Primeira Parte - As Terras Selvagens
Não fui ao funeral de Æthelflæd.
Foi sepultada em Gleawecestre, no mesmo jazigo que o marido, que ela odiara.
O irmão dela, o rei Eduardo do Wessex, era o principal enlutado e, cumpridos os últimos ritos e orações, e sepultado o corpo de Æthelflæd, ele permaneceu em Gleawecestre. A bandeira estranha da irmã com o símbolo do ganso sagrado foi descida do topo do palácio e, em seu lugar, foi içado o dragão do Wessex. A mensagem não poderia ter sido mais clara. A Mércia deixara de existir. Todas as terras britânicas a sul da Nortúmbria e a leste de Gales passaram a formar um só domínio sob o governo de um único rei. Eduardo enviou‑me uma convocatória, exigindo que eu viajasse até Gleawecestre para lhe prestar o juramento da minha lealdade pelas terras que possuía onde havia sido a Mércia, e a convocatória trazia o seu nome, seguido pelas palavras «Anglorum Saxonum Rex». Rei dos anglos e dos saxões. Resolvi ignorar o documento.
No espaço de tempo de um ano, recebi segunda convocatória, esta vinha assinada e selada de Wintanceaster. Dizia‑me que, pela graça de Deus, as terras da Mércia que Æthelflæd me havia cedido se encontravam agora nas mãos do bispado de Hereford, que, afiançava-me o pergaminho, empregaria as ditas terras no auxílio à glória de Deus.
— O que significa — expliquei a Eadith — que o bispo Wulfheard passará a ter mais prata para gastar com as suas prostitutas.
— Talvez devesses ter ido a Gleawecestre? — sugeriu Eadith.
— E ter feito juramento ao Eduardo? — cuspi o nome. — Nunca! Eu não preciso do Wessex e o Wessex não precisa de mim.
— Então, o que pensas fazer em relação às terras? — perguntou‑me.
— Nada — respondi. O que poderia eu fazer? Uma guerra contra o Wessex? Irritava‑me que o bispo Wulfheard, um inimigo antigo, tivesse tomado as terras para si, mas, na verdade, eu não necessitava das terras na Mércia. Reconquistara Bebbanburg. Era dono da fortaleza, um lorde nortumbriano que possuía tudo aquilo que desejava. — Por que razão haveria de fazer alguma coisa em relação às terras? — resmunguei com Eadith. — Estou velho e não preciso de problemas.
— Tu não estás velho — disse‑me, com lealdade.
— Eu sou velho — insisti. Tinha mais de sessenta anos, era um ancião.
— Não pareces velho.
— Portanto, agora o Wulfheard pode cobrir à vontade as suas prostitutas e eu posso viver em paz. Não me importo se não voltar a ver o Wessex ou a Mércia.
Contudo, um ano mais tarde, encontrava‑me na Mércia, montado no Tintreg, o meu garanhão mais veloz, e envergando cota de malha e elmo e com a Bafo de Serpente do meu lado esquerdo, na bainha presa ao cinturão. Rorik, o meu criado, carregava o meu escudo pesado com rebordo em aço e, atrás de nós, seguiam noventa homens, todos eles armados, todos eles montados em cavalos de guerra.
— Santo Deus — disse Finan junto de mim, enquanto olhava demoradamente o inimigo a aglomerar‑se no vale abaixo de nós. — São uns quatrocentos daqueles canalhas? — hesitou. — Quatrocentos, no mínimo. Talvez quinhentos?
Permaneci em silêncio.
Entardecia já, naquele dia de inverno, e fazia muito frio. O respirar dos cavalos formava pequenas névoas entre os braços das árvores sem folhagem, as quais coroavam aquela suave colina, de onde observávamos o inimigo. O Sol descia atrás de nuvens, o que significava que não haveria reflexos traiçoeiros dos seus raios de luz sobre o metal das nossas cotas de malha ou espadas. Mais longe, à minha esquerda, a ocidente, o rio Dee estendia-se plano e cinzento, alargando-se na direção do mar. No terreno inferior, à nossa frente, encontrava‑se o inimigo e, atrás dele, erguia‑se Ceaster.
— São uns quinhentos — decidiu Finan.
— Nunca pensei voltar a ver este lugar — falei-lhe. — Nunca quis voltar a vê‑lo.
— Destruíram a ponte — disse Finan, focando o olhar no Sul longínquo.
— Não terias feito o mesmo, se estivesses no lugar deles?
Aquele lugar era Ceaster, e o nosso inimigo cercava a cidade. A maior parte dele estava a leste do forte, porém as fogueiras de acampamento traíam a presença de muitos mais a norte. O rio Dee corria a sul da muralha da cidade, depois voltava‑se para norte, ampliando‑se no seu estuário, e, ao destruir o vão central da antiga ponte romana, o inimigo havia‑se assegurado de que nenhum reforço viesse em auxílio do forte a partir do Sul. Se a pequena guarda da casa quisesse lutar e sair da armadilha, teria de deslocar-se para norte ou leste, onde a força do inimigo era maior. E aquela guarda era mesmo ínfima. Fora-me dito, em tom de palpite, que seriam menos de cem homens a defenderem aquele forte.
Finan deveria estar a pensar no mesmo.
— E quinhentos homens não conseguirão tomar a cidade? — disse, com sarcasmo na voz.
— Talvez sejam uns seiscentos? — sugeri, mansamente. Era difícil de estimar o número de guerreiros inimigos, porque no acampamento do cerco encontravam‑se muitas mulheres e crianças, porém, a estimativa de Finan pareceu‑me insuficiente. Tintreg baixou a cabeça e deitou ar pelas narinas. Dei‑lhe palmadinhas amistosas no pescoço, depois levei a mão ao punho da Bafo de Serpente para ter boa sorte. — Eu não quereria atacar aquela muralha — proferi. A muralha em pedra de Ceaster fora construída pelos romanos, que a fizeram com mestria. E a guarda reduzida da casa de Ceaster fora bem liderada, pensei. Havia repelido o primeiro ataque, o que levou o inimigo a estabelecer‑se num acampamento e esperar que a cidade passasse fome.
— Ora, o que fazemos nós? — perguntou o Finan.
— Bem, — disse‑lhe, — nós empreendemos uma longa viagem.
— Portanto?
— Portanto, seria uma pena não lutarmos. — Olhei demoradamente a cidade. — Se é verdade o que nos dizem, — refleti em voz alta, — aqueles pobres canalhas no interior do forte estarão a comer ratazanas, a esta altura. E aqueles ali? — Apontei com a cabeça para os que se encontravam no acampamento. — Estão com frio e entediados, e já estão aqui há demasiado tempo. Feriram‑se, quando atacaram a muralha e agora limitam‑se a esperar.
Conseguia ver as espessas barricadas que os sitiantes tinham erguido no exterior dos portões norte e leste de Ceaster. Estas estariam a ser guardadas pelas melhores tropas do inimigo, ali colocadas para impedir que a guarda da casa navegasse por barco ou fugisse por esses acessos.
— Estão com frio, — repeti, — estão entediados e são inúteis. Finan sorriu.
— Inúteis?
— São maioritariamente do fyrd — afirmei. O fyrd é um exército composto por camponeses, pastores, homens comuns. Podem até ser valentes, mas um guarda da casa treinado, como o eram os noventa homens que me seguiam, conseguia ser bem mais letal. — Inúteis, — tornei a dizer, — e estúpidos.
— Estúpidos? — perguntou Berg, montado no seu garanhão, atrás de mim.
— Não têm sentinelas! Não deveriam ter permitido que nos aproximássemos tanto. Não fazem ideia de que nos encontramos aqui e a estupidez pode levar à morte.
— Então, ainda bem que são estúpidos — disse Berg. Era um homem do Norte, jovem e selvagem, que nada temia a não ser a desaprovação da sua esposa saxã.
—Três horas até o Sol se pôr? — sugeriu Finan.
— Não desperdicemos tempo.
Voltei Tintreg, tornei a galopar por entre as árvores, para dar à estrada que conduzia a Ceaster a partir do vau do rio Mærse. A estrada trouxe-me à memória a cavalgada para enfrentar Ragnall, a morte de Haesten, e agora levava-me a mais uma batalha.
