A COMICHÃO
Começou com uma comichão. Não era uma daquelas comichões metafóricas que revelam o desejo de fazer uma viagem à volta do mundo ou uma crise qualquer de um‑quarto‑de‑idade. Era mesmo uma comichão física, literal. No meu último ano de faculdade apareceu‑me uma comichão daquelas que nos deixam loucos, que nos fazem arranhar a pele e não nos deixam dormir à noite. Surgiu primeiro na parte de cima dos pés e foi subindo pelos calcanhares e pelas coxas. Tentei resistir à tentação de coçar, mas era uma comichão constante, espalhava‑se pela superfície da pele como se fossem as picadas de mil mosquitos invisíveis. Sem eu dar conta do que fazia, a minha mão começava a descer pelas pernas e as minhas unhas raspavam as calças de ganga, à procura de alívio – até que a punha dentro das calças e arranhava diretamente a pele. Tinha comichão durante o meu part‑time no laboratório fotográfico da universidade. Tinha comichão sentada à grande secretária de madeira do meu canto na biblioteca. Tinha comichão quando dançava com amigos sobre o chão pegajoso de caves de cervejarias. Tinha comichão quando dormia. Não demorou até as minhas pernas apresentarem uma série de marcas, crostas e cicatrizes, como se tivessem sido açoitadas com ramos de uma roseira. Eram os sinais sangrentos de uma batalha, cada vez mais intensa, que se travava dentro de mim.
“Pode ser um parasita que apanhou quando esteve a estudar no estrangeiro”, disse-me um ervanário chinês, antes de me despachar com uns suplementos malcheirosos e uns chás amargos. No centro de saúde da universidade, uma enfermeira pensou que podia ser um eczema e recomendou um creme. Um médico de clínica geral supôs que a comichão estaria relacionada com stress e deu-me umas amostras de um medicamento contra a ansiedade. Mas ninguém parecia saber ao certo, por isso, tentei não dar muita importância ao caso. Esperei que desaparecesse por si.
Todas as manhãs abria devagar a porta do meu quarto no dormitório, espreitava para o corredor e corria para a casa de banho comum embrulhada na toalha, antes que alguém me visse as pernas. Passava um pano molhado pela pele e via os fios escarlate a escorrerem para o ralo do chuveiro. Cobria‑me de poções de supermercado feitas à base de hamamélis e apertava o nariz quando bebia as misturas de chás amargos. Quando a temperatura ficou demasiado alta para usar jeans todos os dias, investi numa coleção de collants pretos opacos. Comprei lençóis de cores escuras para disfarçar as manchas cor‑de‑ferrugem. E quando fazia sexo era com as luzes apagadas.
Com as comichões, vieram as sestas. Eram sestas que duravam duas horas, depois quatro e depois seis. Parecia não haver uma quantidade de sono capaz de saciar o meu corpo. Comecei a passar pelas brasas em ensaios da orquestra e entrevistas de emprego e a falhar prazos a cumprir e jantares – e, quando acordava, sentia‑me ainda mais esgotada. “Nunca me senti tão cansada na vida”, confessei um dia aos meus amigos quando íamos para as aulas. “Eu também, eu também”, queixaram‑se eles. Andávamos todos cansados. No último semestre, já tínhamos assistido a mais nasceres do sol do que no resto das nossas vidas, resultado de uma combinação de longas horas passadas na biblioteca a acabar as nossas teses, em acumulação com festas regadas com muito álcool, que se prolongavam até à alvorada. Eu vivia no coração do campus de Princeton, no último piso de um dormitório em estilo gótico, coroado por torreões e gárgulas que faziam caretas. No fim de mais uma noite comprida, os meus amigos costumavam juntar-se no meu quarto para um último copo. Era um quarto com grandes janelas, tipo catedral, e gostávamos de nos sentar nos parapeitos, com as pernas a balançar sobre o vazio, a observar os noctívagos embriagados que regressavam a casa e os primeiros raios de luz âmbar a tocar nos pátios empedrados. Com o fim do curso à vista, estávamos todos decididos a saborear essas semanas finais juntos, antes de nos separarmos, mesmo que isso significasse levar os nossos corpos ao limite.
E, no entanto, eu estava preocupada com a possibilidade de a minha fadiga poder ser uma coisa diferente.
