Primeiro (no útero de uma adega enquanto se destila aguardente)

Filomena

Começo pelo princípio.
Se não fosse ele, eu não estaria aqui.
Se não fosse ele, vocês não estariam aqui.

Teodoro é o seu nome. Teodoro é filho de Manuel Monteiro e de Maria Monteiro. Irmão de Ezequiel Monteiro. Nasceu num manco inverno. Quatro quilos e seiscentos e setenta gramas de fome voraz. E cabelo preto. Dizem que, para o desmamar, a mãe untou os bicos do peito com medronho. Maria Monteiro julgou que o amargo o faria largar de vez essa pulsão de a magoar muitas vezes, todos os dias. Resultou ao contrário. Não foram encontradas outras soluções. Até perfazer cinco anos, Teodoro mamava. Até ao falecimento da mãe, estando na sua presença, nunca conseguiu deixar de sentir o apelo.

Os Monteiro habitam uma casa grande no povo de cima. São donos da maior parte das terras do povo de cima. Nessas terras nascem eucaliptos, sobreiros, pinheiros e medronheiros. Os Monteiro vendem a madeira dos eucaliptos, dos sobreiros, dos pinheiros, e com os frutos apanhados na altura certa (lá para os lados de setembro), nessas árvores pequenas e resistentes chamadas medronheiros, produzem uma aguardente muito célebre, numa adega em tudo semelhante a esta.

Livros para o verão: inscreva-se aqui no encontro de julho do É Desta Que Leio Isto

Em julho, o clube de leitura É Desta Que Leio Isto vai receber a biblioterapeuta Sandra Barão Nobre, que nos vai trazer sugestões de leitura para um verão (ainda) em pandemia. No dia 22 de julho, pelas 21h, participe no encontro e habilite-se ainda a ganhar um exemplar do A Minha Irmã é uma Serial Killer, um "breve, sinistro e cómico thriller" que pode ser uma ótima leitura de verão.

As inscrições (e participações no passatempo) podem ser feitas através deste formulário. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as indicações para se juntar à conversa.

Teodoro está sempre próximo dos impulsos mais básicos do ser humano. Teodoro usa o mais possível o instinto. Muito mais do que o resto do cérebro.
O seu lema é aproveitar enquanto dura. Comer muito.
Beber muito. Tudo o resto: muito. E saúde da boa.

Teodoro utiliza bom vernáculo quando fala.
Diz e repete: Estou-me a cagar para a maioria e quero que se foda a inteligência.

Se eu não conhecesse a família, diria que tinha sido amamentado por lobas e educado por porcos.
Sempre que penso nele vem-me um medo de tal modo grande ao pensamento que tenho medo do pensamento que se seguirá.

O que vou contar não tem um final feliz. Não tem. Fica já o aviso. Nem sequer se percebe tudo. Tem buracos. Cortes. Árvores. Astronomia. Fogo. Metanol. Enganos. Alquimia. Denúncias. Europeus. É até difícil perceber do que trata. É tudo muito frágil. É tudo muito ambivalente. O que esperavam? Uma história de lés a lés sem correntes de ar? Se era isso, aviso já que não vai correr bem. Não estou aqui para explicar nem para ser explicada. Uma história em que se percebe tudo é uma história mal contada. Para mais, isto é um drama pouco burguês. E um drama quase nada burguês faz-se por dentro da vida (ou no útero de uma adega enquanto se destila aguardente). E por dentro da vida (ou no útero de uma adega enquanto se destila aguardente), como bem sabemos, não há finais felizes. A morte só diz a verdade desde que aprendeu a soletrar o alfabeto.
Queriam o quê?
Eu só quero um bocadinho de amor.