A nossa aparência, porém, era tudo menos ameaçadora, ao descermos a cavalo gentilmente a encosta pouco íngreme. Não nos apressávamos. Vínhamos como homens que haviam empreendido uma longa jornada, o que era verdade, e mantínhamos as espadas nas bainhas, as lanças empilhadas sobre cavalos de carga conduzidos pelos nossos criados. O inimigo deve ter-nos avistado assim que emergimos da orla da floresta, porém éramos poucos e eles muitos, aproximávamo-nos a passo lento, dando a aparência de que vínhamos em paz. A muralha alta em pedra da cidade encontrava-se na sombra, mas eu conseguia distinguir as bandeiras erguidas no topo dela. Exibiam cruzes cristãs, e eu lembrei-me do bispo Leofstan, um tolo santo e um homem bom, que fora escolhido para o bispado de Ceaster por Æthelflæd. Fora ela quem reforçara e colocara defesas na muralha da cidade, enquanto baluarte contra as investidas dos homens do Norte e dos dinamarqueses, que atravessavam o mar da Irlanda à caça de escravos em terras saxãs.
Æthelflæd, a filha do rei Alfredo, a então governante da Mércia. Agora estava morta, o corpo dela a decompor-se numa tumba de pedra. Imaginava as mãos mortas dela a segurarem um crucifixo, na escura podridão da sepultura, e lembrei-me dessas mesmas mãos a agarrarem-se às minhas costas, enquanto ela se movia debaixo de mim.
— Que Deus me perdoe, — dizia-me, — não pares!
E agora ela trazia‑me de volta a Ceaster.
E a Bafo de Serpente estava prestes a voltar a matar.
O irmão de Æthelflæd reinava sobre o Wessex. Ele não se importara de permitir que a irmã governasse a Mércia, porém, após o falecimento dela, ele marchara sobre aquele território com as suas tropas saxãs ocidentais, atravessando o rio Temes. Dissera o rei Eduardo, então, que haviam vindo fazer as honras fúnebres da irmã, contudo permaneceram e impuseram o seu governo sobre o domínio que fora da Æthelflæd. Eduardo, tornado Anglorum Saxonum Rex.
Os lordes mercianos que se vergaram à vontade do rei saxão foram recompensados, porém alguns, embora poucos, ficaram ressentidos com os saxões ocidentais. A Mércia era um território orgulhoso. Houvera um tempo em que o rei da Mércia fora o mais poderoso da Bretanha, em que os reis do Wessex e de East Anglia, tal como os líderes de Gales, lhe pagavam tributos, em que a Mércia fora o maior dos reinos britânicos. Depois tinham chegado os dinamarqueses e a Mércia caíra, e fora Æthelflæd que dera luta, que empurrara os pagãos para o Norte e mandara construir as fortalezas que protegiam as suas fronteiras. E ela estava morta, decompunha-se, e eram agora as tropas do irmão que guardavam as muralhas dos fortes erigidos, e o rei do Wessex proclamava-se rei de todos os saxões e exigia prata para pagar às guardas das diversas fortalezas, e ele tomava as terras dos lordes ressentidos e entregava-as aos seus próprios homens ou à Igreja. Dava sempre à Igreja, porque eram os sacerdotes que pregavam às gentes da Mércia ser a vontade do deus crucificado que Eduardo do Wessex fosse o rei daquele território e que oporem-se ao rei seria o mesmo que resistirem ao deus deles.
Contudo, o medo ao deus crucificado não evitou a revolta e, assim sendo, iniciara-se uma luta, saxão contra saxão, cristão contra cristão, merciano contra merciano e a Mércia contra a Saxónia Ocidental. Os rebeldes lutavam sob o estandarte de Æthelflæd, declarando ter sido a vontade dela que a filha, Ælfwynn, fosse sua sucessora. Ælfwynn, rainha da Mércia! Eu gostava dela, mas atribuía-lhe tanta capacidade para governar um território como para alvejar um javali com uma lança. Era volúvel, frívola, bonita e insignificante. Eduardo, ao saber que a sobrinha fora nomeada para o trono, tratou de a afastar para um convento, juntamente com a esposa dele, que assim descartava. Contudo, os rebeldes erguiam a bandeira da mãe e lutavam em nome dela. Eram liderados por Cynlæf Haraldson, um guerreiro saxão ocidental que Æthelflæd gostaria de ter tido como genro. É claro que, na verdade, Cynlæf queria o trono da Mércia para ele próprio. Era jovem, bem parecido, valente nas batalhas e, a meu ver, estúpido. A ambição dele era derrotar os saxões ocidentais, resgatar a noiva do convento e, de seguida, ser coroado rei.
Porém, primeiro que tudo, teria de capturar Ceaster. E ele havia falhado o intento.
— Parece que vai nevar — disse Finan, enquanto cavalgávamos para sul, na direção da cidade.
— É muito tarde no ano para ser neve — contrapus, confiante.
— Sinto o frio até aos ossos — falou, estremecendo. — Vai nevar ao anoitecer.
Zombei do parecer dele.
— Aposto dois xelins que não neva. Riu-se.
— Deus enviou-me tolos com prata! Os meus ossos nunca se enganam. — Finan era irlandês; era o meu braço-direito e o meu melhor amigo. O rosto dele, emoldurado pelo aço do seu elmo, apresentava rugas e parecia velho; a barba tornara-se grisalha. Tal como a minha, aliás. Observava-o, enquanto ele desapertava o couro da bainha da Rouba Almas e os seus olhos passavam rapidamente pelas fogueiras do acampamento à nossa frente. — Portanto, o que vamos fazer? — perguntou-me.
— Vamos escorraçar os canalhas do lado leste da cidade — disse-lhe.
— Desse lado há muitos — observou.
Calculei que estivessem dois terços das forças inimigas acampadas ali, no flanco este de Ceaster. Ali, as fogueiras de acampamento adensavam-se, a arderem entre abrigos baixos, improvisados com ramos de árvores e turfa. A sul daqueles rudes abrigos havia uma dúzia de tendas vistosas, montadas na proximidade da antiga arena romana, a qual, embora tivesse sido utilizada convenientemente como pedreira, continuava mais elevada do que as tendas, que exibiam duas bandeiras bambas no ar imóvel.
— Se o Cynlæf ainda estiver aqui, — falei a Finan, — deve encontrar‑se numa daquelas tendas.
— Esperemos que o canalha esteja ébrio.
— Ou então está na arena — acrescentei. A arena fora construída no exterior da cidade e perfazia uma enorme massa de pedra. Sob as suas pedras alinhadas em bancadas situavam‑se divisões semelhantes a cavernas que, na última vez que as visitara, serviam de alojamento a matilhas de cães selvagens. — Se ele tiver alguma visão, — continuei, — já terá abandonado o cerco, deixado homens a controlarem a situação de não fornecimento ao forte e ido para sul. Porque é lá que a rebelião será ganha ou perdida, não aqui.
— E ele tem visão?
— Ele é um nabo — proferi, depois comecei a rir. Um grupo de mulheres em busca de lenha desviara‑se da estrada e ajoelhara‑se, para melhor recolher os pedaços de madeira e, quando íamos a passar, levantaram a cabeça e olharam para mim, espantadas. Acenei‑lhes. — Estão prestes a serem viúvas, por nossa ação — falei, e continuava a rir‑me.
— E qual é a graça?
Esporeei Tintreg para um trote.
— O que tem graça — disse-lhe — é sermos dois velhos a cavalgarem para a guerra.
— Fale por si — frisou Finan.
— Temos a mesma idade!
— Ainda não sou avô!
— Como sabes?
— Os ilegítimos não contam.
— Contam, sim — insisti.
— Então, já deve ser bisavô, por esta altura!
Atirei‑lhe um olhar severo.
— Os ilegítimos não contam — rosnei. Finan riu‑se, depois benzeu‑se, pois aproximávamo‑nos do cemitério romano, que se estendia de ambos os lados da estrada. Ali haveria fantasmas a vaguearem entre as pedras tumulares cobertas de musgo e de verdete, esvanecendo‑se os nomes escritos em latim, que apenas os sacerdotes cristãos conseguiriam ler e entender. Anos antes, num acesso de zelo, um sacerdote havia começado a abalroar aquelas pedras, declarando tratar‑se de abominações pagãs. Naquele mesmo dia teve morte súbita, e, desde então, os cristãos passaram a tolerar aquelas tumbas, que, assim pensava eu, seriam protegidas pelos deuses romanos. O bispo Leofstan havia‑se rido, quando lhe contara a história e assegurara‑me que os romanos tinham sido bons cristãos. — Foi o nosso deus, o nosso verdadeiro deus, que abateu o sacerdote — falara-me. E, depois, o próprio Leofstan sofreu morte súbita, tal como o sacerdote que odiara aquelas sepulturas. Wyrd bið ful āræd. O destino é inexorável.