Sozinha, na cama, depois de todos terem saído, sentia que por baixo da minha pele se desenrolava um grande banquete, que existia qualquer coisa a abrir o seu caminho pelas minhas artérias, a devorar a minha saúde. Com a minha energia a evaporar-se e a comichão a intensificar-se, tentei convencer-me de que era o apetite do tal parasita que estava a aumentar. Mas, no fundo, duvidava que houvesse um parasita. Comecei a pensar se o verdadeiro problema não era eu.
Nos meses que se seguiram, senti-me como que perdida no meio do mar, quase a afundar-me, desesperadamente à procura de qualquer coisa capaz de manter-me à tona. Durante um tempo, consegui. Acabei o curso e juntei-me aos meus colegas num êxodo em massa para Nova Iorque. Encontrei na Craiglist um anúncio de um quarto vago num grande loft em Canal Street, por cima de uma loja de artigos artísticos. Estávamos no verão de 2010 e uma vaga de calor tinha sugado o oxigénio da cidade inteira. Quando saía do metro, o pivete do lixo a apodrecer atingia-me como uma bofetada na cara. Os suburbanos e as hordas de turistas em busca de malas de estilistas a preços de arrasar acotovelavam-se nos passeios. O apartamento era num terceiro andar sem elevador e quando consegui arrastar a mala até à porta da frente, o meu top branco já estava transparente por causa da transpiração. Apresentei-me aos meus novos colegas de quarto. Eram nove. Andavam todos na casa dos vinte anos e eram aspirantes a qualquer coisa: três atores, dois modelos, um chef, um designer de joias, um aluno em pós-graduação e um analista financeiro. Oitocentos dólares por mês pagavam, para cada um de nós, uma fração sem janelas, separada das outras por uma divisória finíssima que um especulador imobiliário erguera para retirar do seu investimento o máximo possível.
Eu tinha conseguido um estágio de verão no Centro de Direitos Constitucionais e quando apareci, no primeiro dia, senti-me diminuta ao partilhar a sala com alguns dos mais temerários advogados de direitos civis do país. O trabalho transmitia a sensação de ser importante, mas o estágio não era pago e viver em Nova Iorque era como andar com um buraco enorme na carteira. Depressa estoirei os dois mil dólares que tinha poupado ao longo do ano escolar. Estava a conseguir sobreviver com dificuldade, mesmo com os trabalhos de babysitting e os turnos da noite em restaurantes.
Enchia-me de terror imaginar o futuro, em que estava tudo em aberto, mas vazio. Nos momentos em que me permitia sonhar acordada, isso também me enchia de entusiasmo. As possibilidades – quem me podia tornar e onde podia chegar – pareciam-me infinitas, como uma fita a desenrolar-se até onde os meus olhos não conseguiam alcançar. Pensei numa carreira como correspondente internacional na África do Norte, de onde é o meu pai e onde vivi em criança por um breve período. Também me passou pela cabeça a ideia de fazer direito, o que parecia ser um caminho mais prudente. Para ser sincera, precisava de dinheiro. Eu só tinha conseguido frequentar uma faculdade da Ivy League porque tinha ganho uma bolsa que pagou todas as despesas. Mas aqui, no mundo real, não tinha o mesmo género de redes de segurança de muitos dos meus colegas – fundos de educação, ligações familiares ou empregos em Wall Street com rendimentos acima dos cem mil dólares anuais.
Era mais fácil pensar na incerteza que estava por diante do que enfrentar outra mudança que seria ainda mais perturbante. No último semestre, para combater o cansaço, tinha emborcado bebidas energéticas cheias de cafeína. Quando deixaram de funcionar, um rapaz com quem andei pouco tempo deu-me umas anfetaminas para sobreviver aos exames finais. Mas depressa isso também deixou de resultar. No meu círculo de amigos, a cocaína corria nas festas e aparecia sempre alguém a oferecer de graça uma linha. Quando comecei a aceitar, ninguém disse nada. Os meus companheiros de quarto em Canal Street também eram tipos que gostavam de festas à séria. Comecei a tomar psicostimulantes da mesma maneira que há pessoas que bebem cafés duplos – como um meio para atingir um fim, uma maneira de superar a minha exaustão crescente. No meu diário, escrevi: Ficar à tona.