Teodoro tem uma fronte de espessas sobrancelhas. Usa a barba por fazer e olha para tudo com olhos que  vão fundo no que olham. Apesar da rudeza, sorri com o coração à mostra. E chora às escondidas. Também cheira a medronho, e cheira o medronho durante a destila. Fica ali, horas a fio, sentado num banquinho de madeira, diante da torneira do alambique, a controlar o fogo, a vigiar,  a indagar cada pingo de aguardente. E quando esta atinge o ponto de rebuçado, o ponto da lágrima, o ponto do coração, a justa medida, o equilíbrio perfeito entre o doce e o álcool, os cinquenta e um graus, quando isto acontece, ele bate as asas das narinas em sinal de aprovação. É chegado o momento. Servindo-se apenas do olfato para as coisas terrestres. Sem ajuda de um alcoómetro ou outro instrumento científico. E fá-lo desde os oito anos. Os Monteiro sabem bem que devem ao nariz de Teodoro, e só ao nariz de Teodoro, o sucesso da sua mística aguardente.

O medronho Monteiro enche a  alma, a  garganta  e os olhos de coisas sobrenaturais. É uma aguardente com a potência do Sol. Capaz de provocar reações químicas, atómicas e nucleares. Quem o bebe torna-se, durante uma breve fatia de tempo, num místico, num alquimista, num oráculo. Consegue ver o futuro, o presente e o passado sem ponta de miopia. As pupilas rebrilham. Talvez tudo se deva a um desequilíbrio químico. Talvez o cérebro deixe de fazer as sinapses convenientes. Talvez a química errada leve ao exagero da perceção. Ou talvez tudo isto se deva simplesmente a uma percentagem certa de metanol, não a suficiente para nos matar.

Teodoro tem faro de urso. É capaz de cheirar a quilómetros de distância. É dono de um nariz que funciona em demasia. Teodoro podia estar aqui, agora, neste preciso instante, e saberia que numa casa do outro lado da serra começava a ser confecionado um guisado de javali; saberia que um pão de quilo acabava de sair de um forno de outra casa, mesmo de outra vila, e que um chouriço era posto a assar nas brasas de uma determinada lareira distante. Teodoro possui tanto faro que se lembra de tudo. Bom faro, boa memória. Infelizmente para ele, e para nós, a memória é um longo comboio de mercadorias.

Era agosto e Teodoro acordou. Era agosto e Teodoro saiu de casa para ir matar pássaros. O Sol era ainda um ovo em sangue. Avançava como um demónio e caía vermelho sobre todas as coisas.
Teodoro gosta de matar pássaros para depois os fritar. Gosta de comer os pássaros fritos com um pão de quilo e uma garrafa de aguardente a empurrar. Sempre foi rapaz de muito alimento. Sempre soube lamber os dedos. Para ele, a melhor forma de sossegar a besta é encher-lhe a barriga.

Teodoro  usa a borra da destila como isco para atrair  a passarada. Nessa manhã de agosto, Teodoro apanhou duas dezenas de pássaros. Mas quando fazia o caminho de regresso a casa, Teodoro estacou. Dilatou as narinas. Inspirou fundo um isqueiro a trabalhar caruma. Inspirou o princípio de um fogo futuro que deitaria cores sobre o verde para depois ficar tudo preto.

Teodoro correu para casa. Correu para casa e tudo esvoaçava nele. O cabelo, a roupa, o medo. Correu muito por aquela estrada dura, coberta de pó, onde o Sol se esfregava há semanas a fio. Correu e chorou, a imaginar o quente a entrar-lhe pela boca para lhe secar os gritos.  O choro chegou-lhe à garganta como uma náusea parada. E enquanto corria o medo aumentava. A meio do caminho, Teodoro conseguia antever, do outro lado da vertente, flocos pretos como flores de penugem a desfazerem-se em pó ao mínimo toque. Uma neve preta.
E as árvores a ficarem pretas. E os telhados a ficarem pretos. E as ruas a ficarem pretas. Os cabelos, os ombros, os sapatos, tudo a ficar preto. O fogo também tem esta competência: traz a noite para mais perto.
Mal chegou a casa, Teodoro parou de chorar. Manuel Monteiro, seu pai, proibira-lhe as demonstrações de afeto ou outras fraquezas emocionais. Chorar faz muito barulho, dizia-lhe. Teodoro disse apenas:

Pai, sinto que em breve vamos entrar muito depressa numa noite bem cabra.