Os meus homens seguiam-nos agora em fila. Não formavam uma fila única, mas quase, pois nenhum deles queria cavalgar demasiado próximo da beira da estrada, porque era ali que os fantasmas se aglomeravam. A longa linha irregular de cavaleiros tornava-nos mais vulneráveis, porém o inimigo parecia alheado da nossa presença enquanto ameaça. Passámos por outras mulheres, todas elas curvadas sob o peso da lenha que carregavam, a qual haviam cortado e apanhado no bosque pequeno a norte das sepulturas. As fogueiras de acampamento encontravam-se agora muito próximas de nós. A luz da tarde desvanecia-se, embora ainda faltasse cerca de uma hora para o crepúsculo. Conseguíamos ver homens no topo norte da muralha da cidade, as lanças deles, e eu sabia que estariam a observar-nos. Pensariam certamente que éramos um reforço enviado aos sitiantes.
Fiz parar Tintreg, logo após termos passado o antigo cemitério romano, e esperei, juntamente com Finan, que os meus homens me alcançassem. Aquelas tumbas e a memória do bispo Leofstan trazia-me recordações do passado.
— Lembras-te da Mus? — perguntei a Finan.
— Claro! Como é possível esquecê-la? — Sorriu de orelha a orelha. — Chegou a…
— Nunca. E tu?
Abanou a cabeça em sinal negativo.
— O seu filho é que teve algumas boas cavalgadas com ela.
Eu deixara o meu filho no comando da guarda da casa de Bebbanburg.
— Ele é um sortudo — anuí. Mus, que era Sunngifu de seu verdadeiro nome, era pequena como um ratinho e fora esposa do bispo Leofstan.
— Pergunto‑me onde estará ela, agora? — Continuava a observar a parte norte da muralha de Ceaster, tentando estimar o número de homens que ali estariam de guarda. — São mais do que esperava — falei.
— Mais? — indagou Finan.
— Os homens no topo da muralha — expliquei. Consegui distinguir pelo menos quarenta guardas, sabendo que no lado leste, onde se enfrentava o grosso do inimigo, encontrar‑se‑ia um número equivalente.
— Talvez tenham obtido um reforço? — sugeriu Finan.
— Ou o monge que nos informou estava enganado, o que não me surpreenderia.
Havia vindo um monge a Bebbanburg, trazendo-nos novidades sobre o cerco de Ceaster. Nós já estávamos a par da rebelião da Mércia, obviamente, e éramos a favor da mesma. Não constituía segredo que Eduardo, que agora se apresentava com pompa como rei dos anglos e dos saxões, pretendia invadir a Nortúmbria e tornar verdade o título arrogante que tomara para si. Sigtryggr, o meu genro e rei da Nortúmbria, havia estado a preparar-se para aquela invasão, temendo-a, e foi então que chegara a notícia de que a Mércia se encontrava dividida e que Eduardo, longe de concretizar os seus planos invasores, travava batalhas a fim de manter as terras recém-conquistadas. A nossa resposta fora a mais evidente: não intervir! Deixar que o novo domínio de Eduardo se desintegrasse, porque cada guerreiro saxão a cair na Mércia era uma espada a menos a auxiliar a invasão da Nortúmbria.
Contudo, ali estava eu, num fim de tarde de inverno, sob um céu que escurecia, e viera para lutar a favor da Mércia. Sigtryggr mostrara desagrado, mais ainda a mulher dele, a minha filha.
— Porquê? — exigira saber.
— Fiz um juramento — declarara‑lhes, o que silenciara os protestos de ambos.
Os juramentos são sagrados. Quebrar um deles significa atrair para si a ira dos deuses, pelo que Sigtryggr anuiu relutantemente ao meu apoio no alívio do cerco de Ceaster. Não poderia ter feito muito para me impedir: eu era o seu lorde mais poderoso, o sogro dele e o senhor de Bebbanburg, e, na verdade, devia-me o seu estatuto de rei da Nortúmbria, porém insistira que levasse comigo menos de cem homens.
— Leve mais, — avisara-me, — e temos os malditos escoceses a invadirem-nos a fronteira. — Concordei com ele e liderava agora noventa guerreiros, com os quais tencionava salvar o novo reino do rei Eduardo.
— O pai considera que o rei Eduardo irá agradecer‑lhe? — havia‑me perguntado a minha filha, na tentativa de encontrar algo de bom na minha decisão perversa. Ela pensava que a possível gratidão de Eduardo o levasse a abandonar os planos de invadir a Nortúmbria.
— O Eduardo vai achar que sou um tolo.
— E é! — afirmara Stiorra.
— Além disso, — acrescentei então, — ouvi dizer que está doente.
— Ainda bem — dissera‑me ela em tom vingativo. — Talvez a nova esposa dele o tenha desgastado?
Eduardo não ficaria agradecido, o que quer que acontecesse ali, pensava eu naquele momento. Os cascos dos nossos cavalos embatiam ruidosamente no empedrado da estrada romana. Continuávamos a cavalgar sem pressa, não demonstrando ser uma ameaça. Passámos o antigo pilar de pedra desgastada que indicava a milha restante para chegarmos a Deva, o nome que os romanos haviam atribuído a Ceaster. Naquele instante, encontrávamo-nos no meio dos casebres e das fogueiras de acampamento, e o povo observava-nos à nossa passagem. Não pareciam alarmados, não se vislumbravam quaisquer sentinelas, ninguém nos desafiou.
— O que se passa com eles? — resmungou‑me Finan.
— Pensam que, a chegar algum auxílio, virá de leste, — disse‑lhe, — e não do Norte. Por isso, devem supor que estamos do lado deles.
— Então, são imbecis — concluiu. E é claro que tinha razão. Cynlæf, caso fosse ele ainda a comandar aquele cerco, devia ter colocado sentinelas em cada acesso ao acampamento dos sitiantes, porém, as longas semanas frias de inverno tornara‑os preguiçosos e incautos. Cynlæf já só queria capturar Ceaster e esquecera‑se de proteger as suas costas.
Finan, que tinha a visão de uma águia, olhava atentamente o forte de Ceaster.
— Aquele monge disse um monte de tretas — disse em tom de escárnio. — Consigo ver cinquenta e oito homens na parte norte da muralha!
O monge que me trouxera a novidade sobre o cerco de Ceaster garantira que a guarda da casa era penosamente reduzida.
— Quão reduzida? — perguntara‑lhe.
— Não tem mais de cem homens, senhor. Eu olhara‑o com ceticismo.
— Como é que sabe?
— Disse-mo o sacerdote, senhor — explicara-me, nervosamente. O monge, que respondia pelo nome de irmão Osric, afirmara ainda pertencer ao mosteiro de Hwite, lugar sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar antes, que ficava, segundo ele, a algumas horas de caminho a pé a sul de Ceaster. Contara-nos também da chegada de um sacerdote ao seu mosteiro. — Ele estava a morrer, senhor! Queixava‑se de muitas dores no abdómen.
— E era o padre Swithred, certo?
— Sim, senhor.
Eu conhecia Swithred. Tratava-se de um homem já de idade, um sacerdote feroz, cheio de azedume, que não gostava de mim.
— E a guarda da casa enviou-o em busca de apoio?
— Sim, senhor.
— Não enviaram um guerreiro porquê?
— Um sacerdote pode chegar a lugares, onde não deixam entrar um guerreiro — explicara-me o irmão Osric. — O padre Swithred disse‑me que partira da cidade ao cair da noite e atravessara o acampamento dos sitiantes, sem que tentassem impedi‑lo, senhor. Depois veio até Hwite.
— Onde foi recebido já doente?
— Onde se encontrava a morrer, quando de lá saí, senhor. — O irmão Osric benzera‑se. — Temos de aceitar a vontade de Deus.
— O vosso deus tem uma vontade estranha — rosnara‑lhe.
— E o padre Swithred implorou ao meu abade que enviasse um de nós até vós, senhor, — continuara o irmão Osric, — e fui eu o enviado — terminara, desajeitadamente. Estivera de joelhos diante de mim, em jeito de súplica, e eu reparei numa cicatriz avermelhada a atravessar‑lhe a tonsura.