Quando o verão estava a chegar ao fim, eu já tinha dificuldade em reconhecer-me. O som abafado do despertador irrompia como uma faca romba pelo meu sono sem sonhos. Todas as manhãs, arrastava-me para fora da cama e punha-me em pé diante do espelho alto, a fazer um inventário dos estragos. Havia arranhões e fios de sangue seco a cobrir as minhas pernas em sítios novos. O meu cabelo caía até à cintura em ondas sem jeito, caóticas, que eu estava demasiado cansada para escovar. Debaixo de grandes olhos raiados de sangue, iam-se tornando mais e mais profundas as olheiras escuras em meia-lua. Demasiado fatigada para enfrentar a luz do sol, comecei a aparecer no estágio cada vez mais tarde, até que, um dia, deixei de aparecer de todo.
Eu não gostava nada da pessoa em que estava a tornar-me – uma pessoa que mergulhava de cabeça em cada dia, sempre em movimento, mas sem qualquer sentido de direção; uma pessoa que, noite após noite, tinha de reconstituir momentos de perda de consciência, como se fosse um detetive privado; uma pessoa demasiado envergonhada para atender os telefonemas dos pais. Pensava: Isto não sou eu, e olhava com repulsa para a minha imagem. Precisava de mudar tudo. Precisava de encontrar um emprego a sério, com um salário a sério. Precisava de alguma distância dos meus colegas de faculdade e dos meus companheiros de casa. Precisava como tudo de sair de Nova Iorque – e o mais depressa possível.
Numa manhã de agosto, uns dias depois de me ter despedido do estágio, levantei-me cedo, levei o portátil para a escada de serviço e comecei a procurar emprego. Tinha sido um verão sem chuva e o sol estava escaldante, queimava-me a pele, deixava-me nas pernas pequenas manchas, como braille, nos sítios onde coçar tinha deixado cicatrizes. Chamou-me a atenção o anúncio para um emprego de assistente num escritório norte-americano de advogados em Paris e decidi responder por impulso. Passei o dia inteiro a trabalhar na carta de apresentação. Fiz questão de sublinhar que o francês era a minha primeira língua e que também falava árabe, esperando que isso me desse uma vantagem competitiva. Não era o meu ideal de emprego – para dizer a verdade, nem sabia bem quais eram as funções –, mas parecia o tipo de coisa que uma pessoa sensata faria. Acima de tudo, pensei que a mudança de cenário podia salvar-me de um comportamento cada vez mais imprudente.
Mudar para Paris não estava na minha lista de coisas a fazer: era o meu plano de fuga.
Umas noites antes de deixar de vez Nova Iorque, dei por mim na minha terceira festa do dia, onde banqueiros de investimento, de colarinhos levantados, se acocoravam à frente de linhas de coca grossas como lagartas, a transpirar, falando animadamente das suas carteiras de ações, das casas que alugavam no verão em Montauk e coisas do género. Eram cinco da manhã e esta não era a minha cena. Queria ir para casa.
Sozinha, no passeio, banhada pelo fumo azul do meu cigarro, vi o céu noturno começar a clarear à minha volta. Manhattan dormia, nesse brevíssimo momento de tranquilidade entre o fim da ronda dos camiões do lixo e a abertura dos cafés. Estava à espera de um táxi há dez minutos quando um rapaz que reconheci da festa passou por mim e me pediu um cigarro. Era o último, mas dei-lho. Ele acendeu-o, fazendo uma concha com a mão, grande como uma luva de beisebol, em volta da ponta. Sorriu ao expelir o fumo, enquanto nós os dois trocávamos de um pé para o outro e nos olhávamos timidamente e, depois, para a rua deserta.
“Queres partilhar?”, perguntou ele. Um táxi solitário encaminhava-se para nós e a pergunta parecia bastante inocente, por isso, respondi “claro que sim” e entrámos. Só depois de ter dado a minha morada ao motorista é que me lembrei que ele me tinha pedido para partilhar a corrida de táxi sem saber para onde é que eu ia.
Eu estava mais do que avisada para não entrar em carros com homens desconhecidos. O meu pai, que tinha vivido em East Village nos anos 80, quando a cidade estava infestada pelo crime, teria desaprovado veementemente. Mas havia naquele rapaz qualquer coisa que transmitia ao mesmo tempo segurança e mistério. O cabelo, desalinhado e aclarado pelo sol, caía-lhe sobre olhos azuis e inteligentes. Magro, de queixo quadrado e com uma covinha no rosto, era claramente bonito, mas tinha uma postura terrível, movendo-se com uma humildade que sugeria que não tinha consciência da sua aparência.