Os Monteiro vão acusar os Capote por causa dos hectares e hectares de floresta ardida, dos milhões e milhões em prejuízos. E agora, foda-se, como é que vamos fazer o nosso medronho? Os Capote, por sua vez, vão acusar os Monteiro por causa dos hectares e hectares de floresta ardida, dos milhões e milhões em prejuízos. E agora, caralho, como é que vamos fazer o nosso medronho?

É assim. Ainda aqui estamos, mas depois não seremos os mesmos.
A polícia nunca descobrirá a mão criminosa, e as acusações circulares durarão para sempre. Eu tenho as minhas suspeitas, mas ainda não chegou a hora. Não quero estender o indicador.
Só quero um bocadinho de amor.

A Sangrada Família
A Sangrada Família créditos: Caminho

Ezequiel

Em minha defesa, quero dizer o seguinte: Não sou herói. Não sou bonito. Não sou importante nem filho de gente importante. Não vou dizer nenhuma coisa extraordinária nem frases bonitas. Não tenho aura. Não sou poeta. Não sou tolo nem puro. Mas não gosto de medronho.
Sou um homem vulgar, tal como vocês
Alguém dirá que, se não fosse eu, vocês não estariam aqui.
Em minha defesa, quero acrescentar o seguinte: vou dizer o que sinto. Tenho por hábito ser sincero quando necessito e mentir sempre que posso. Sempre fui cobarde. Cobarde a vida inteira. Vim para esta adega para me esconder. Ficar quieto. E agora aqui estou. Assumo   a plena responsabilidade pela vida que tenho. Pelos atos que cometo. Sou uma personagem em pleno exercício das suas funções. Acham que me sinto mal por isso? É tarde demais. Tenho o mal dentro de mim. Topa-se ao longe: duzentos e seis ossos, seiscentos e cinquenta músculos, cinco mil milhões de células. Mas não me julguem.
Apesar de coxo, sou daqueles que fogem. Daqueles que conseguem fugir. Se quiser corro daqui até àquele sobreiro em menos de um minuto. Nem o meu pai me apanha. Aquilo é um sobreiro ou um pinheiro? Nunca fui bom em silvicultura. Mas sempre me interessei por astronomia. As estrelas têm o poder de desviar, de alterar, de provocar acontecimentos.

Por exemplo: A luz do Sol demora oito minutos e dezoito segundos a chegar à Terra. Se o Sol explodisse de vez, só oito minutos e dezoito segundos depois é que nós explodíamos. Durante oito minutos e dezoito segundos tudo ficaria na mesma. Como a lesma. A Terra a rodar.  A vida a acontecer. Sempre me perguntei qual é a velocidade do fogo.

Eu não queria. Mas aconteceu.

Há muito que deixei de tentar distinguir os homens bons dos homens maus. De  estudar a  diferença entre   o que é, afinal, o certo e o que é, enfim, o errado. Sei, sim, o que tenho de fazer para manter a jugular afastada da lâmina do mundo. E basta. Também não espreito para dentro do coração. Nunca. Nem tento entender todas as decisões que tomei. As ilusões desfeitas andam sempre connosco porque forçamos o mundo a ser uma coisa que ele não é.
A verdade é esta: Ando aqui só a gastar expirações atrás de inspirações.
Assim sendo, aproveito para oxigenar a imaginação. Oxigeno para me reinventar. Deixem-me explicar. Estou sempre do lado de fora. Num momento estou aqui. No outro estou ali. Num momento já não estou nem aqui nem ali. Contradigo-me. Pois bem, contradigo-me. Sou extenso. Contenho multidões. É necessário alguém que semeie a discórdia. É preciso alguém que carregue todos os tons de cinzento. A maldade não é espontânea, não nasce do chão.