— O padre Swithred não gosta de mim, — falara‑lhe, — e detesta todos os pagãos. No entanto, ele envia‑o a mim?
A pergunta deixara o irmão Osric desconfortável. Enrubescera, depois iniciara a gaguejar:
— Ele… ele…
— Ele insultou‑me? — sugerira‑lhe.
— Foi o que fez, senhor. — Parecia aliviado por lhe ter adiantado uma resposta desagradável que estaria relutante em dar‑me. — Mas ele também disse que atenderia ao pedido da guarda de Ceaster.
— E o padre Swithred não trazia consigo uma carta, — indagara, — com o pedido do meu apoio?
— Trazia, sim, senhor, mas vomitou em cima dela. — Fizera um esgar. — Mas o vómito foi feio, senhor, cheio de bílis e sangue.
— Como fez essa cicatriz? — perguntara‑lhe, então.
— A minha irmã bateu‑me, senhor — respondera‑me, surpreendido. — Com uma foice, senhor.
— E quantos homens tem a tropa sitiante?
— O padre Swithred disse, que eram centenas, senhor. — Lembrava‑me bem do nervosismo do irmão Osric. Ele pensara o quê? Que iria encontrar um pagão famoso com cornos e um rabo bifurcado. — Por Deus, senhor, — continuara Osric, — a guarda conseguiu aplacar um ataque e eu rezo para que a cidade não tenha caído nas mãos dos atacantes. Eles suplicam pela sua ajuda, senhor.
— Por que razão não têm a ajuda do Eduardo?
— O rei tem outros inimigos, senhor. Está a lutar contra eles no Sul da Mércia. — O monge erguera a cabeça e olhara‑me com um ar suplicante. — Por favor, senhor! Aquela guarda não se aguenta por muito mais tempo!
Porém, havia-se aguentado e nós chegáramos. Já tínhamos abandonado a estrada e os nossos cavalos trotavam a passo lento pelo acampamento sitiante. Os mais sortudos haviam encontrado abrigo nos edifícios da quinta em construção romana. Eram edifícios sólidos em pedra, embora a passagem do tempo lhes tivesse arrancado os telhados, constituídos agora por coberturas irregulares de juncos e ervas sobre traves de madeira. Contudo, a maioria das gentes encontrava-se em rudes abrigos improvisados. Mulheres mantinham as fogueiras acesas com a lenha acabada de recolher, no intuito de prepararem a refeição noturna. A nossa presença não despertava a curiosidade delas. Viram a minha cota de malha e o meu elmo ornamentado com crista de prata, viram ainda os ornamentos prateados nos freios de Tintreg e, assim sendo, pensaram que eu era um lorde e ajoelhavam-se, à medida que passávamos, sem ousarem perguntar-nos quem éramos.
Parei o cavalo num espaço aberto do lado norte da cidade. Olhei em redor, intrigado por ver tão poucos cavalos. Planeara enxotar aqueles animais dali, para que nenhum inimigo pudesse utilizá-los numa fuga, tal como decidira capturá-los para nós, a fim de compensar os custos daquela viagem de inverno. Porém, não avistei mais do que uma dúzia deles. Se não havia mais cavalos, então encontrávamo-nos em vantagem e, assim sendo, fiz voltar Tintreg e encaminhei-o de novo por entre os meus homens, até chegar junto dos animais de carga.
— Desatem o monte de lanças — ordenei aos rapazes. Havia oito pilhas pesadas, seguras por cordas de couro entrelaçado. Cada lança tinha cerca de dois metros de comprimento, apresentando um cabo em faia e uma lâmina em aço afiada. Aguardei por que desatassem cada molhe e os meus homens pegassem na sua lança. Muitos deles traziam igualmente um escudo consigo, mas outros haviam preferido não se sobrecarregarem com as tábuas pesadas de salgueiro. O inimigo permitira que chegássemos até ao centro do seu acampamento e deve ter visto os meus homens a pegarem em armas, contudo continuara a observar‑nos apenas, sem nada fazer. Esperei que os rapazes recolhessem as cordas de couro e voltassem a montar os seus cavalos. — Cavalguem — ordenei‑lhes — para leste e aguardem no campo que vos mande chamar de novo. Tu não, Rorik.
Rorik era o meu criado, um bom rapaz. Era um nórdico. Havia matado o pai dele em batalha e capturado o menino, e agora tratava-o como um filho, tal como Ragnar, o Dinamarquês, havia cuidado de mim, após os homens dele terem ferido o meu pai de morte, em combate.
— Eu não, senhor? — perguntou‑me.
— Tu segues‑me, — falei‑lhe, — com o corno pronto. Ficas atrás de mim! E não vais precisar dessa lança.
Puxou a lança para fora do meu alcance.
— É apenas uma arma sobresselente para vós, senhor — disse‑me. É claro, que estava a mentir, pois mal podia esperar para dar uso à lança.
— Vê lá se queres morrer, idiota — rugi‑lhe, depois aguardei até verificar que os rapazes e os cavalos de carga se encontravam seguros, no campo além da orla da cidade. De seguida voltei‑me para os meus homens. — Já sabem o que têm a fazer — disse‑lhes em voz alta. — Portanto, façam‑no!
E foi assim que começou.
Formámos uma fileira, esporeámos os cavalos e avançámos.
O fumo das fogueiras de acampamento fazia arder os olhos. Um cão ladrou, uma criança chorava. Três corvos passaram a voar na direção leste, as asas negras a adejarem sobre o fundo cinzento das nuvens escuras, e eu perguntei‑me se seria um presságio. Toquei com as esporas nos flancos de Tintreg e ele deu um salto para a frente e avançou. Finan encontrava‑se à minha direita, Berg do meu lado esquerdo. Sabia, que ambos pretendiam proteger‑me e isso deixava‑me ressentido. Podia até estar velho, mas não fraco. Baixei a ponta da lança, dei um toque de joelho a Tintreg, depois inclinei‑me na minha sela e enterrei a lâmina no ombro de um homem. Senti o aço estilhaçar o osso, aliviei a força colocada na arma, e o atingido voltou‑se para mim, os olhos cheios de dor e de espanto. Não tentara matá‑lo, quisera aterrorizá‑lo. Esporeei o cavalo para passar por ele, sentindo a lança soltar‑se do seu ombro, balanceei‑a de novo para trás e observei, enquanto o pânico se instalava.
Imaginem‑se com frio, entediados e com fome, talvez mesmo já doentes e enfraquecidos, pois o acampamento tresandava a excremento. Imaginem que os vossos líderes vos dizem mentiras. Caso tenham uma ideia de como o cerco irá terminar, não vo-la revelam. E o frio continua, dia após dia, um tempo gélido que parece morder os ossos, e a lenha nunca é suficiente para as fogueiras, apesar dos esforços diários das mulheres em busca de mais. Dizem‑vos que o inimigo está a morrer de fome, mas são vocês que a sentem. Chove. Alguns homens tentam fugir, esgueirar‑se de alguma maneira com a esposa e os filhos e levá‑los para casa, porém as tropas da casa, os guerreiros de verdade que controlam as enormes barricadas no exterior da cidade, patrulham a estrada a leste. Se dão com um fugitivo, arrastam‑no de volta e, se tiver sorte, será açoitado até se transformar num corpo ensanguentado. A esposa, se ainda é jovem, desaparece numa das tendas onde vivem os guerreiros treinados. Já só pensam em regressar a casa, mesmo sendo esta pobre e duro o vosso trabalho no campo, sempre é melhor do que sentir esta fome e este frio que teimam em não terminar. Prometeram‑vos a vitória e apenas ficaram a conhecer a miséria.
Então, num fim de tarde em que as nuvens baixas cobrem o céu, enquanto o Sol se põe a ocidente, chegam os cavaleiros. Veem garanhões grandes a trazerem homens montados neles com cotas de malha, lanças compridas e espadas aguçadas, homens com elmos encristados com cabeças de lobo. Eles gritam convosco, o bater dos cascos na sujidade do acampamento é ensurdecedor, os vossos filhos choram, as vossas mulheres agacham‑se amedrontadas, e o que mais brilha naquela tarde de inverno não é o metal das lâminas, nem sequer a prata que decora o topo dos elmos ou o ouro em redor do pescoço dos atacantes, mas o sangue. Sangue vivo e repentino.
