Está uma manhã quente na Foz, ponta ditosa do Porto que mergulha no mar. No castelo, que tem nome de forte e santo, vai já abrindo um rumor. Hoje é dia de festa, mesmo se a pandemia a faz diferente. Chegam os músicos, um a um, compondo a banda.
O cortejo do traje de papel é exatamente isso que o nome diz: as gentes da Foz do Douro vestem-se em fatos feitos de papel colorido e marcham à praia, para um santo banho. Hoje, não há santos. Haverá banho lá para diante, mas faltam pelo menos seis centenas de pessoas no cortejo. Num qualquer outro ano, são à volta de seiscentas os figurantes. Hoje são 16 — somente uns poucos de gente, a ver se o bicho não cala a tradição.
O Cortejo do Traje de Papel faz parte das Festas de São Bartolomeu, que este ano, por causa da covid-19, foram adaptadas. Organizado pela União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, no extremo ocidental da cidade do Porto, o desfile junta habitualmente várias associações locais. Desta vez, porém, conta só com a participação da Associação de Moradores de Aldoar, da Associação de Moradores do Bairro Social da Pasteleira e do Orfeão da Foz do Douro.
Mesmo a confecção dos trajes foi alterada: começou mais tarde, não havendo os vários meses que vestir 600 pessoas de papel obriga. Em sendo 16, o processo agiliza. Resta no castelo a possibilidade de ver os fatos de outros anos — e o mercado montado no Passeio Alegre a fazer as vezes de romaria.
Este ano, o tema é a Revolução Liberal de 1820, que o Porto tem assinalado, com um moderado entusiasmo. Aqui no Castelo da Foz, alinham-se os marchantes, saindo da pedra para o terreiro. O sol reluz no papel, enquanto se compõem as personagens: de carmim vem o Almeida Garrett, ao lado dele a liberdade. Há os deputados, a separação de poderes. Há isto e outra coisa.
Saindo do também Forte de São João Baptista, o percurso segue para o Passeio Alegre, esse agradável jardim à beira da boca do Douro, onde as árvores exuberantes completam um cenário de tempo antigo, decorado peles reflexos de quem ali ia a andar, sem tenções de dar de caras com esta gente vestida de papel.
“É uma performance?”, pergunta uma turista, “quem são os artistas plásticos?”, interroga. E o Almeida Garrett, faz que não, que não é arte, mas tradição.
Saem da sombra e continuam pelas ruas da Foz. Cortam à beira da praia, encaixados no sopé do castelo, em cuja varanda arranca a orquestra. O povo ajunta-se a ver, antes de o cortejo seguir novamente, serpenteando os labirintos desta terra.
Por fim, a praia. Os corpos arrepiam-se quando os pés mergulham. A água tinge-se da cor dos fatos, e quanto maior o mergulho, menos fato resta. Ali a festa afoga-se, desaparecendo em pasta desfeita o cortejo. Ficam os corpos ao léu, vestidos só do tingimento que o papel lhes deixou na pele. Aplaude-se.
O bicho pode vir, que sempre há maneira de lhe tornear as voltas para cumprir a tradição. Assim é a liberdade.
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