmente estiveram ausentes e as coisas correram, os filhos ficaram ao deus dará. Uns com sorte de ser adotados por alguém, a quem chamaram de mãe, quando a mãe estava ausente”.

A escritora acredita que “todas as sociedades poderiam crescer um pouco mais se tivessem tempo de ouvir os relatos e as histórias das mulheres, das mulheres na prisão ou das pessoas que vivem na prisão, porque os homens também, há muito homens sofrendo”.

“Eu já era adulta e me julgava senhora de algum saber quando eu entrei na prisão. Foi quando eu percebi que sempre estive ausente do mundo, porque aquele é um mundo que merece a nossa atenção”.

Esta experiência a ouvir mulheres presas veio reforçar a sua ideia de “Deus é mulher. Não pode ser outra coisa”.

“Para mim, depois de Deus é a mãe. Olhando para esta experiência da prisão, para os diferentes tipos de família, quando a mãe está ausente, os filhos estão perdidos. Mas não é apenas nos seres humanos. Mesmo nos animais, quando a mãe está ausente no primeiro período da vida, não há sobrevivência passível”.

“Há um Deus invisível, que dizem que é o tal que criou tudo. Mas, na terra, existe uma deusa que vela pela sobrevivência de todas as espécies. E esse Deus é uma mulher”, explicou Chiziane.

“Agora, Deus é negra e por uma razão simples: se o ser humano foi feito à imagem e semelhança de deus, então Deus, desculpe, é muito parecido comigo. É negra e é mulher”, sublinhou.

*Por Sandra Moutinho (Texto) e Manuel Almeida (Fotos), da Agência Lusa

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