Em 1976, Jack Nicholson foi nomeado para os prémios da Academia na categoria de Melhor Actor. Já havia sido nomeado antes, mas nunca a sua vitória tinha parecido tão certa como naquele ano, nem nunca a comunidade canibal-americana estava tão desesperadamente precisada que ele vencesse. 

Para eles, a 48.ª cerimónia dos Prémios da Academia representava mais do que só mais uma vistosa gala de Hollywood. A nação era bafejada com ventos de mudança social, mas sobre a comunidade canibal-americana soprava um vento gélido; os seus velhos costumes e tradições não rivalizavam minimamente com os ABBA, a Farrah e a cocaína. Os anos 60 e o início da década de 70 haviam dizimado a comunidade, perdendo números cada vez maiores dos mais jovens para o duplo flagelo da assimilação e do casamento interacial. 

Por isso, na noite de 29 de Março de 1976, enquanto Hollywood se reunia para a cerimónia dos Óscares desse ano no Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, canibais-americanos de todo o país reuniam-se à frente dos televisores, esperançosos de que uma vitória de Nicholson, que era canibal, servisse de inspiração para o renascimento da comunidade; que ele pisasse aquele palco, olhasse para aquelas câmaras de televisão e agradecesse à comunidade canibal pelo apoio e amor demonstrados, libertando-os finalmente das trevas da vergonha e do secretismo que os perseguiam desde sempre. 

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Mudd andou todo o dia fora de si com ansiedade e excitação, a limpar e a limpar de novo aquilo que já tinha limpado. Ela desprezava a televisão, mas hoje, ao fim e ao cabo, fazia-se história – a história dos canibais – e ela tinha autorizado que Humphrey adquirisse um pequeno televisor a preto e branco especificamente para a ocasião. 

Assim que a apresentação dos prémios começou, a tensão na sala de estar era de cortar à faca. Mudd batia nervosamente com o pé; Unclish, que uma vez havia ponderado interditar a visualização de televisão a toda a comunidade, mantinha-se de pé ao lado do sofá, a enrolar a barba, enquanto dizia «Sim, sim, hum, hum». 

Art Carney, que não era canibal, foi recebido com uma ovação atroadora enquanto se encaminhava para o pódio para apresentar o prémio da Academia para o Melhor Actor. 

– Este ano – anunciou –, os nomeados na categoria de Melhor Actor são… – Olhou para o cartão que tinha na mão. – Walter Matthau, em Uma Parelha de Chatos!

A multidão dentro do pavilhão aplaudiu, e na câmara surgiu o radiante Matthau sentado no meio do público. Alguns anos antes, Carney e Matthau haviam contracenado na produção original da Broadway de Neil Simon, Um Estranho Casal, e a sua história comum adocicara ainda mais a sua nomeação, tanto para os actores como para o público. 

– Judeu – resmoneou Mudd. 

– Jack Nicholson – prosseguiu Carney – em Voando sobre um Ninho de Cucos! 

De novo, a multidão irrompeu em aplausos, e agora Mudd aplaudia também. 

Nicholson, com os óculos escuros que o caracterizavam, ofereceu um sorriso rasgado. Anjelica Huston, sentada a seu lado, batia palmas e sorria com orgulho, ao passo que Matthau, na janelinha que aparecia no canto superior do ecrã, já não se apresentava tão radiante. Mudd achou que franzia o sobrolho. 

– Olhem só para aquele sacana gordo – disse Mudd. 

– Quem? – perguntou Humphrey. 

– O Matthau. Espero que arda no Inferno. 

– Eu cá gosto dele. É um bom actor. 

– Ficam bem juntos. Oh lá se ficam! 

– Quem? 

– Quem?? – perguntou Mudd com repulsa. – O Neil Simon, judeu, dá trabalho ao Walter Matthau, judeu, e agora Art Carney, judeu, vai dar-lhe o Óscar. 

– O Art Carney não é judeu – disse Humphrey. – É católico.

Depois de enumerar os restantes nomeados, Art Carney segurou no envelope e abriu-o, rasgando-o. Mudd agarrou a mão de Humphrey, apertando-a com tanta força que ele pensou que lhe ia partir os ossos. – E o vencedor é… 

O silêncio abateu-se sobre o público no pavilhão. 

Mudd susteve a respiração. 

Carney olhou para o cartão. 

– Jack Nicholson! – anunciou. – Em Voando sobre um Ninho de Cucos! Mudd pôs-se de pé num salto, gritando de alegria e batendo com os pés, as mãos erguidas em sinal de triunfo. 