Não é de admirar que tenham entrado em pânico.
Pastoreamo‑los como ovelhas. Havia dito aos meus homens que poupassem a vida às mulheres e crianças, até mesmo a da maioria dos homens, porque eu não queria que os meus cavaleiros parassem. Queria ver o inimigo correr em fuga e mantê‑lo a correr. Se parássemos para matar, daríamos tempo ao inimigo para ir buscar as suas armas, agarrar nos seus escudos e preparar‑se para a defesa. Como tal, era melhor cavalgarmos entre as cabanas e escorraçá‑lo, afastá‑lo das pilhas de escudos, de lanças, das foices, dos machados. Dera ordem para desferirem as lâminas e cavalgarem, golpearem e cavalgarem. Viéramos trazer o caos, não a morte. Não agora. A morte viria mais tarde.
E, assim, conduzíamos os nossos cavalos pelo acampamento, os cascos deles a levantarem a terra enlameada, as pontas das nossas lanças aguçadas. Se um homem oferecesse resistência, morreria; se fugisse, fá‑lo‑íamos correr mais rápido. Vi Folcbald, um frísio gigante, a lançar um tronco a arder, retirado de uma das fogueiras do acampamento. Alvejou um dos abrigos e outros dos meus homens imitaram‑no e passaram a arremessar pedaços de madeira em chamas.
— Senhor! — chamou‑me Finan. — Senhor! — Voltei‑me para ver, pois ele apontava para norte, onde os homens corriam das suas tendas na direção das rudes barricadas, erguidas em frente ao portão leste da cidade. Aqueles eram os guerreiros de verdade, as tropas da casa.
— Rorik! — berrei. — Rorik!
— Senhor! — Ele encontrava‑se a vinte passos de distância e virava o seu cavalo, pronto para perseguir três homens que envergavam gibões em couro e brandiam machados.
— Faz soar o corno!
Esporeou o cavalo para junto de mim e fê‑lo parar, ao mesmo tempo que se atrapalhava com a lança que erguia numa mão enquanto com a outra tentava retirar o corno que trazia às costas, preso por uma corda a tiracolo. Um dos três homens, ao ver Rorik de costas voltadas, correu na direção dele de machado em punho. Abri a boca para gritar um aviso, porém Finan havia‑o visto, deu uma reviravolta ao seu garanhão e esporeou‑o, e o homem tentava já fugir de novo, quando a Rouba Almas luziu, o seu metal a refletir as chamas de uma fogueira, desferiu o golpe e fez rolar a cabeça do fugitivo. O corpo ainda se contorceu, caído no chão, mas a cabeça ressaltou e foi parar à fogueira, onde a gordura deixada no cabelo pelo homem que nele limpou as mãos produziu uma chama repentina e grande.
— Nada mal, para um avô — disse a Finan.
— Os ilegítimos não contam, senhor — gritou‑me de volta.
Rorik fez soar o corno, e soprou‑o uma segunda vez, e continuou a fazê‑lo soar, tão triste, insistente e sonoro, e os meus homens tornaram a reunir‑se.
— Agora, sigam‑me! — gritei‑lhes.
Havíamos ferido o monstro, chegara a hora de o decapitar.
A maioria das pessoas que ali fugira à nossa entrada violenta dirigira‑se para sul, para as tendas grandes, que, pelos vistos, albergavam os guerreiros treinados de Cynlæf, e foi para lá que também nós cavalgámos, agora todos juntos, joelho com joelho, as lanças mantidas baixas. A nossa fileira de cavaleiros apenas se interrompia para evitar as fogueiras de acampamento, que expeliam as suas faúlhas na escuridão que caía, e depois, ao esporearmos os cavalos para um espaço amplo, aberto, entre os abrigos miseráveis e as tendas vistosas, apressámos o galope. Surgiram mais homens no meio das tendas, um deles com um estandarte que se desenrolava à medida que ele corria na direção da barricada que, supunha‑se, haveria de deter os defensores da cidade, no caso de quererem desertar e sair pelo portão leste. A barricada era uma construção rude, constituída por carretas viradas, e até um arado ali se encontrava; contudo, continuava a ser um obstáculo formidável a transpor. Vi que o porta‑estandarte exibia a bandeira da Æthelflæd com o símbolo do ganso desajeitado segurando uma cruz e uma espada.
Talvez me tenha rido alto, pois Finan berrou‑me por entre o ruído dos cascos dos cavalos a embaterem na turfa.
— Qual é a graça?
— Isto é uma loucura! — Referia‑me à luta contra homens que exibiam o estandarte que eu havia protegido durante a vida inteira.
— É de loucos! Lutar pelo rei Eduardo!
— O destino é estranho — disse‑lhe.
— Será que ele vai agradecer‑lhe? — Finan fazia a mesma pergunta que a minha filha me havia colocado.
— Aquela família nunca foi de agradecer, — disse‑lhe, — excetuando a Æthelflæd.
— Talvez então o Eduardo o chame para a cama dele — sugeriu Finan num tom jovial, e depois não houve mais tempo para falarmos, porque de repente vi o porta‑estandarte a afastar‑se. Em vez de andar na direção da barricada, ele voltou‑se e apressava‑se agora para sul, na direção da arena, seguido pela maioria da guarda da casa, o que me pareceu muito estranho. As tropas eram tantas quanto nós, ou quase. Poderiam ter formado uma barreira de escudos, utilizando a barricada para protegerem a sua retaguarda. Os nossos garanhões ter‑se‑iam desviado, não querendo embater contra os tabuados de tal obstáculo, e nós ver‑nos‑íamos obrigados a desmontar, a formar a nossa própria barreira e a lutar, escudo contra escudo. E os sitiantes que se encontravam a norte da fortaleza, aqueles homens que ainda não tínhamos assolado, poderiam ter vindo atacar‑nos pela retaguarda. Contudo, o inimigo preferia fugir, liderado pelo seu porta‑estandarte.
E foi então que entendi. Era a arena romana.
Ficara intrigado ao verificar a ausência quase completa de cavalos, mas agora compreendia que os garanhões dos sitiantes haviam sido colocados na arena e não num dos pastos com vedação frágil que se estendiam a leste. A vasta construção situava‑se na extremidade leste do exterior da cidade, perto do rio, e era constituída por um círculo enorme de pedra, dentro do qual se alinhavam bancos que orlavam um espaço interior, onde os romanos se haviam prazenteado com espetáculos selvagens entre humanos e feras animais. O centro da arena, circundado por uma parede em pedra, tornava‑se um sítio seguro, mesmo ideal, para guardar cavalos. Havíamos estado a cavalgar na direção das tendas, julgando assim apanhar os líderes rebeldes numa armadilha, porém agora eu berrava aos meus homens que esporeassem os cavalos para o lado da grande arena de pedra.
Os romanos sempre me intrigaram, mesmo em criança. O padre Beocca, que fora meu tutor e tivera a incumbência de me transformar num pequeno e bom cristão, louvava Roma por ela acolher e constituir casa para o Santo Padre, o papa. Foram os romanos, dizia, que trouxeram as escrituras sagradas para a Bretanha, e Constantino, o primeiro cristão a governar a Roma, havia‑se declarado imperador até mesmo da nossa Nortúmbria. Nada disso aumentara a minha inclinação para Roma ou os romanos. Porém, isso mudou quando eu tinha uns sete ou oito anos e o padre Beocca me levou para o interior da arena em Eoferwic. Eu ficara a olhar embasbacado para as filas de assentos de pedra que subiam em todo o meu redor até à parede alta exterior, onde homens soltavam com martelos e pés de cabra os blocos de alvenaria, a fim de os utilizarem na construção de edifícios na cidade, que se expandia. A hera trepava pelos assentos, árvores jovens irrompiam das fendas rochosas, a própria arena estava coberta de erva espessa.
— Este lugar — dissera‑me o padre Beocca num tom baixo e solene — é sagrado.
— Porque Jesus esteve aqui? — lembrara‑me de perguntar. O padre Beocca desferira‑me uma palmada na cabeça.
— Não sejas estúpido, rapaz. O nosso Senhor nunca deixou a terra santa.
— Pensei que me tivesse dito que ele uma vez foi para o Egito.