– Podes muito bem ser a pessoa mais alta que eu já conheci – disse-lhe, estudando-o pelo canto do olho. Com quase um metro e 90, ele ia sentado com os joelhos cravados nas costas do banco do motorista.
– Já ouvi dizer – respondeu. Falava com suavidade e, apesar do seu tamanho, havia nele gentileza.
– Prazer em conhecer-te. Eu chamo‑me…
– Falámos antes, lembras-te?
Encolhi-me, antes de lhe lançar um sorriso de desculpas. – Tem sido uma noite comprida…
– Não te lembras de quando tentaste mostrar-me o interior da tua pálpebra? Ou quando recitaste o Mary had a little lamb em latim? – brincou. – E quando despejaste por cima da cabeça aparas de lápis e só dizias cascarones! de uma maneira assustadora? Não te lembras de nada disso?
– Ah, ah. Muito engraçado – afirmei, dando-lhe a brincar um soco no braço. Foi aí que percebi que estávamos num jogo de sedução.
Ele inclinou-se para me apertar a mão.
– Chamo-me Will.
Fomos a falar todo o caminho para a baixa e a química entre nós ia aumentando a cada quarteirão. Quando chegámos ao meu prédio, saímos os dois do táxi e ficámos no passeio: eu a pensar se o devia convidar para subir e ele demasiado educado para sugerir isso. Nunca tinha ido para a cama com um estranho – já tinha tomado algumas decisões duvidosas, mas sempre fora um tanto romântica e monógama em série. Mas estava tentada. Pensei nisso por um instante.
– Tens fome? – perguntou o Will.
– Estou esfomeada – respondi. Aliviada, puxei-o para longe da porta de entrada do prédio. Caminhámos por Canal Street, pelos grandes salões de cabeleireiro ainda de portas fechadas, pelos patos assados pendurados nas montras das charcutarias e pelos vendedores de fruta que iam montando as bancas nos passeios. Entrámos no cafezinho do bairro. Éramos os primeiros clientes do dia.
Entre café e bagels, o Will começou a contar-me que tinha chegado há pouco da China, onde trabalhara para uma organização desportiva, a promover programas de captação de atletismo para jovens. Fiquei impressionada quando me disse que falava mandarim. Para já, estava a ficar em casa dos padrinhos e ia pensar umas semanas no que havia de fazer a seguir. Era sincero e brincalhão, com piadas um bocadinho patetas, quase próprias de um pai. Mas, por baixo dessa fachada descontraída, senti que o Will estava um pouco perdido – e mais do que um pouco vulnerável. Duas horas depois ainda ali estávamos, sempre a falar. Quando nos levantámos para sair, lembro-me que pensei: Gosto mesmo de ti. E o segundo pensamento foi: É pena irmos viver em continentes diferentes.
Depois do pequeno-almoço, o Will e eu fizemos o caminho de volta para o meu prédio e subimos as escadas para o meu quarto. Passámos o dia inteiro na cama, a dormir, a conversar e a brincar. Estava habituada a tipos que eram agressivamente assertivos e vinham armados com um arsenal de frases de engate já muito testadas, mas o Will parecia feliz por estar ali apenas deitado ao meu lado. Quando, ao fim de várias horas, ele ainda não tinha tentado beijar-me, virei-me para ele e fiz o primeiro movimento. Tivemos então a nossa one night stand – só que acabaram por ser duas noites, e depois três. Com ele, era diferente. Eu deixava as luzes acesas. Não sentia a necessidade de esconder o que quer que fosse. Ele era o género de pessoa que faz com que olhemos com mais benevolência para aquelas partes de nós que detestamos. Era o tipo de pessoa que, se as circunstâncias tivessem sido diferentes, eu teria dedicado tempo a conhecer bem.