Unclish também se regozijou, batendo palmas e dando palmadas nas costas de Humphrey. 

– Ele conseguiu! O nosso rapaz conseguiu mesmo!

Nicholson beijou Anjelica Huston e dirigiu-se ao palco. 

– Ela é canibal? – perguntou Mudd. – Acho que é. Huston… Podia ser um nome canibal, não acham? 

– Como é que queres que eu saiba isso? – indagou Humphrey. – Olha para aquele maxilar! É um maxilar canibal, não há dúvida!

Nicholson saltou para o palco, fazendo uma breve dança a imitar Ed Norton em homenagem a Art Carney. O público ficou extasiado. – Aqui vamos nós – disse Mudd, a tremer de excitação. – Aqui vamos nós. 

Carney entregou o troféu reluzente a Nicholson, e os dois homens deram um abraço. 

– Alguma vez imaginaram que veriam isto? – perguntou Mudd. – Alguma vez pensaram que chegaria o dia em que um dos nossos estaria naquele palco a receber um Óscar? 

Jack Nicholson ocupou o seu lugar no pódio e varreu o auditório com o olhar. 

– Bem – disse ele com o seu sorriso matreiro –, acho que isto prova que existem tantos doidos na Academia como em qualquer outro sítio.

O público aplaudiu, e Mudd juntou-se-lhes, rindo à gargalhada e dando palmadinhas no joelho. 

– Ele tem graça. Não sabia que tinha tanta graça! 

– Mas visto que me deram a oportunidade – continuou Nicholson –, estou realmente feliz por poder agradecer a Saul e a Michael… Nicholson fez uma pausa. 

Mudd cravou a mão na coxa de Humphrey, apertando-a. 

Ela não sabia quem eram Saul ou Michael, mas Nicholson parecia estar a reunir forças, a ganhar coragem, a procurar palavras, a preparar-se para fazer uma revelação ao mundo sobre si e o seu povo. 

– E a Louise – continuou Nicholson com uma certa indecisão. A mão de Mudd cravou ainda mais fundo na coxa de Humphrey. – Mudd… – disse Humphrey com uma careta, sentindo os dedos dela a esmagarem-lhe os ossos. 

– E a Brad – continuou Nicholson – e a Lawrence e a Bo. E a toda a malta da produtora, a toda a brigada dos tontinhos… 

Mudd inclinou-se para a frente e procurou o olhar de Nicholson, à espera que declarasse quem e o que era.

E à minha gente – como ela queria que ele dissesse. – Ao grande povo canibal. Que sofreu tormentas e humilhação e tem andado escondido nas trevas. A todos vós, ordeno que vos ergueis! Erguei-vos comigo e revelai a vossa proveniência! Pois hoje, blá-blá-blá, e amanhã, iremos tomar conta do mundo! Mas esse momento nunca aconteceu. 

Nicholson sorriu, fez uma piada qualquer sobre o seu agente, agradeceu ao público e abandonou o palco. 

Mãe Para Jantar
créditos: Guerra e Paz

Livro: Mãe Para Jantar

Autor: Shalom Auslander

Editora: Editora Guerra & Paz

Preço: 14,40€

Unclish abanou a cabeça, revoltado. 

– Devia ter banido esta caixa maldita quando pude – disse enquanto punha a cartola na cabeça, e abandonou a sala todo enfatuado, batendo com a porta ao sair. 

– Aquele filho da mãe! – gritou Mudd. 

– Mudd – rogou Humphrey. – Mudd, acalma-te. 

– Nem uma palavra! – gritou Mudd. – Nem uma palavra sobre a sua gente, o seu legado, a sua história! É só vergonha e mais vergonha e mais vergonha! 

– O que é que esperavas que ele fizesse, Mudd? 

– Esperava que tivesse carácter! 

– Esperavas que o Jack Nicholson abrisse o jogo em plena cerimónia da Academia, diante do mundo inteiro, e dissesse a toda a gente que ele é… que ele é… 

– Nem tu consegues dizê-lo! – vociferou. 

– Isto não é sobre mim, Mudd! 

– É sobre o nosso povo! – bradou ela, saindo intempestivamente da sala. Sempre que Mudd saía intempestivamente de um sítio, parecia que eram necessários alguns instantes para o ar regressar à divisão. Quando isso finalmente aconteceu, Humphrey levantou-se e caminhou na direcção do televisor. 