Levara outra palmada, esta para o sacerdote esconder o embaraço por ter sido corrigido. Não era um homem de pouca gentileza, na verdade eu adorava Beocca, se bem que gostasse muito de o irritar também, e ele era fácil de provocar, porque era feio e tinha uma deficiência. Isso não era nada gentil da minha parte, mas eu era uma criança, e as crianças conseguem ser bastante cruéis. Com o tempo, viria a reconhecer a honestidade e a força do padre Beocca, enquanto o rei Alfredo, que não era tolo algum, sempre o prezara.
— Não, rapaz, — acabara por me esclarecer o padre Beocca, naquele dia em Eoferwic, — este lugar é sagrado, porque aqui sofreram muitos cristãos devido à sua fé.
Pareceu‑me uma história interessante.
— Sofreram, padre? — perguntara‑lhe, com uma atenção genuína.
— Foram aqui postos para morrer de formas horríveis. Horríveis!
— Como, padre? — perguntara‑lhe, escondendo a minha avidez por sabê‑lo.
— Alguns serviram de alimento a animais selvagens, outros foram crucificados, como o Nosso Senhor, outros ainda queimados até morrerem. Mulheres, homens, e até mesmo crianças. Os seus gritos santificam este espaço. — O padre Beocca benzera‑se. — Os romanos eram cruéis, até que viram a luz de Cristo.
— E depois deixaram de ser cruéis, padre?
— Tornaram‑se cristãos — respondera‑me de forma evasiva.
— Foi por isso que perderam as suas terras?
Levara a terceira palmada, se bem que não com força, nem irritação. Contudo, ele havia plantado em mim uma semente. Os romanos! Enquanto criança, impressionara‑me a força deles. Eram de tão longe, porém haviam conquistado as nossas terras, que naquela altura ainda não nos pertenciam, claro. Contudo, eram reinos muito distantes, e eles eram lutadores e vencedores, heróis aos olhos de uma criança. O desdém de Beocca tornava‑os ainda mais heroicos para mim. Naquele tempo, antes da morte do meu pai e antes de Ragnar, o Dinamarquês, me ter adotado, eu pensava que era um cristão, porém nunca nutrira a fantasia de vir a ser um herói cristão e enfrentar um monstro selvagem na arena em ruínas de Eoferwic. Ao invés disso, eu sonhava com lutar dentro daquele espaço e via‑me a mim mesmo a colocar o pé sobre o peito ensanguentado de um guerreiro caído, enquanto milhares de outros me davam vivas. Eu era apenas uma criança.
Atualmente, velho e de barba grisalha, continuo a ter admiração pelos romanos. Como poderia não admirá‑los? Não éramos capazes de construir arenas, nem de erigir muralhas como aquela que circundava a cidade de Ceaster. As nossas estradas eram trilhos lamacentos, as deles eram orladas com pedra e direitas como uma lança. Eles construíram templos de mármore, as nossas igrejas eram feitas em madeira. Os nossos chãos eram de terra batida com cobertura de juncos e ervas secas, os deles eram maravilhas de trabalhos intrincados com ladrilhos. Haviam enfeitado as terras com elaborações maravilhosas, e nós, que tínhamos tomado essas terras, não podíamos senão maravilhar‑nos e, de resto, abandonar à decadência, ou então disfarçá‑la com remendos de vime e palha. Eram gentes cruéis, é verdade, mas nós também o somos. A vida é cruel.
De repente, tomei consciência de gritos estridentes que vinham da direção da muralha. Olhei para a minha direita e vi guerreiros com elmos a correrem pelo topo empedrado. Mantinham‑se a par e passo connosco, o melhor que podiam, e incitavam‑nos com vivas. As vozes estridentes assemelhavam‑se às de mulheres, mas eu apenas via homens ali, um deles a abanar uma lança por cima da sua cabeça, como a encorajar‑nos a matar. Ergui a minha lança em jeito de quem o cumprimenta, e o homem respondeu‑me a saltar para cima e para baixo. Trazia fitas vermelhas e brancas a penderem‑lhe da crista do elmo. Ele guinchou algo na minha direção, porém encontrava‑se longe de mais e eu não pude destrinçar as palavras, percebendo apenas que celebrava.
Não admirava que a guarda daquela casa estivesse feliz, pois o inimigo fora pressionado e o cerco levantara‑se, mesmo que a maioria das tropas de Cynlæf continuasse no acampamento. Estas, porém, não haviam dado mostras de quererem lutar. Haviam fugido ou tinham‑se escondido nos seus abrigos. Apenas as tropas da casa se opunham a nós e, naquele momento, corriam em busca da segurança duvidosa da arena antiga. Apanhámos alguns retardatários, atingindo‑os com golpes de lança nas costas enquanto fugiam, atabalhoados, na direção sul; outros, os mais sensatos, atiraram as suas armas ao solo e ajoelharam‑se em sinal de uma rendição desprezível. A pedra avermelhada da arena refletia as flâmulas das fogueiras de acampamento mais próximas, conferindo à alvenaria a aparência de estar coberta de sangue. Fiz parar Tintreg junto à entrada, e os meus homens, com um sorriso de orelha a orelha e exaltados, pararam os seus garanhões em meu redor.
— É esta a única entrada? — perguntou‑me Finan.
— Tanto quanto me lembro, sim. Mas envia alguns homens para rodearem a arena e verificarem se não existe mais alguma.
A única maneira de ali entrar era através de um túnel de arcada que conduzia por uma área abaixo dos assentos para a arena, e, na luz que se desvanecia, pude distinguir ainda uns homens a tentarem improvisar uma barricada com uma carreta que puxavam, ao fundo do túnel. Observavam‑nos, temerosos, mas eu não fiz qualquer movimento no sentido de os atacar. Eram tolos, e eu gosto de tolos. Estavam condenados, à partida.
Estavam condenados porque haviam montado uma armadilha para eles próprios. Na verdade, havia outras entradas para a arena, mas estas, mesmo espaçadas que eram entre si e distribuídas harmoniosamente em todo o redor do edifício, apenas levavam às fileiras de assentos, não à área central reservada às lutas. Os homens de Cynlæf tinham guardado ali os seus cavalos, o que fazia sentido, porém, no desespero da fuga, haviam corrido para junto deles, vendo‑se agora cercados por bancadas de pedra e apenas uma saída, no final do túnel que os meus homens bloqueavam.
Vidarr Leifson, um dos meus guerreiros nórdicos, conduzira e distribuíra os seus cavaleiros pelo círculo interior da arena e veio ter comigo para confirmar que apenas havia aquela entrada de acesso.
— O que fazemos agora, senhor? — perguntou‑me, virando‑se na sua sela para espreitar pelo túnel. A respiração dele formava pequenas nuvens no ar frio daquele cair da noite.
— Deixamo‑los apodrecer.
— Eles podem trepar pelos assentos? — inquiriu Berg.
— Provavelmente. — Existia uma parede, um pouco mais alta do que um homem de estatura grande, que impedia que, no tempo dos romanos, os animais selvagens entrassem na área das bancadas e abocanhassem os espectadores, pelo que o nosso inimigo poderia trepar até aos assentos e tentar escapar pelos acessos às escadarias, o que significaria, por outro lado, abandonar os seus preciosos cavalos e, mesmo saindo do edifício, teriam ainda de enfrentar os meus homens. — Bloqueiem todas as entradas — ordenei — e acendam fogueiras no exterior de cada escadaria. — As barricadas tirariam rapidez e eficácia a qualquer tentativa dos homens de Cynlæf de fugirem, enquanto as fogueiras aqueceriam as minhas sentinelas.
— E onde vamos buscar a lenha? — perguntou Godric. Era um jovem saxão que começara ao meu serviço como criado.
— Ali, na barricada, seu tolo — observou Finan, apontando para o artefacto dos sitiantes que bloqueava a estrada de acesso ao portão leste.
E então, quando uma réstia da luz do dia se fez desvanecer a ocidente, eu vi que vinham homens da cidade. Abrira‑se o portão leste e uma dúzia de cavaleiros fazia‑se ao caminho estreito entre a vala do forte e a barricada ao abandono.
— Ergam‑me essas barreiras! — ordenei aos meus homens, depois voltei o cansado Tintreg e esporeei‑o ao encontro dos homens que havíamos resgatado do cerco.