Na minha última manhã em Nova Iorque, havia uma luz cor de limão a filtrar-se pela janela da cozinha enquanto eu fazia café. As buzinadelas zangadas dos táxis e os suspiros dos autocarros eram audíveis muito, muito ao fundo. Entrei com cautela no quarto, recolhi umas últimas peças de roupa e enfiei-as na mala. Enquanto a fechava, olhei para a silhueta esguia do Will, embrulhada nos lençóis, e para o seu rosto, que era o reflexo de um sono angelical. Ali deitado, parecia numa tal paz que não quis acordá-lo. Uma infância passada em mudanças tinha-me deixado farta de despedidas. Antes de sair, deixei uma nota nos sapatos dele, onde escrevi: “Obrigada por este divertimento inesperado. Os nossos caminhos voltarão um dia a cruzar-se, inshallah.”
2 - MÉTRO, BOULOT, DODO
Se Manhattan é o lugar para onde as pessoas vão para dar um empurrão às suas carreiras, então Paris é o sítio para onde vão viver a fantasia de uma vida diferente – e era exatamente isso o que eu tencionava fazer. Saí do métro para as ruas do bairro de Le Marais a arrastar a minha mala vermelha, bem cheia, parando de poucos em poucos metros para espreitar os cafés, as padarias e as fachadas cobertas de hera do meu novo bairro. Graças a um amigo de um amigo, tinha tido a sorte de encontrar um estúdio mobilado para arrendar, num prédio do século XVIII da rua Dupetit‑Thouars. Meti-me no elevador de carga, em ferro forjado, e subi ao terceiro andar. Quando abri a porta, o contraste entre Canal Street e a minha nova casa fez-me querer dançar de alegria logo ali, no tapete de entrada. Luz! Silêncio! Privacidade! Soalho em madeira! Uma banheira cor-de-rosa gigante em forma de concha! O apartamento não teria mais de quarenta metros quadrados, mas parecia-me um palácio – e era todo meu.
Passei o fim-de-semana a instalar-me, a desempacotar, a abrir uma conta bancária, a comprar lençóis novos e a dar uma grande limpeza na cozinha. Na segunda-feira de manhã, apanhei o métro para a firma de advogados, que ficava numa vivenda elegante junto ao Parc Monceau, no oitavo arrondissement. Umas estagiárias receberam-me no lobby e fizeram-me uma visita de apresentação, com os saltos a baterem no chão de mármore branco polido. Desde adolescente que eu já tinha tido todo o tipo de trabalhos – passeadora de cães, babysitter, assistente pessoal, professora de contrabaixo, empregada de restaurante –, mas esta era a primeira vez que me encontrava num ambiente de empresa. O escritório tinha tetos a seis metros, ombreiras de portas trabalhadas e molduras douradas, além de uma grande escadaria que dava curvas. Os advogados estavam sentados às secretárias de madeira, com um cigarro numa mão e um café expresso na outra, o que me pareceu muito francês e muito chique. Ao meio-dia, fui com um grupo ao café da esquina, para um almoço demorado: pedimos bifes e duas garrafas de vinho, por conta da empresa. Quando regressei, deram-me um BlackBerry de trabalho e mostraram-me o armário com o material de escritório. Equipada com uma pilha de blocos amarelo-claro e canetas sofisticadas, sentei-me à minha secretária, a sentir-me muito crescida enquanto me reclinava na cadeira e acendia um cigarro, olhando em redor deliciada.
Ao fim do primeiro dia de trabalho, em vez de apanhar o metropolitano, decidi ir a pé para casa. Ao entardecer, as ruelas estreitas e retorcidas do Marais ganhavam uma atmosfera medieval. Os candeeiros das ruas tremelicavam e iluminavam-se. Enquanto deambulava, fantasiava sobre a pessoa que podia agora tornar-me. Para trás, tinham ficado os amigos que, na verdade, não eram realmente meus amigos – apenas pessoas com um grande apetite por confusão e por noitadas. Até a comichão parecia ter diminuído. Com um oceano a separar-me de tudo aquilo, imaginei-me a passar fins-de-semana tranquilos e solitários a explorar a cidade, a fazer piqueniques no Jardim das Tulherias e a ler um bom livro num pequeno café que tinha descoberto mesmo ao virar da esquina. Ia arranjar uma bicicleta com um cesto que encheria todos os domingos de mercearias compradas no mercado ao ar livre da Place de la République. Começaria a usar bâton vermelho e saltos altos, como as outras estagiárias.