– Ora… – disse de si para si enquanto desligava o aparelho. – E quem é que nunca sentiu alguma vergonha? 

*** 

Oitavo folheava a cópia de O Guia de Terceiro, com um olhar de desconcerto total. 

– Mas que diabo é isto? – perguntou.

Tinham concordado consumir Mudd, mas já tinha passado mais de uma hora desde a sua morte. Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, tinha-lhes ensinado Unclish, para a mamã não se estragar, pelo que sabiam que tinham de ser rápidos. 

Oitavo tinha ido buscar O Guia à maleta, mas, à medida que o folheava, era perceptível, pelo seu olhar, que alguma coisa estava tremendamente errada. – O que é? – perguntou Sétimo. 

– O que é? – repetiu Oitavo. – É pornografia, é o que é. 

– O quê? 

– Pornografia. 

Oitavo arremessou O Guia para Sétimo, que o abriu na página que mostrava uma mulher nua segurando os enormes seios com as mãos em concha. Usava apenas um chapéu branco de cozinheiro. Por cima, em grandes letras cor-de-rosa, podia ler-se: «Tens fome?» 

Sétimo consultou a capa. Ainda era a original – o caçador camuflado, o veado coberto de sangue –, mas as páginas do miolo tinham sido trocadas por páginas de uma revista pornográfica (pelo ar da coisa, devia ser a Juggs). Todas as páginas apresentavam mulheres com seios do tamanho de um jipe. 

«Eis o bife», lia-se no cabeçalho de uma das páginas. 

«Hora do seu Whopper», lia-se na seguinte. 

Sétimo olhou para Terceiro, que cobria a cara com vergonha. – São sete, é hora do esparguete! – disse ele. 

– Onde está o resto? – perguntou Oitavo a Terceiro. – Onde está o resto? 

– Não grites com ele! – repreendeu Zero. – Ele não sabia. – A nossa mãe está a apodrecer lá em cima – disse Oitavo. – Onde está o resto? 

Terceiro começou a bater na própria cabeça. 

– Não sejas estúpido – censurava-se ele. – Não sejas estúpido.

Sétimo agarrou-lhe nos braços, tentando fazê-lo parar. 

– Está tudo bem, está tudo bem. Não fizeste nada de mal, parceiro; todos fazemos coisas assim. 

Terceiro escondeu o rosto com as mãos e balbuciou.

– Fazemos? 

– Claro que sim – assegurou Sétimo. – Mas agora preciso que penses, Terceiro; preciso que penses com muita força. Onde puseste o resto? O Guia, Terceiro, onde é que o puseste?

Terceiro fechou os olhos com força e susteve a respiração. Por fim, disse: – Ups. 

– Ups? 

– Atirei-o fora. 

– Atiraste-o fora? – perguntou Sétimo. 

– Seu idiota – bradou Oitavo. 

– Ei! – exclamou Zero. 

– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar! 

– Seu idiota! – bradou novamente Oitavo. 

– Ele não sabia! – disse Zero. 

Entraram todos em pânico. Os Seltzer que amavam Mudd afligiram-se com a possibilidade de ela não viver para sempre; os que amavam o seu povo afligiram-se com a possibilidade de estarem prestes a quebrar a corrente; e os que só queriam o dinheiro de Mudd temiam nunca o receber. 

– Oh, que se lixe, vamos lá a isso! – disse Primeiro. 

– Vamos? – perguntou Oitavo. – E como? 

– Com o Punhal, cara de poia – disse Primeiro. – O Punhal da Redenção. Pegamos nele, subimos lá acima e, vocês sabem, drenamo-la. – Vocês sabem, drenamo-la? – perguntou Quinto. – Não, eu não sei. Drenamo-la como? 

– Como é que achas? – ripostou Primeiro, e fez o gesto de um dedo a trespassar a garganta. 

– Sabes a quantidade de sangue que há numa mulher daquele tamanho? – perguntou Oitavo. 

– Não – disse Primeiro. – Tu sabes? 

– Litros – disse Nono. 

– Deitamo-lo pia abaixo – disse Quarto. 

– E como sugeres que o transportemos até à pia? – perguntou Quinto. – Com uma mangueira – sugeriu Décima Primeira. 

– Ela não é um barril de cerveja – disse Décimo. 

– Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar – disse Segundo. – Todo o óleo do corpo lhe deves drenar, para a mamã não se estragar… 

– Certo! – gritou Sétimo. – Acalmem-se todos! 

Atirou O Guia/Juggs para cima da mesa de centro.