Reunimo‑nos junto à vala funda da cidade, onde esperei, observante, que os cavaleiros se aproximassem. Eram liderados por um homem jovem e alto, envolvido em cota de malha, na cabeça um elmo fino decorado a ouro, que luzia avermelhado, refletindo as flâmulas das fogueiras distantes do acampamento. Trazia as placas faciais abertas, revelando que deixara crescer a barba desde a última vez que o vira, uma barba curta, aparada e negra, que o fazia parecer mais velho. Eu sabia que ele não tinha mais de vinte e cinco ou vinte e seis anos, não me conseguia lembrar exatamente quando havia nascido, porém agora apresentava‑se como um homem feito, na sua melhor idade, bem parecido e confiante. Ele era igualmente um cristão fervoroso, apesar de todos os meus esforços em dissuadi‑lo, e trazia uma enorme cruz de ouro a pender‑lhe do pescoço, oscilando ao peito contra o brilho do metal da cota de malha. Havia mais ouro a ornamentar‑lhe a boca da bainha da sua espada e os freios do cavalo, tal como o alfinete que lhe segurava as pontas da capa e um anel dourado lhe circundava o rebordo do elmo. Refreou o cavalo próximo o suficiente para estender a mão e fazer uma carícia no pescoço de Tintreg, e eu vi que usava dois anéis de ouro por cima das luvas pretas de couro fino. Sorriu.
— É a última pessoa que eu esperava ver, senhor — falou‑me. E eu praguejei, de uma forma curta e crua.
— É essa a maneira mais adequada — perguntou em tom manso — de cumprimentar um príncipe?
— Devo dois xelins ao Finan — expliquei.
Porque começara a nevar.
Um dos privilégios da idade é estar num salão aquecido por uma lareira enquanto neva lá fora, na noite, e as sentinelas tremem de frio ao vigiarem um inimigo que acabou de se encurralar e não encontra uma possibilidade de fuga. Se bem que, naquele momento, eu não soubesse quem, na realidade, estava encurralado e por quem.
— Nunca enviei o padre Swithred com um pedido de ajuda — dizia‑me Æthelstan. — Aquele monge mentiu‑lhe. E o padre Swithred está de boa saúde, graças a Deus.
O príncipe Æthelstan era o filho mais velho do rei Eduardo. Nascera de uma bela rapariga de Cent, filha de um bispo, e a pobre havia sucumbido ao dar à luz ele e a irmã gémea, Eadgyth. Após a morte da bela rapariga, Eduardo havia desposado uma jovem da Saxónia Ocidental e tornara‑se pai de mais um filho, o que transformava Æthelstan numa inconveniência. Este era o filho mais velho de um rei, era o herdeiro ao trono, porém ele tinha um meio‑irmão mais novo, cuja mãe vingativa desejava a morte de Æthelstan por este se encontrar entre o trono do Wessex e o filho dela. Portanto, espalhou‑se o boato de ele ser um filho ilegítimo, porque Eduardo nunca se havia casado com a rapariga de Cent. Na verdade, ele casara com a bela jovem, mas em segredo, por o pai dele não querer permitir a união entre os dois, e, no decorrer dos anos, a história dela foi sendo retocada, inventando‑se que fora filha de um pastor, uma prostituta de famílias pobres que nenhum príncipe desposaria, e o boato foi ganhando em credibilidade, uma vez que a verdade é desde sempre frágil em relação a uma falsidade ardente.
— É verdade! — dizia‑me agora Æthelstan. — Nós não precisávamos de apoio. Eu não pedi ajuda.
Por instantes, fiquei apenas a olhá‑lo demoradamente. Eu amava Æthelstan como um filho. Durante anos protegera‑o, lutara por ele, ensinara‑lhe as artes do guerreiro, e, quando ouvi o irmão Osric dizer que Æthelstan se encontrava duramente sitiado, cavalgara com os meus homens a fim de o resgatar. Não me importou que o salvamento daquele jovem fosse contra os interesses da Nortúmbria, pois havia feito o juramento de que o protegeria, e ali estava eu, naquele grande salão romano, onde Æthelstan acabava de me dizer que nunca tinha procurado a minha ajuda.
— Não enviou o padre Swithred? — perguntei‑lhe. Na fogueira, um tronco emitiu um estalido, seguido do crepitar de chamas a soltar faúlhas. Uma delas foi cuspida até junto dos meus pés.
— Claro que não! Ele está aqui. — Æthelstan gesticulou para o lado oposto do salão, onde um sacerdote me observava com um ar sério e desconfiado. — Pedi ao arcebispo Athelm para o nomear para o bispado de Ceaster.
— E não o enviou para fora da cidade?
— Claro que não! Eu não tinha essa necessidade.
Olhei para Finan, que encolheu os ombros. O vento recomeçara a soprar, devolvendo o fumo ao grande salão, o qual, em tempos, fora parte dos edifícios do comando romano, ali. O topo fora feito de madeiramento robusto, coberto de telhas, muitas delas ainda resistentes, porém um qualquer saxão deve ter‑se lembrado de produzir alguns buracos no meio delas, para deixar sair o fumo. Agora, o vento frio soprava o fumo de volta para o interior, fazendo‑o rodopiar em redor das vigas enegrecidas. Entravam flocos de neve pelas aberturas no telhado, algumas tão duradouras que vinham desfazer‑se no tampo da mesa, onde comíamos.
— Portanto, nunca procurou a minha ajuda? — tornei a perguntar a Æthelstan, mais uma vez.
— Quantas vezes terei de repeti‑lo? — indagou, empurrando o jarro de vinho na minha direção. — Além disso, caso eu precisasse de ajuda, porque haveria de chamá‑lo, se as tropas do meu pai estão muito mais próximas? De uma forma ou de outra, não me teria ajudado!
Soltei uma espécie de rugido.
— Por que motivo não o haveria de ajudar? Fiz um juramento em como o protegeria.
— Porém, os problemas da Mércia — disse‑me — são bons para a Nortúmbria, não é verdade?
Acenei, contrariado, com a cabeça.
— É verdade.
— Porque, enquanto nós, os mercianos, lutarmos uns contra os outros, — continuou o Æthelstan, — não poderemos lutar contra vós.
— E querem lutar contra nós, senhor príncipe? — perguntou Finan. Æthelstan sorriu.
— Claro, que sim. A Nortúmbria está a ser governada por um pagão, um homem do Norte…
— Pelo meu genro — interrompi‑o rudemente.
— … e é o destino dos saxões — ignorou‑me Æthelstan — tornarem‑se um só povo sob o governo de um só rei e de um único deus.
— O vosso deus — rosnei.
— Não existe outro — disse‑me com gentileza.
Tudo o que dizia fazia sentido, excetuando a parte de um único deus, e esse bom senso significava que eu fora levado a atravessar toda a Bretanha por razões menos boas.
— Deveria tê‑lo deixado a apodrecer aqui — rugi entre dentes.
— Mas não foi o que fez.
— O seu avô sempre me disse que eu era um tolo.
— O meu avô tinha razão acerca de tantos assuntos — anuiu, com um sorriso. O avô dele fora o rei Alfredo.
Levantei‑me da mesa e fui até à porta do salão. Abri‑a de um puxão e fiquei a olhar o brilho das fogueiras acima da muralha, a leste. A maior parte daquele luzir era oriundo do acampamento dos homens de Cynlæf, que ali se abrigavam da neve que caía pesada, tocada a vento norte. As braseiras ardiam no cimo da muralha, onde lanceiros com capas estavam de vigia ao inimigo, que se havia acobardado. A luz mais intensa de duas tochas a arderem no exterior das portadas grandes do salão revelava a neve nova a empilhar‑se contra as paredes da casa.
Portanto, o irmão Osric havia mentido. Trouxéramos o monge connosco para sul, porém cansara‑me das suas queixas intermináveis devido ao frio e às dores que lhe provocavam a sela do cavalo, que deixámos que ele se apartasse de nós junto de Mameceaster, onde, alegara então, a igreja lhe daria abrigo. Deveria ter morto aquele canalha. Estremeci, sentindo repentinamente o gelo da noite.
— Rorik, — gritei por cima do ombro, para o interior do salão, — traz‑me a minha capa!
O irmão Osric havia mentido. O monge contara‑me que Æthelstan dispunha de menos de cem homens, quando na verdade tinha o dobro disso, o que continuava a perfazer um número bastante reduzido para uma guarda da casa de um lugar do tamanho de Ceaster, porém era o suficiente para repelir os ataques débeis que Cynlæf empreendera. O irmão Osric dissera‑me que a guarda da casa desfalecia de fome, quando na verdade ainda tinham os armazéns meio cheios com a colheita do ano anterior. Fora uma mentira a trazer‑me para Ceaster. Mas porquê?
