Pode ser porque o período, na sua ociosidade, pede um tipo de história mais emocionante do que introspectiva, mais viciante do que desafiante — mais “leve”, sem que este adjetivo contenha qualquer carga negativa, até porque estas narrativas abrem a porta a uma multiplicidade de reflexões. Ou então é mesmo porque a combinação de areia a ferver, toalha estendida e marmita preparada resulta não apenas em dias de descanso e pele bronzeada (ou escaldada, mediante a atenção ao sol), mas também em sede de sangue. Literário, calma.
Talvez para esfriar as elevadas temperaturas típicas da época, o policial nórdico, subgénero literário tão popular quanto concorrido, é sempre uma escolha a ter em conta. Da profícua fornada de autores escandinavos, chegou este verão “A Névoa”, do islandês Ragnar Jónasson. Com edição da Topseller, a história, passando-se em 1987, coloca a inspetora Hulda Hermannsdóttir — recém-integrada depois de um período de licença — a investigar um crime numa quinta isolada. Dois meses antes, um casal permitiu que um homem se refugiasse de uma tempestade de neve violentíssima na sua casa — resta saber o que se passou naquela noite. Alerta de spoilers: não terá sido coisa boa.
Da mesma inóspita ilha surge ”A Absolvição”, o terceiro volume da saga “DNA”, de Yrsa Sigurdardóttir, acompanhando os casos macabros do detetive Huldar e a psicóloga infantil Freyja. No cerne desta trama — novamente publicada pela Quetzal — está o assassinato de Stella, uma jovem cujos últimos momentos de vida foram gravados e publicados nas redes sociais. A investigação dá conta de que a vítima afinal não era tão inocente quanto isso, tendo um historial de bullying. Mas, no entanto, um outro corpo aparece e um novo vídeo é partilhado na internet. Poderá ser um padrão?
Ainda na Escandinávia, mas em Helsínquia, há corpos a surgir pelos arredores da capital finlandesa e Jessica Niemi está encarregada de descobrir porquê — e qual/ais o/os responsável/eis. A primeira vítima surgiu sentada junto a uma mesa, de vestido de noite preto e com um terrível sorriso plasmado na cara sem vida. Para adensar o mistério, era mulher de um famoso romancista e o crime parece inspirado pelas suas histórias do oculto, parte de uma trilogia chamada “O Caçador de Bruxas”, que, de forma metaficcional, é o nome também deste romance de estreia de Max Seeck, editado por cá pela Bertrand.
Para terminar o rol de crimes gélidos, mas mais a sul, um retiro de negócios de uma startup em vias de se tornar na “próxima grande cena” numa luxuosa estância de esqui nos Alpes franceses começa a dar para o torto quando: a) uma tempestade de neve atinge a montanha onde se localiza o resort; b) um dos acionistas propõe uma oferta de compra radical da empresa; c) uma avalanche atinge o local. Sem ligação ao resto do mundo exterior, a tensão que já existia junto dos sobreviventes — cada um com as suas motivações perante o futuro e ao que pode tirar da empresa — só pode piorar quando começam a morrer “Um a Um”, o título deste romance da britânica Ruth Ware, publicado pelo Clube do Autor.
Se essa história traz à memória o clássico “Convite para a Morte” (ou “As Dez Figuras Negras” ou ainda “No Início, Eram Dez…”, dependendo das edições) de Agatha Christie, já “O Clube do Crime das Quintas-Feiras” é uma homenagem direta à escritora britânica. Concebido pelo apresentador e humorista Richard Osman — e com publicação por cá da Editorial Planeta —, este mistério coloca em ação quatro octogenários a viver numa prazenteira vila no sul de Inglaterra. Como o título do romance aponta, reúnem-se todas as semanas para discutir e analisar crimes por resolver. No entanto, o que era um hobby passa a ocupação a tempo inteiro quando um homicídio ocorre na sua localidade. Como seria de esperar, juntos vão tentar apanhar o responsável, apesar de todas as adversidades — provocadas pela velhice e não só.