Aprenderia a cozinhar o famoso cuscuz da minha tia Fatima e daria jantares na minha casa nova. Decidida a gastar menos tempo a falar das coisas que queria fazer e mais tempo a fazê-las de facto, ia inscrever‑me num dos workshops de escrita de ficção na Shakespeare and Company, a livraria famosa nas margens do Sena. Talvez até arranjasse um cão, um King Charles Spaniel gordinho; dava-lhe o nome de Chopin.
O problema é que eu não tinha tempo livre e, nos poucos domingos em que consegui ir ao mercado, os produtos acabaram guardados no frigorífico até apodrecerem cheios de bolor. O que se passou é que fui atirada para uma vida que os franceses descrevem como “métro, boulot, dodo” (metro, trabalho, sono). No fim da primeira semana de trabalho já era para mim evidente que não tinha sido talhada para uma carreira na área jurídica. Preferia a escrita criativa aos gráficos – e sandálias Birkenstock a saltos altos. A firma era especializada em arbitragem internacional, o que inicialmente até me tinha parecido interessante, mas sempre que tentava ler os relatórios que chegavam à minha secretária o jargão legal surgia-me como inescrutável e o seu conteúdo era de um aborrecimento capaz de entorpecer o espírito. Eu passava a maior parte dos dias no escritório da cave, a fazer revisões, prints e a reunir milhares de documentos em pastas impecavelmente organizadas, para que os advogados pudessem ajudar empresas sem alma a enriquecer ainda mais. Como esperavam de mim disponibilidade total, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, dormia com o telemóvel de trabalho na almofada e marcava o despertador para horas a meio da noite, para poder ver se havia emails urgentes. Muitas vezes nem conseguia sair do escritório; nós, estagiários, fazíamos tantas noitadas a trabalhar, que começámos a contabilizar. Para cúmulo disto tudo, tinha um chefe sinistro, que guardava na gaveta da secretária catálogos de sapatos de mulher e que, quando pensava que eu não estava a ver, me fotografava os pés com o telefone. Depois de fazer mais uma semana de noventa horas de trabalho, a minha maneira de descontrair era pegar a correr numa napolitana de chocolate e sair para dançar. No final de uma noite longa, arrastava quem quer que estivesse comigo para um velho clube de jazz chamado Aux Trois Mailletz, onde cantávamos desafinados ao piano e bebíamos vinho até os lábios ficarem roxos.
A minha vida em Paris não era a fantasia que eu tinha imaginado, mas comecei a engendrar uma versão diferente. A minha correspondência com o Will começou de maneira inesperada: os SMS a dizer “olá‑então‑como‑vais?” transformaram‑se em trocas de emails longos e cheios de humor, a que se seguiram envelopes gordos cheios de cartas escritas à mão e de recortes da New Yorker com anotações inteligentes. O Will enviou-me um postal de uma cabana nas Montanhas Brancas de New Hampshire, onde fora passar um fim de semana com amigos. Escreveu: “Eletricidade zero, um fogão a lenha do início do século XX e nada de sons, exceto os mochos, a lenha a crepitar e o vento. Fez-me querer andar pelas estradas secundárias dos EUA. Queres fazer uma road trip?” A ideia de nós os dois, em viagem pelos Estados Unidos, pôs o meu coração a dançar.
No fim das cartas, despedíamo-nos sempre da mesma maneira: “Não é preciso responder com uma quantidade igual de palavras.” Mas, com a passagem das semanas e dos meses, as nossas trocas de cartas tornaram-se mais profundas e mais frequentes. Eu lia cada carta dele uma vez, e mais uma, e depois outra, como se fossem mapas em código contendo pistas e dicas secretas sobre a pessoa que empunhava a caneta. Contei ao Will sobre o meu caminho um tanto transviado desde que tinha acabado o curso e sobre a minha vida nova no estrangeiro: “Passei as minhas primeiras trinta e seis horas em Paris em solidão total, com o meu portátil e o telemóvel desligados. Caminhei por toda a cidade, até que um salto de um sapato se partiu e tive de apanhar um táxi para casa.” Apesar de todas as minhas tentativas para levar uma vida mais ascética, tinha encontrado um novo grupo de amigos – Lahora, uma yogi viúva; Zack, um antigo colega de faculdade que tinha aulas de mímica; Badr, um jovem homem de negócios marroquino que adorava sair para ir dançar; e David, um expatriado, mais velho, que se vestia como se fosse um playboy internacional e organizava festas extravagantes. “Não se consegue impor a solidão a uma alma que precisa de voar”, respondeu-me o Will. Com uma resposta destas, era possível não ficar encantada?