— A sua capa, senhor — falou‑me uma voz em tom de zombaria. Voltei‑me para verificar que era o próprio príncipe Æthelstan a trazer‑me o manto de pelo pesado. Ele próprio vinha de capa colocada. Fez um sinal de cabeça a uma das sentinelas, para que esta fechasse a porta do salão atrás de nós, depois ficou ao meu lado a ver os flocos de neve a caírem suaves e sem cessar. — Não o mandei chamar, — frisou, envolvendo‑me os ombros com a minha capa grossa, — mas obrigado por ter vindo.
— Então, quem enviou o monge? — perguntei.
— Talvez ninguém.
— Ninguém?
Æthelstan encolheu os ombros.
— Talvez o monge tivesse tomado conhecimento do cerco e quisesse obter ajuda, mas, sabendo que desconfiaria dele, inventou a história do padre Swithred.
Abanei a cabeça em sinal negativo.
— Ele não tinha essa inteligência toda. Além disso, estava com medo.
— Você atemoriza muitos cristãos — disse Æthelstan secamente. Olhei fixamente a neve a rodopiar pela esquina da casa em frente.
— Devo ir para Hwite — falei.
— Para Hwite? Porquê?
— Porque o monge é oriundo do mosteiro de lá.
— Não existe qualquer mosteiro em Hwite — afirmou Æthelstan. — Gostaria de erigir lá um, mas… — a voz dele tornou‑se um breve fio.
— O canalha mentiu, — falei em tom vingativo, — e eu devia ter sabido!
— Sabido? Como?
— Ele disse‑me que o padre Swithred caminhou para sul, quando saiu daqui. Não pode ser. A ponte está inutilizada. E por que razão haveriam de enviar o Swithred? O senhor príncipe teria certamente enviado alguém mais jovem.
Æthelstan tremia de frio.
— Por que motivo mentiria? Talvez o monge apenas quisesse reunir apoios.
— Reunir apoios — repeti em tom de sarcasmo. — Não. Aquele canalha queria que eu me afastasse de Bebbanburg.
— Para alguém poder atacar a fortaleza?
— Não. Bebbanburg não cairá. — Deixara a fortaleza ao comando do meu filho e ele dispunha do dobro dos guerreiros necessários para assegurar aquele rochedo descarnado e ameaçador.
— Portanto, alguém o quer ver longe de Bebbanburg, — afirmou Æthelstan, — porque enquanto estiver em Bebbanburg não podem chegar até si, porém agora… Agora podem alcançá‑lo.
— Então, para quê levarem‑me a vir aqui? — perguntei. — Se queriam matar‑me, porquê esperar que eu estivesse entre amigos?
— Não sei — disse‑me. E eu também não sabia. O monge tinha mentido, porém desconhecia o motivo. Tratava‑se de uma armadilha. Era simplesmente uma armadilha, mas quem a providenciara? E porquê? Tudo isto permanecia um mistério. Æthelstan bateu com os pés no solo, depois fez‑me um sinal, para que o acompanhasse. Atravessámos a estrada, onde os nossos passos imprimiram as primeiras marcas na neve acabada de cair.
— Mesmo assim, — continuou Æthelstan, — estou contente por ter vindo.
— Vim desnecessariamente.
— Não corríamos um perigo real, — concordou, — e o meu pai enviaria reforços na primavera.
— Enviaria?
Ignorou a descrença no tom selvático da minha voz.
— Tudo mudou, no Wessex — disse‑me num tom suave.
— É a nova mulher? — perguntei causticamente, referindo‑me à esposa atual do rei Eduardo.
— Que é uma sobrinha da minha mãe.
Isso era uma novidade para mim. O que eu sabia era que Eduardo havia descartado a sua segunda esposa e casado com uma rapariga mais jovem de Cent. A antiga mulher encontrava‑se agora num convento. Eduardo dizia ser um bom cristão, e os cristãos afirmam que um casamento é para toda a vida, mas um pagamento substancial em ouro ou terras da realeza era certamente persuasivo ao reconhecimento por parte da Igreja de que a doutrina estaria errada e de que Eduardo poderia desfazer‑se de uma esposa e casar‑se com outra.
— Portanto, o senhor príncipe está agora nas boas graças do rei? Voltou a ser o herdeiro?
Abanou a cabeça em sinal negativo. Os nossos passos guinchavam na neve acabada de cair. Ele conduzia‑me por uma ruela que nos levaria até ao portão leste do forte. Dois dos seus guardas seguiam‑nos, mas afastados o suficiente para não escutarem o que conversávamos.
— O meu pai continua a ter grande afeição pelo Ælfweard, pelo que me dizem.
— O seu rival — disse‑lhe, amargurado. Desprezava Ælfweard, o segundo filho do Eduardo, que era um pedaço de caca de doninha petulante.
— O meu meio‑irmão, — corrigiu Æthelstan, — que eu amo.
— Ama‑o? — Por momentos não me respondeu. Subíamos os degraus que conduziam à parte leste da muralha, onde braseiros aqueciam as sentinelas. Parámos no topo das escadas e ficámos a olhar o acampamento do inimigo derrotado. — Ama mesmo aquela caca? — perguntei.
— Temos o mandamento de nos amarmos uns aos outros.
— O Ælfweard é desprezível — afirmei.
— Pode vir a ser um bom rei — disse Æthelstan, calmamente.
— E eu serei o próximo arcebispo de Contwaraburg.
— Isso seria deveras interessante — admitiu em tom divertido. Eu sabia que ele desprezava Ælfweard tanto quanto eu, mas dizia aquilo que era seu dever familiar proferir. — A mãe do Ælfweard — continuou — não é bem vista, porém a família dela continua a ser abastada e com poder, e eles juraram lealdade à esposa nova.
— Juraram?
— O tio do Ælfweard é agora o novo conselheiro. Ele está do lado do Eduardo e nada fez para ajudar a irmã.
— O tio do Ælfweard entregaria à prostituição a própria mãe para ver o sobrinho ser rei.
— Provavelmente — concordou Æthelstan com mansidão.
Estremeci, e não por causa do frio. Estremeci, porque naquelas palavras pressenti encontrar‑se a armadilha. Continuava a não saber a razão pela qual me haviam atraído para ali, atravessando toda a Bretanha, mas suspeitava agora de quem tinha montado a armadilha.
— Sou um velho tolo — falei.
— E amanhã o Sol tornará a nascer.
— Senhor príncipe! Senhor príncipe! — interrompeu‑nos uma voz excitada. Um guerreiro de estatura pequena percorria apressadamente o topo da muralha para vir ao nosso encontro; era um guerreiro da estatura de uma criança, mas envolto em cota de malha, com uma lança na mão, na cabeça um elmo decorado com fitas brancas e vermelhas.
— Irmã Sunngifu — disse Æthelstan num tom meigo, ao ver a pequena figura a pôr‑se de joelhos diante dele. Passou uma mão enluvada pelo seu elmo e ela ergueu a cabeça e sorriu‑lhe em jeito de completa adoração.
— Este é o lorde Uhtred de Bebbanburg, — apresentou‑me, — e a irmã Sunngifu — voltara a falar para mim — reuniu um grupo de cinquenta mulheres que permanecem de guarda na muralha, o que oferece aos meus guerreiros a possibilidade de descansarem e de enganarem o inimigo quanto ao número disponível. Enganámo‑los bem!
Sunngifu voltou os olhos para mim com um sorriso inebriante.
— Conheço o lorde Uhtred, senhor príncipe — anunciou. Vi que ela usava um hábito cinzento de freira por baixo da cota de malha e da capa grossa. Estendi a mão e levantei com gentileza o elmo decorado com faixas, apenas o suficiente para ver a marca em forma de maçã na testa dela, a única desfiguração no rosto da mulher mais bela que alguma vez vira. Erguia o rosto para me olhar com divertimento. — É bom voltar a vê‑lo, senhor — disse em tom humilde.
— Olá, Mus — devolvi o cumprimento.
O pequeno guerreiro era Mus, Sunngifu, a irmã Gomer, a viúva do bispo, prostituta e instigadora de problemas.
E, raios partam a armadilha, senti‑me feliz por estar em Ceaster.
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