Sem chegar à terceira idade, mas definitivamente com veterania nos ossos, neste verão recuperam-se também os casos de Mario Conde, de cigarro numa mão e copo na outra, como todos os detetives noir por excelência. Editado pela Porto Editora a 26 de agosto, “Quarteto de Havana – Volume II” reúne os há muito esgotados “Morte em Havana” e “Paisagem de Outono”, parte da quadrilogia das estações do escritor cubano Leonardo Padura. Se no primeiro, Conde investiga a morte do filho de um diplomata cubano, estrangulado com uma faixa de seda vermelha pertencente ao vestido que usava antes da sua morte, no segundo, o detetive anda atrás dos assassinos de Miguel Forcade Mier, homem responsável pela expropriação de bens pós-Revolução e que, por isso, tinha muitos inimigos.
Mantendo o travo hispânico, mas atravessando o Atlântico, “Os Rituais da Água” é o segundo volume da trilogia “O Silêncio da Cidade Branca” da espanhola Eva García Sáenz de Urturi, editado pela Lua de Papel. O profiler Unai “Kraken” volta tentar decifrar novo enigma que tem como cenário a cidade basca de Vitoria-Gasteiz. Desta vez, uma mulher grávida aparece queimada e pendurada numa corda pelos pés, com a cabeça dentro de um antigo caldeirão de bronze, cheio de água. À morte ritualística, a evocar o povo Celta, junta-se o facto da vítima ser uma antiga namorada do protagonista, estando assim reunidos os ingredientes necessários para um jogo de gato e rato entre Unai e o assassino.
Deste lado da fronteira, não é apenas a temática aquática o elemento em comum com “Águas Passadas”. Neste regresso de João Tordo ao policial, também a relação da protagonista com o putativo assassino pode ter raízes profundas. Neste romance acompanhamos Pilar Benamor, uma subcomissária da PSP em Cascais. Em mãos tem dois homicídios horripilantes cometidos a jovens menores de idade, contando com pouca ou nenhuma ajuda para resolvê-los, até mesmo por parte da instituição que representa. A exceção é Cícero, um eremita que vive junto à praia de Assentiz e cujas intenções não são claras. Ao longo de 13 dias de janeiro de 2019, em que a chuva pareceu cair sem fim, Pilar tem de resolver o crime e a si própria.
É frequente os protagonistas dos thrillers serem pessoas tão ou mais traumatizadas como os criminosos que perseguem — aliás, é partilhando dessas experiências que conseguem “pensar como um assassino”, apesar de não o serem. É também por isso que parte da experiência é compreender como vão reconciliar-se com os seus fantasmas. Em “Rapariga A”, essa recuperação surge até mais em foco do que os crimes em si. Nesta estreia de Abigail Dean, Lex Gracie, conhecida na imprensa pelo nome que serve como o título deste livro, é uma sobrevivente dos abusos dos pais, fanáticos religiosos que prenderam os filhos e os torturaram, tendo fugido dessa “casa dos horrores”. Anos depois, com ambos os progenitores mortos, ela e os seis irmãos herdam essa mesma propriedade que os marcou, sendo que o que se segue é um reencontro forçado entre uma família marcada mais pelo sofrimento que pelo amor. Essa é base para um thriller psicológico em que nenhum dos irmãos pode confiar no próximo.
Por fim, é incontornável mencionar aquele que é não só um dos grandes lançamentos da estação, como até do ano. Depois do fenómeno que foi “A Rapariga no Comboio” (e de, apesar menos bem sucedido, o seu sucessor “Escrito na Água”), Paula Hawkins regressa com “Um Fogo Lento”, num lançamento a nível mundial que é garantido em Portugal pela Topseller, a 31 de agosto. No epicentro desta narrativa está um homem assassinado em Londres e três suspeitas que gravitam à sua volta, todas elas com motivações distintas e sede de vingança. É através da sua perspetiva pouco confiável enquanto narradoras que a ação se movimenta e que os leitores têm de decifrar o que realmente aconteceu — com mais ou menos areia nas páginas.