Contei ao Will o meu sonho de me tornar jornalista e mostrei-lhe um ensaio sobre o conflito israelo-árabe em que andava a trabalhar há meses. Que coincidência, respondeu-me; ele também tinha ambições jornalísticas. Tinha começado há pouco tempo como assistente de investigação de um professor, mas estava à espera de encontrar uma vaga como editor. Enviou-me várias indicações pertinentes sobre aspetos a rever no meu trabalho. Apesar do tempo que tínhamos passado juntos na minha última semana em Nova Iorque, estes pequenos momentos de ligação foram para mim uma surpresa, porque foi apenas pelas cartas que começámos realmente a conhecer-nos. Esta nossa correspondência antiquada era uma alternativa mais honesta e mais segura aos jogos do gato e do rato da sedução. Em pouco tempo, tinha-me afeiçoado de tal maneira ao meu amigo das cartas que ele era a única coisa em que pensava, com que sonhava e falava. Esperava que, para lá das linhas escritas, pudesse ser uma pessoa tão maravilhosa como a que eu imaginara a partir das palavras.
Numa tarde de fim de outono, depois de um dia invulgarmente parado no escritório, estava a conversar com a Kamilla, a estagiária com quem partilhava a secretária, sobre se devia convidar o Will a vir visitar-me a Paris. Eu não sabia se o subtexto romântico nas nossas cartas estava só na minha cabeça, mas preocupava-me que, se eu não tomasse uma iniciativa depressa, a troca de cor respondência se fosse esfumando. Demorei uma hora inteira à volta de rascunhos de uma carta para o Will, tentando chegar ao tom certo, qualquer coisa entre um entusiasmo genuíno e uma descontração cool.
– Allez, ma chérie, courage, por este andar vais ficar aqui a noite inteira – disse-me a Kamilla, fazendo-me uma festa na cara antes de se ir embora.
Quando me decidi por uma versão final, já estava escuro lá fora e o escritório quase vazio. Contei até dez, sentindo-me mais do que imatura enquanto hesitava em fazer Send. Quando finalmente reuni a coragem para isso, senti uma enorme emoção - que foi rapidamente eclipsada pela ansiedade de esperar pela resposta dele. O tempo parecia escoar-se lentamente. Fumei meio maço de Gauloises, naveguei pela Internet, reorganizei a secretária. Às nove, por fim, apanhei o métro para casa. Verifiquei o email. Ainda nada. Enquanto preparava um jantar de torradas com Nutella, a minha cabeça andava a mil à hora: tinha exagerado? Tinha lido mal o que havia no ar? Resolvi tomar um banho antes de ir para cama e então, se ainda não houvesse resposta, ia eliminá-lo da minha cabeça.
Olhei uma última vez para o email à meia-noite. Havia uma mensagem na caixa de entrada. Quando a abri, vi que era uma confirmação de voo reencaminhada. Destino: Paris, França.
O Will chegou um pouco menos de um mês depois, mesmo a tempo de celebrarmos o Dia de Ação de Graças. Passei o fim de semana anterior num frenesi de preparativos. Esfreguei a banheira até reluzir, eliminei do soalho todos os vestígios de pó e levei os lençóis à lavandaria. Fui ao Marché des Enfants Rouges e comprei um pão e um grande Camembert cheiroso, mais um frasco de pepinos em conserva, arranjei produtos de charcutaria e um ramo de alfazema seca. A caminho de casa ainda comprei vinho e, à última hora, entrei no salão do outro lado da rua para um corte de cabelo de que andava a precisar havia muito. Na manhã da chegada do Will, levantei-me de madrugada e mudei de roupa nada menos de seis vezes, antes de me decidir pelo meu melhor par de jeans, uma camisola preta de gola alta, justa, e pelas minhas argolas da sorte. Quando fui para o aeroporto, já estava quase uma hora atrasada.