É tudo uma questão de linguagem. As palavras que dizemos e as palavras que ouvimos nunca são a mesma coisa. As que ouvimos não são as que foram ditas. Eu digo Ezequiel e vocês ouvem o seu contrário. E cada um é um. E cada um é muitos. Ninguém sabe quantos somos.

Livro: "A Sangrada Família"

Autora: Sandro William Junqueira

Editora: Caminho

Data de lançamento: 20 de julho

Preço: 14,31

Não aprendi a gostar dos outros. Também não aprendi a gostar de mim, fiquem descansados. A minha educação foi construída sobre os clássicos, mas sob a atenta supervisão da fivela do cinto e da obediência. Um Dostoiévski, um Flaubert, um Joyce entremeados por enxertos de porrada, revestidos de nódoas negras. Obedece e serás o mais feliz dos homens, dizia-me o meu pai, enquanto levantava o braço acima da cabeça, ostentando a glória da força sobre o intelecto, e me demonstrava como a palavra “fivela” rima tão bem com a palavra “costela”.
O meu pai sempre gostou de levantar o braço para o baixar logo de seguida. E de rimas. E do meu irmão Teodoro. Acho que lhe devo esta minha má inclinação para os ditados.

Quem espanca seus males espanta.

Aprendi bem a lição, é o que é. Deixei de dar ouvidos ao timbre animal. O animal é átono. Enterrado vivo.
À pancada. Deixo-vos um conselho: Não deem ouvidos ao animal. Aprendam qualquer coisinha com este drama-pouco-burguês. O animal é apenas do esterno para baixo. Sejam apenas do esterno para cima.

Não é nada estúpido, o destino. Acontece apenas porque sim, sem nos dar cavaco. Por razão de um infortúnio (lá está), acabei por me sentar ao lado da ama de Filomena Capote num velório. A mulher de um tio longínquo de Manuel Monteiro, meu pai, atirara-se de cabeça a um ribeiro porque ouvira deus a gritar socorro lá do fundo. No meio da tristeza constrangida por causa das cadeiras desconfortáveis, a ama de Filomena Capote apresentou-se.

Chamo-me Babá. Sou a primeira a levantar-me no povo de baixo. E a última a aceitar a cama. Trago a carne gasta e as raízes bem firmes na vida. Como vês: Sou antiga, baixa, enrugada e feia. Nunca pesquei um homem, mas fui violada uma vez. Vivo o dia a dia que a serra me dá. O trabalho doméstico na casa dos Capote. A educação sentimental de Filomena. E uso o indicador quando  a comichão me aflige. Já calcei socas suficientes e sei que em breve me transformarei em cocó. Por isso bato palmas cheias de barulho à mulher do tio do teu pai. Bravo e bravo. Isso mesmo! Fizeste bem, rapariga! Em expelir esse golpe de asa até dares com os cornos lá em baixo. Adoro o fogo. Tu não gostas do fogo? Como é que te chamas? Ezequiel? És irmão do Teodoro Monteiro, não és? És tu que escreves aquelas cartas à Filomena? Gosto de ti. És poeta. Um destes dias ainda vamos fazer uma fogueira juntos. Adoro o fogo. Tu não gostas do fogo? O que é que me dizes? Aponta aí o teu número de telefone. Ligo-te um destes dias. Chama-me Babá.
E assim foi. Na vigília da mulher de um tio longínquo de Manuel Monteiro, meu pai, nasceu a nossa parceria. Empreendedorismo de piromanias e vingança.

Agora vou parar de mentir.
Só vou dizer o que sinto. E vou pôr o meu sorriso de gato.
Tenho por hábito mentir quando necessito e ser sincero sempre que posso.
O meu nome é Ezequiel e fiquei coxo num repente.