Nem tudo é crime — 10 outras sugestões, do romance ao ensaio
É claro que, sendo esta a época por excelência do policial, nem por isso temos de nos cingir a esse género literário. Estes dois meses foram também alvo de vários lançamentos de peso no panorama nacional — um deles foi, justamente, “Verão”, o quarto e derradeiro volume do “quarteto das estações” de Ali Smith.
Apesar do título remeter para uma estação mais relaxada, a narrativa da multipremiada escritora escocesa não podia estar mais longe da tranquilidade. Tal como nos outros três livros — todos eles também editados pela Elsinore —, trata-se de ficção contemporânea no sentido mais aproximado do termo: a história passa-se no Reino Unido em 2020, com tudo o que esse malfadado ano representou, desde a pandemia às tensões raciais, ao medo do colapso ambiental e à ressaca pós-Brexit. No entanto, no cerne está a história de uma família que podia ser a nossa, navegando por entre o caos enquanto se digladia com os seus próprios problemas e o choque da sempre inevitável mudança.
Se esta história, no futuro, servirá de documento para revisitarmos o espírito dos “2010’s”, “O Dia da Independência” faz o mesmo quanto a uma certa vida mental da classe média-alta e a sua anomia materialista dos EUA na viragem dos anos 80 para os 90. Escrito por um dos grandes romancistas norte-americanos, Richard Ford, este livro é o segundo da saga “Bascombe”, onde cada volume remete para um episódio específico a dado ponto da vida de Frank Bascombe. Neste caso, passando-se a narrativa no fim de semana do 4 de Julho de 1988, o protagonista vive num solipsismo que o aflige, divorciado há sete anos e com os filhos a viver com a ex-mulher, abandonando a carreira de jornalista desportivo e lançando-se no mundo do imobiliário no subúrbio de New Jersey. Com o condão de ser a primeira obra de sempre a receber o Prémio Pulitzer e o Pen/Faulkner no mesmo ano, este livro foi agora reeditado pela Porto Editora.
Da placidez aborrecida dos subúrbios para o inferno do campo de batalha, “De Noite Todo o Sangue é Negro” marcou este ano triunfal para David Diop, tendo o escritor franco-senegalês ganho o International Booker Prize de 2021 com esta obra, publicada em 2018 e agora com edição em português pela Relógio d’Água. Com a Primeira Guerra Mundial como cenário, a história é contada da perspetiva de Alfa Ndiaye, senegalês recrutado à força pelo poder colonial francês para enfrentar os alemães. Na escaramuça, Alfa vê o seu amigo de infância, Mademba Diop, cair mortalmente ferido — a experiência, de mero camponês a peão lançado para a morte numa luta que não a sua, marca-o para sempre e fá-lo refletir sobre a própria existência.
É evidente que os legados coloniais e as feridas racistas nunca foram resolvidos pelas sociedades ocidentais, e nos últimos anos o tema tem ganho particular relevância, especialmente à boleia dos acontecimentos nos EUA. Mas é do Reino Unido que saiu um dos livros mais urgentes no que toca a esta matéria. “Porque Deixei de Falar com Brancos Sobre Raça”, da escritora e jornalista Reni Eddo-Lodge, é, em si mesmo, um título oxímoro: o seu objetivo (provocatório) é claramente de diálogo, mas nasce da frustração com pessoas brancas que até podem querer combater o racismo mas não compreendem o seu próprio privilégio. Publicado em Portugal pelas Edições 70, e com prefácio de Mamadou Ba, esta obra tanto traça uma história do racismo institucionalizado como o traz para a atualidade e procura demonstrar como as questões de género, classe e, claro, raça estão interligadas e como é preciso tomá-las no seu todo para combater a discriminiação.
Em matéria de livros pertinentes para compreender o nosso tempo — ou, neste caso, acontecimentos recentes — as mesmas Edições 70 quase estavam a adivinhar o regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão quando decidiram reeditar “A Grande Guerra pela Civilização”, do jornalista Robert Fisk, em julho. Uma das grandes obras que explica o novelo de contradições e complexidade geopolítica que é o Médio Oriente — do Iraque ao conflito israelo-palestiniano —, este livro, publicado em 2005, não se debruça sobre as últimas duas décadas da guerra no Afeganistão. No entanto, explica em detalhe — até porque Fisk esteve lá e até entrevistou um Osama Bin Laden pré-Al-Qaeda — o que lhe antecedeu, com a invasão soviética em 1980, o apoio dos EUA aos guerrilheiros mujahidin e como o seu triunfo bélico significou uma abertura do país ao extremismo religioso.