Eu corria e os saltos das minhas botas batiam com força no passeio molhado da rua Dupetit-Thouars, varrida por vento e neblina. Estava quase na entrada do métro quando ouvi uma mensagem a entrar no telefone. Era o Will, a dizer que o voo tinha chegado mais cedo e que tinha apanhado um táxi direto para minha casa. Alguém lhe abrira a porta do prédio e ele estava à minha espera à entrada do meu apartamento. Sempre a correr, mas agora de regresso ao meu prédio, subi os degraus a dois e dois e fiz uma pausa quando cheguei ao segundo andar, para me recompor e ficar com um pouco de fôlego. O meu coração batia como um metrónomo acelerado, a testa latejava, a respiração estava ofegante. Nas últimas semanas, tinha notado que parecia cansar‑me com mais facilidade. Tomei nota mentalmente para me inscrever num ginásio. Sacudindo o cabelo da cara, respirei muito profundamente e virei a esquina.
– Ei! Ei! – gritou o Will quando me viu, endireitando-se e abrindo um grande sorriso, com os dentes à mostra. Hesitámos um momento antes de nos abraçarmos, os dois subitamente demasiado tímidos para ensaiarmos um beijo, até na cara. Envolvida nos braços de um homem que, não sendo um estranho, não era muito menos do que isso, senti, pela primeira vez em meses, que pisava terreno firme.
– Bienvenu – disse‑lhe quando nos desabraçámos, e empurrei-o porta dentro. O meu estúdio era pequeno. Tirando a cozinha e a casa de banho, era só uma divisão.
– O quarto é aqui – disse, apontando para a cama no espaço aberto. – A sala é aqui. – E apontei para o sofá vermelho vivo. – A sala de jantar é aqui – acrescentei, mostrando-lhe a velha arca de porão que também fazia as vezes de mesa de café, secretária e armário.
Este era o primeiro lugar em que tinha vivido sozinha e, embora fosse um pouco espartano e eu ainda não tivesse tido tempo para comprar cortinas, tinha orgulho nele.
– E voilà! – disse-lhe, ao abrir as janelas grandes para revelar uma pequena varanda e concluir a visita guiada.
– O melhor – confirmou o Will.
O resto desse dia está envolvido numa névoa – e aparece-me em instantâneos: a conversa nervosa na sala enquanto bebíamos café, as dezenas de presentes, embrulhados um a um, que o Will pôs em cima da arca, o passeio demorado à beira do Sena, onde rimos ao ver estudantes dos Estados Unidos com boinas e a falarem um francês péssimo.
– Nem sequer penses beijar-me aqui – avisei-o, quando atravessámos a Pont des Arts, onde casais de namorados prendem cadeados à rede. Foi só no fim dessa noite, depois de uma garrafa de vinho tinto nos ter acalmado os nervos, que ele me beijou. Subimos a escada para a cama, uma estrutura barata e improvisada feita de quatro postes de madeira e de uma instável plataforma de contraplacado que o inquilino anterior tinha montado, e cuja segurança era duvidosa. Quando nos deitámos lado a lado, a sensação foi diferente da daquelas três noites que tínhamos partilhado em Nova Iorque. Havia no ar uma ternura desajeitada no momento em que nos despimos. A luz do luar entrava pela janela e dava uma tonalidade prateada às cicatrizes nas minhas pernas. Por baixo de nós, os postes da cama abanavam.
– Maldito sejas, IKEA – exclamei.
– E se a cama cair? – O Will estava mesmo preocupado. – Imagina o meu pai a ler amanhã os títulos dos jornais: CASAL DE AMERICANOS NUS ENCONTRADO MORTO NUM MONTE DE DESTROÇOS IKEA.
O Will desceu logo a escada.
– Só um segundo, preciso de inspecionar aqui isto. Viu se os parafusos estavam bem apertados e, enquanto eu ria, abanou e agitou a estrutura.
– É uma avaliação sísmica!
Ao fim da sua visita de duas semanas, o Will regressou a Nova Iorque, mas apenas para fazer as malas e se despedir do emprego. “Ele vai mudar-se para Paris para estar comigo”, escrevi no meu diário, várias vezes, até que começou realmente a parecer verdade. Sentada no métro, a caminho do trabalho, um sorriso idiota abriu-se no meu rosto. “A alegria é uma emoção assustadora, não se deve confiar nela”, acrescentei nessa mesma página. É que, debaixo da alegria, havia uma tempestade a ganhar força, o presságio de uma turbulência, uma qualquer selvajaria húmida e escura a desenvolver-se sob a minha pele.
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