Ainda em matéria de pensamento e ensaio, é incontornável mencionar a edição de “Ensaios Um”, de Lydia Davis, pela Bazarov. Sendo uma das ficcionistas de proa nos EUA — especialmente no que toca ao conto e à microficção — e uma tradutora de renome, neste volume — o primeiro de dois — a escritora inclui desde ensaios a palestras, focando-se sobretudo no labor da prosa, na preocupação com a linguagem — cada uma das frases dos seus contos é como que esculpida à letra — e na sua relação com as artes e como estas a influenciaram, da pintura e fotografia à literatura.
No que toca à produção literária de grandes figuras no feminino, um dos grandes regressos do ano é o de Maria Teresa Horta. “Paixão”, editado pela Dom Quixote, chega aos escaparates no final do mês, sucedendo-se a “Estranhezas” e a “Eu Sou a Minha Poesia”, esta última uma antologia reunida pela própria, fruto de uma vida dedicada à poesia. Sendo que os rumos sinuosos do amor e do afeto nunca foram alheios à sua caneta, esta obra, porém, é marcada pela perda — é uma homenagem em verso a Luís de Barros, seu marido falecido em 2019.
Outro dos regressos de vulto é o de Ana Margarida de Carvalho. A escritora e jornalista regressa em “Cartografias de Lugares Mal Situados” ao formato do conto com o qual se estreou com “Pequenos Delírios Domésticos” e que representa novo desvio do tipo de romance denso e lírico que a celebrizou. Com o subtítulo “10 contos de guerra”, esta edição da Relógio d’Água não esconde o formato proposto: histórias onde o conflito armado é o elemento central e de onde se parte, percorrendo desde campos de batalha das Invasões Francesas até povoações sitiadas.
Já a fechar, este verão trouxe ainda uma surpresa. Para os aficionados das coleções de livros de bolso da Penguin Classics — seja pelo seu extenso repertório, seja pelo seu trabalho gráfico lendário —, vai passar a haver uma edição portuguesa. Só que, além de alguns títulos canónicos receberem esse tratamento de exceção — “Os Maias”, de Eça de Queirós, “O Livro de Cesário Verde”, “A Metamorfose” de Kafka e “A Quinta dos Animais”, de Orwell, fazem parte da seleção inaugural —, o lançamento faz-se também com a estreia de um clássico brasileiro inédito em Portugal, a 24 de agosto.
Obra maior de Lima Barreto, originalmente publicada em folhetim em 1911, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” chega assim ao mercado nacional em formato de bolso. No cerne da trama está o protagonista desta história, que lhe dá nome,que é nada mais que um major consumido pela megalomania bem intencionada, mas destinada a falhar de transformar o Brasil do fim de século numa potência modernizada. Antecipando a derrocada que os nacionalismos sem freio provocariam no mundo no século XX, este romance imbuído pela sátira conta nesta edição com introdução da historiadora e antropóloga brasileira Lilia Schwarcz, assim como um prefácio da investigadora Clara Rowland.
Por fim, ainda por terras patrícias, a Elsinore edita “Vista Chinesa”, da escritora Tatiana Salem Levy, a 30 de agosto. O título remete para o famoso miradouro no Rio de Janeiro, mas pelas piores razões. Era para onde a protagonista, Júlia, se deslocava antes de ser ameaçada de morte com uma arma apontada à cabeça por um homem que a leva para uma floresta e a viola. Sete anos depois — o crime dá-se em 2014 —, o trauma ainda não cessou e a luta pela superação continua. O pior desta história é que é o relato ficcionado de um caso real — prova de que, por mais mirabolantes que sejam os crimes que lemos nestas páginas por escape, a realidade consegue sempre superá-los.
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